Timo Sarpaneva, 1951
UMA ENTREVISTA INSOSSA, UMA AUTO-RESENHA, UM HAMLET SONEGADO
O PAÍS PEGA NO TRANCO, DEPOIS DO CARNAVAL
O Brasil começa a funcionar aos poucos depois do carnaval. E, até o motor pegar meio no tranco, há um período de calmaria, que quase confina com a calmaria que supostamente teria motivado o seu descobrimento. Isso talvez explique, em parte, a anodinia dos segundos cadernos deste sábado. Vou tomar como parâmetro o Vida & Arte de hoje, 16.02.08: uma morna entrevista com a insossa Maria Adelaide Amaral; a desastrada resenha de uma nova tradução de Bouvard e Pécuchet; e uma matéria sobre o lançamento do novo livro do teatrólogo Oswald Barroso são os destaques à la carte.
ESCRITOR BRASILEIRO NUNCA SE INSINUA PARA SER MINISSERIADO
[http://www.opovo.com.br/opovo/vidaearte/766161.html]
Na abertura da entrevista [“Sobre Afetos e Reencontros”], somos informados que Maria Adelaide Amaral era “simpatizante de esquerda”. Aliás, quem é de direita, neste país em que todos são de esquerda? Procura-se. Ser de direita hoje no Brasil é fazer parte da dissidência, uma vez que a briga maior é para se comprovar que se é mais de esquerda do que o outro. Desse jeito, aqueles caras que sempre foram do contra vão acabar se endireitando. Mas o pior é que o resultado prático de tanta esquerda na inteligência brasileira tem sido, quase sempre, um redondo zero... à esquerda, naturalmente. Mas voltemos à entrevista, ela tem uma razão promocional de ser: o lançamento de uma série televisiva baseada em romance da própria Sra. Amaral. O livro, Aos Meus Amigos, de 1992, pretende ser uma espécie de balanço geracional. Daquela mesma geração chata, que se pensava heróica, e ainda hoje vive a enfatizar que foi torturada e censurada. E, no entanto, a oposição que essa tal geração "de luta" fez ao regime de exceção foi bem mais branda que a da sua equivalente argentina. No romance minisseriado da vez eles se encontram já mais maduros, em 1989, às vésperas da eleição presidencial que guindaria Collor ao poder. De resto, não foi a Sra. Amaral quem pensou em adaptar o romance para minissérie, é claro. Esse tipo de iniciativa nunca parte dos autores, pois os escritores brasileiros são muito blasés e bem de vida para precisar ganhar dinheiro com televisão. Faz parte do show ou do clichê atribuir a um terceiro a idéia da adaptação. A rigor, só existe um mercenário na literatura brasileira: Paulo Coelho. O resto rasga dinheiro. Bom, o tema central do romance da Sra. Amaral e da correspondente minissérie é a amizade. Os protagonistas são inspirados nos amigos da Sra. Amaral. De resto, a Sra. Amaral nos faz uma confissão surpreendente: “os amigos têm sido o esteio da minha vida afetiva e profissional. Devo muito a eles na alegria e na dor, na saúde e na doença”. Ora, que depoimento mais original! Quando se chega a este ponto da entrevista, se você não abrir um bocejo, há algo errado com o seu tédio. Consulte-se. Ainda assim, quem ler rápido quase que pode concluir que a Sra. Amaral optou por casar-se com seus amigos. A chatice, na entrevista, não provem de um mau texto, mas de um assunto que não ajuda em nada. É, parece que até as reuniões de pauta são afetadas pela ressaca do carnaval.
