quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

A sabedoria de sancionar a existência passa por acreditar nas possibilidades dela: Lobato


Gerrit Rietveld, 1923


Uma corda de despertador em moto perpétuo
Relendo O Pica-Pau Amarelo, de Monteiro Lobato

O Pica-Pau Amarelo ocupa um lugar axial na obra de Lobato. É seu livro mais ousado. E boa parte dos avos dessa ousadia vai pela desfaçatez do bem-vindo malabarismo mediante o qual Lobato inscreve o Brasil na tradição do Ocidente. Ou mais, faz esta tradição dobrar-se a certo impulso compósito. Entre outras coisas, o que ele faz é embaralhar as fronteiras entre colonizados e metropolitanos. Entre Europa e América. Entre "primeiro" e "terceiro" mundos - ainda que estes conceitos não existissem em 1939, quando o livro foi escrito.
É claro, que essa empresa não se deu sem astúcia, sem auto-afirmação. Dessas que quase não encontram paralelo na depressão brasileira e geral em que vivemos. A porta-voz mais dileta desse atrevimento é o próprio atrevimento em forma de gente: Emília.
A migração do mundo do faz-de-conta para o sítio de Dona Benta é um golpe de mestre. Num passe de mágica, todo o imaginário dos contos infantis europeus – mitologia grega incluída – se muda para um sítio no interior do Brasil. E dessa improvável aclimação resultam episódios tão atrevidos quanto aquele em que Tia Nastácia se apropria do escudo de Dom Quixote para usá-lo na cozinha como gamela, enchendo-o de lingüiças e salmoura. Ou então, de um outro em que Emília propõe a troca do bodoque de Pedrinho pelo arco e as setas de Cupido.
Mas a coisa não fica aí, já que a ave fênix abriga-se no galinheiro do sítio e o Pequeno Polegar – o primeiro sem-teto da literatura para crianças no Brasil – ocupa ilegalmente um ninho de joão-de-barro. As ilustrações do haitiano André Leblanc para as edições mais antigas são um primor. E qualquer série televisiva que se preze deveria partir delas como sugestão de direção de arte.
Naturalmente O Pica-pau Amarelo concentra uma modalidade de antologia. Nos episódios todos os grandes personagens do universo infantil trocam figuras com crianças brasileiras e a coisa dá samba. Essas crianças são Pedrinho e Narizinho, personagens vívidas, mas a rigor, não muito mais que um aval para que os jovens leitores neles se projetem. Sintam-se presentes aos sucessos. Aliás, a meio livro, um bando deles visita o sítio e brinca de ser seus personagens numa atrevida meta-referencialidade.
E há Dona Benta, que autoriza a coisa toda como uma legisladora jovial e curiosa. Ela é também uma mulher culta, uma leitora ávida o suficiente para autorizar a imaginação dos netos. Mas, ao contrário de Platão na República, Dona Benta escancara as porteiras do sítio para a poesia. Seu interlocutor mais pontual é o Visconde, a própria encarnação da teoria. E por isto mesmo – e um tanto ironicamente – sempre enviado em missões arriscadíssimas. Algo de contornável, pois quando eventualmente o ilustre sabugo sai meio estropiado delas, é sempre possível refazê-lo. Talvez do mesmo modo como uma teoria pode ser revista, emendada. O Visconde e as teorias são feitos da mesma matéria – estofo de sonhos. Lobato era um escritor, mas também um homem prático e um tanto desconfiado dos excessos teóricos: “os sábios são criaturas indecisas, não resolvem nada” – diz, a certa altura, Dona Benta.
Agora, os personagens do sítio que valem mesmo por dias de sol são Emília e Tia Nastácia. Brilhantes ambas.
Tia Nastácia, negra e analfabeta, na obra de Lobato concentra uma grandeza à toda prova. É de suas mãos que saem tanto a teoria – personificada pelo Visconde – quanto essa astúcia em forma de gente que é Emília. E, ainda que tratem a cozinheira com certa condescendência, ambos não passam de criaturas de Nastácia, o que não é pouco. E, notem, não apenas de sua imaginação, mas de suas habilidades de artesã. À certa altura, no casamento de uma princesa, Lobato a situa “nas cozinhas imperiais dirigindo o assamento de mil e trinta e sete faisões”. E Nastácia não se faz de rogada: “Estou gostando muito desse palácio. Que cozinha, Sinhá. Parece uma sala de visitas. Tudo mármore e pratas alumiando. E eu aqui não faço nada – só dou ordens. Tenho mais de cem ajudantes...” “Tudo mármore e pratas alumiando”, como fosse um carro alegórico rasgando a Sapucaí, sob a direção da carnavalesca Nastácia.
Como todo bom clássico, O Pica-Pau Amarelo resguarda sutilezas que só podem ser avaliadas muitos anos e releituras depois. Em certo passo, por exemplo, Emília tece uma reserva ao marido de Branca de Neve, recém afogado na grande cheia do Mar dos Piratas. Critica-lhe o fato de haver sido um príncipe anônimo e sem luz própria. Ou, ainda mais grave, de em vida não pagar a mínima atenção à princesa ao gastar todo seu tempo em jogos e caçadas: “Aquele príncipe gostava mais dos veados e faisões do que de você. Além disso era um príncipe sem importância, dos que não tem história”.
Emília é o dínamo do sítio. Ela é buliçosa. O que toca, vira vida. Como se quisesse emprestar vida à matéria inanimada de que ela própria é feita: pano, macela e retrós. Sua força de afirmação pode contagiar a criança menos segura de si. E, claro, ela crê, mais do que ninguém, na possibilidade de seu próprio mundo existir. Num momento de impasse, por exemplo, Narizinho põe sob suspeita a longevidade da corda do despertador que aloja-se nas entranhas do crocodilo que persegue o Capitão Gancho:
“--Está aí uma coisa que me espanta – disse Narizinho. A corda desse despertador já devia ter acabado a muito tempo.”
A resposta de Emília resume o livro:
“--Devia se fosse no mundo normal. (...) Aqui, no mundo fabuloso nada acaba – nem corda de despertador!”

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