FLAUBERT E PRESSA NÃO COMBINAM
Na abertura da entrevista [“Sobre Afetos e Reencontros”], somos informados que Maria Adelaide Amaral era “simpatizante de esquerda”. Aliás, quem é de direita, neste país em que todos são de esquerda? Procura-se. Ser de direita hoje no Brasil é fazer parte da dissidência, uma vez que a briga maior é para se comprovar que se é mais de esquerda do que o outro. Desse jeito, aqueles caras que sempre foram do contra vão acabar se endireitando. Mas o pior é que o resultado prático de tanta esquerda na inteligência brasileira tem sido, quase sempre, um redondo zero... à esquerda, naturalmente. Mas voltemos à entrevista, ela tem uma razão promocional de ser: o lançamento de uma série televisiva baseada em romance da própria Sra. Amaral. O livro, Aos Meus Amigos, de 1992, pretende ser uma espécie de balanço geracional. Daquela mesma geração chata, que se pensava heróica, e ainda hoje vive a enfatizar que foi torturada e censurada. E, no entanto, a oposição que essa tal geração "de luta" fez ao regime de exceção foi bem mais branda que a da sua equivalente argentina. No romance minisseriado da vez eles se encontram já mais maduros, em 1989, às vésperas da eleição presidencial que guindaria Collor ao poder. De resto, não foi a Sra. Amaral quem pensou em adaptar o romance para minissérie, é claro. Esse tipo de iniciativa nunca parte dos autores, pois os escritores brasileiros são muito blasés e bem de vida para precisar ganhar dinheiro com televisão. Faz parte do show ou do clichê atribuir a um terceiro a idéia da adaptação. A rigor, só existe um mercenário na literatura brasileira: Paulo Coelho. O resto rasga dinheiro. Bom, o tema central do romance da Sra. Amaral e da correspondente minissérie é a amizade. Os protagonistas são inspirados nos amigos da Sra. Amaral. De resto, a Sra. Amaral nos faz uma confissão surpreendente: “os amigos têm sido o esteio da minha vida afetiva e profissional. Devo muito a eles na alegria e na dor, na saúde e na doença”. Ora, que depoimento mais original! Quando se chega a este ponto da entrevista, se você não abrir um bocejo, há algo errado com o seu tédio. Consulte-se. Ainda assim, quem ler rápido quase que pode concluir que a Sra. Amaral optou por casar-se com seus amigos. A chatice, na entrevista, não provem de um mau texto, mas de um assunto que não ajuda em nada. É, parece que até as reuniões de pauta são afetadas pela ressaca do carnaval.
FLAUBERT E PRESSA NÃO COMBINAM
[http://www.opovo.com.br/opovo/vidaearte/766167.html]
Com certeza, Flaubert, que é convenientemente identificado como “autor francês”, escreveu Bouvard e Pécuchet para ganhar esta resenha em O Povo [“Manual da Tolice Humana”]. E não para mofar da vontade de erudição-em-pouco-tempo-e-espaço do homem moderno. Inclusive, do jornalista moderno. Bouvard e Pécuchet é a sátira rematada de qualquer ofício que cava às pressas nos veios da tradição. Seus protagonistas têm algo daquele diretor de arte que precisa fazer o anúncio em uma hora e quarenta, e aí lança mão da reprodução de uma pintura que levou meses, anos para ser concluída. E a pintura não é mais que um detalhe na sua arte final. Ou então do jornalista que tem de consultar às pressas a Barsa para poder escrever a resenha de um clássico da literatura francesa. Enfim, para aqueles pseudo-eruditos que têm na Wikipédia sua fonte única, seu livro de cabeceira. Mas, tornando à resenha, logo de início ficamos sabendo que “a história de Bouvard e Pécuchet ficou pronta, mas não escrita totalmente”[sic]. Mais adiante, a resenhista nos informa que “é inegável a sensação de incômodo ao ler este livro de Flaubert”. Por que será? Apesar de incomodada a resenhista, no entanto, é prescritiva, imperativa. Nos fala de um prefácio que deve ser ignorado pelo leitor até que ele conclua a leitura da obra. Ainda que ela não explique as razões para transformar o prefácio em pósfácio. De outro modo, um aspecto crucial quase não é tocado na resenha: o humor abrasivo de Flaubert em Bouvard e Pécuchet. Também não mencionado pela ilustre resenhista é o nome do profissional que teve de trabalhar meses a fio para que ela pudesse escrever a resenha em uma hora: o tradutor. E em nenhum momento se analisa a qualidade da tradução, meio como se tomasse por garantido que o texto lido por ela, resenhista, é o original, em francês. Talvez se houvesse mais de uma hora para a escrita, a história da resenha pudesse ser outra. Mas por enquanto ainda não se inventou uma resenha pré-escrita, do tipo que se pudesse pôr no processador de texto, como num forno microondas. Por enquanto, a tecnologia só permite isto a lazanhas pré-cozidas. O que é uma lástima, pois, caso contrário, quanto tempo seria economizado. E, a exemplo de Bouvard e Pécuchet, talvez a resenha pudesse ser "completada mesmo que não totalmente escrita". É preciso ganhar tempo. Ganhar tempo. Os resenhistas têm razão. O mesmo tempo que tanto Bouvard quanto Pécuchet queriam abreviar com seus manuais, os resenhistas querem abreviar com suas resenhas. Mas se a resenha tivesse sido escrita com mais tempo, nós, leitores de O Povo, quem sabe, também pudéssemos passar sem frases como: “a edição traz ainda os fragmentos para um segundo volume planejando por Flauber e o Dicionário das Idéias Feitas que também iria fazer parte do volume que nunca chegou a ser executado” [sic]. É, Flaubert e pressa não combinam. Ora, foi justo para rir da pressa em adquirir conhecimentos – e que sempre resulta em grotescas superficialidades e asneiras – que Flaubert escreveu Bouvard e Pécuchet. Mas tem gente excessivamente preocupada em resenhar rapidamente o livro de Flaubert e aplicar sobre ele os conceitos do manual da redação. Aliás, manual tem tudo a ver com Bouvard e com Pécuchet, as personagens. Mas nada a ver com Flaubert.
DORMIR, TALVEZ SONHAR
Com certeza, Flaubert, que é convenientemente identificado como “autor francês”, escreveu Bouvard e Pécuchet para ganhar esta resenha em O Povo [“Manual da Tolice Humana”]. E não para mofar da vontade de erudição-em-pouco-tempo-e-espaço do homem moderno. Inclusive, do jornalista moderno. Bouvard e Pécuchet é a sátira rematada de qualquer ofício que cava às pressas nos veios da tradição. Seus protagonistas têm algo daquele diretor de arte que precisa fazer o anúncio em uma hora e quarenta, e aí lança mão da reprodução de uma pintura que levou meses, anos para ser concluída. E a pintura não é mais que um detalhe na sua arte final. Ou então do jornalista que tem de consultar às pressas a Barsa para poder escrever a resenha de um clássico da literatura francesa. Enfim, para aqueles pseudo-eruditos que têm na Wikipédia sua fonte única, seu livro de cabeceira. Mas, tornando à resenha, logo de início ficamos sabendo que “a história de Bouvard e Pécuchet ficou pronta, mas não escrita totalmente”[sic]. Mais adiante, a resenhista nos informa que “é inegável a sensação de incômodo ao ler este livro de Flaubert”. Por que será? Apesar de incomodada a resenhista, no entanto, é prescritiva, imperativa. Nos fala de um prefácio que deve ser ignorado pelo leitor até que ele conclua a leitura da obra. Ainda que ela não explique as razões para transformar o prefácio em pósfácio. De outro modo, um aspecto crucial quase não é tocado na resenha: o humor abrasivo de Flaubert em Bouvard e Pécuchet. Também não mencionado pela ilustre resenhista é o nome do profissional que teve de trabalhar meses a fio para que ela pudesse escrever a resenha em uma hora: o tradutor. E em nenhum momento se analisa a qualidade da tradução, meio como se tomasse por garantido que o texto lido por ela, resenhista, é o original, em francês. Talvez se houvesse mais de uma hora para a escrita, a história da resenha pudesse ser outra. Mas por enquanto ainda não se inventou uma resenha pré-escrita, do tipo que se pudesse pôr no processador de texto, como num forno microondas. Por enquanto, a tecnologia só permite isto a lazanhas pré-cozidas. O que é uma lástima, pois, caso contrário, quanto tempo seria economizado. E, a exemplo de Bouvard e Pécuchet, talvez a resenha pudesse ser "completada mesmo que não totalmente escrita". É preciso ganhar tempo. Ganhar tempo. Os resenhistas têm razão. O mesmo tempo que tanto Bouvard quanto Pécuchet queriam abreviar com seus manuais, os resenhistas querem abreviar com suas resenhas. Mas se a resenha tivesse sido escrita com mais tempo, nós, leitores de O Povo, quem sabe, também pudéssemos passar sem frases como: “a edição traz ainda os fragmentos para um segundo volume planejando por Flauber e o Dicionário das Idéias Feitas que também iria fazer parte do volume que nunca chegou a ser executado” [sic]. É, Flaubert e pressa não combinam. Ora, foi justo para rir da pressa em adquirir conhecimentos – e que sempre resulta em grotescas superficialidades e asneiras – que Flaubert escreveu Bouvard e Pécuchet. Mas tem gente excessivamente preocupada em resenhar rapidamente o livro de Flaubert e aplicar sobre ele os conceitos do manual da redação. Aliás, manual tem tudo a ver com Bouvard e com Pécuchet, as personagens. Mas nada a ver com Flaubert.
DORMIR, TALVEZ SONHAR
[http://www.opovo.com.br/opovo/vidaearte/766165.html]
O novo livro do teatrólogo Oswald Barroso se chama Dormir, Talvez Sonhar. O título refere-se ao solilóquio do Hamlet: “to sleep, perchance to dream”. É o trecho que começa com o célebre “Ser ou não ser” [Ato III, Cena 1]. Em nenhum momento, da matéria [“Sonhar, Talvez Dormir?”], no entanto, se entre nesse mérito. Sequer quando o jornalista investiga o título de Dormir, Talvez Sonhar: "e esse título, Oswald, pode ser entendido como um malicioso convite às novas gerações?” - indaga candidamente o autor da matéria. Não há qualquer menção ao procedimento de citação, ao fragmento de Hamlet escolhida para título por Barroso. Ora, isso surrupia ao leitor algumas possibilidades. No mínimo é uma informação tão importante quanto sonegada. Mas a indagação final do autor da matéria não deixa de depor contra ele próprio. De fato há no título de Oswald Barroso um malicioso convite que parece seguir em imperativo às novas gerações: leiam!
O novo livro do teatrólogo Oswald Barroso se chama Dormir, Talvez Sonhar. O título refere-se ao solilóquio do Hamlet: “to sleep, perchance to dream”. É o trecho que começa com o célebre “Ser ou não ser” [Ato III, Cena 1]. Em nenhum momento, da matéria [“Sonhar, Talvez Dormir?”], no entanto, se entre nesse mérito. Sequer quando o jornalista investiga o título de Dormir, Talvez Sonhar: "e esse título, Oswald, pode ser entendido como um malicioso convite às novas gerações?” - indaga candidamente o autor da matéria. Não há qualquer menção ao procedimento de citação, ao fragmento de Hamlet escolhida para título por Barroso. Ora, isso surrupia ao leitor algumas possibilidades. No mínimo é uma informação tão importante quanto sonegada. Mas a indagação final do autor da matéria não deixa de depor contra ele próprio. De fato há no título de Oswald Barroso um malicioso convite que parece seguir em imperativo às novas gerações: leiam!
Pois é, eis uma pequena amostra do jornalismo cultural que nos cai nas mãos, madrugada após outra. O mundo anda muito violento e feio lá fora. Porém, ao nos deparararmos com essas calamitosas tentativas de resenha; pautas insossas, ditadas pela TV; e omissões por puro desconhecimento de causa; chega-se à conclusão que até mesmo nas páginas de cultura dos jornais o panorama não é lá muito diverso. Oxalá com o avançar do ano as pautas se tornem menos cinzas. E as idéias menos mesquinhas.
Até a vista!
Nota --- começo, a partir de hoje, a fazer um resumo comentado do que sai publicado nos jornais. Em especial, nos segundos cadernos ou nos suplementos de cultura.
Nota --- começo, a partir de hoje, a fazer um resumo comentado do que sai publicado nos jornais. Em especial, nos segundos cadernos ou nos suplementos de cultura.
Ruy, ótima idéia fazer esses resumos comentados. É uma coisa que eu também sempre faço - praticamente não leio jornal, só me desentendo com ele. É muita gente escrevendo mal. E gente que aparenta escrever bem, utilizando uma linguagem sinuosa, com certos jargões dos centros de humanidade das universidades, mas que não dizem nada.
ResponderExcluirMas não deixe de postar poemas, né.
P.s.: o post debaixo sobre Lobato está excelente.
Abraço!
ludovico,
ResponderExcluirsua lembrança dos centros de humanidades - e eu acrescentaria, especialmente das pós-graduações - é mto. pontual. há gente q. passa por lá, ouve uma série de conceitos como um cantar de galo, e já quer sair empregando-os. isso vem se convertendo em praga.
aguarde mais poemas. eles virão. o ponto é q. no momento estou sem gavetas. e, nem sempre, o processo de escolher e traduzir poemas é rápido. talvez até fosse mais, se eu me guiasse pelo ritmo de bouvard e de pécuchet.
abs.
ruy
oi ruy...
ResponderExcluiradorei os comentarios. nao pq eh do concorrente... mas fica a ideia de sempre desconfiar do que escreve.
eu sempre me surpreendi com isso: a falta de desconfianca - posso ate pecar em muito que faco... mas sempre descsonfio!
manda mais!
olá, juli,
ResponderExcluiro q. ñ quero é personalisar as coisas. o jornalista, como qualquer outro profissional está sujeito a errar. mas, como em qualquer outra profissão: há ERROS e erros. há acertos e ACERTOS.
e v. está certíssima, juli, nessa de autodesconfiar do próprio texto. quem ñ faz isso fica parado. e quem fica parado é poste.
bjs.
oi ruy,
ResponderExcluiradorei os textos sobre os textos! muito bom, mesmo! mas me fez lembre que esqueci o meu bouvard e pecuchet em casa! :(
deu uma vontade de reler!
beijos
vai saber!
olá,
ResponderExcluirmarília,
num se avexe. ñ é a mesma coisa, mas livros assim a gente encontra na rede, hoje em dia, em bibliotecas virtuais.
tá tudo bem com v., em bh? passo sempre no 'vai'. e q. bom q. v. tem postado mais!
bjs.