sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

A Tradição do Reisado


Pieter Artsen, sec. XVI


A Noite de Reis


A Noite de Reis diz muito para nós. Ao contrário da tradição do Halloween, que nada tem a ver conosco, a Noite de Reis nos inspirou manifestações coletivas particularmente encorpadas. Em tese, por tradição, ela demarca apenas o dia da visita dos três reis magos, Melchior, Baltazar e Gaspar, e sua adoração ao Menino Deus na manjedoura. E que se deu doze dias depois do nascimento da criança. A véspera do Dia de Reis, antigamente, era uma noite de fartura e abundância, onde se comia e bebia à valer, em comemoração ao fecho do ciclo natalino, também chamado de Epifania: a revelação de Deus na forma humana.

A rigor não se sabe se eram exatamente três os reis magos, mas, é provável que a tradição do cristianismo – que incorporou o três como o seu número mais emblemático, já que refere à Santíssima Trindade – assim os conte, por alusão. Mas também pela atribuição dos presentes: ouro incenso e mirra. Alguns historiadores laicos preferem entender os Magos, não propriamente como reis, mas como sacerdotes ou astrônomos vinculados à religião zoroástrica. Ou seja, vinham da Pérsia e de uma época em que astronomia e astrologia ainda eram a mesma coisa. E, logo, provinham no rastro de uma estrela.

O relato bíblico é por demais conhecido. Os três vieram guiados pela estrela. Visitaram o Rei Herodes. E este lhes disse que o notificassem do achamento da criança, pois que ele próprio, posteriormente, também seguiria em adoração. Entanto, Herodes, no íntimo, entendia identificar a criança, sim, mas para matá-la.

A visita dos Reis Magos segue descrita em Mateus da seguinte forma: "Entrando na casa, viram o menino, com Maria sua mãe. Prostrando-se, o adoraram; e abrindo os seus tesouros, entregaram-lhe suas ofertas: ouro, incenso e mirra." (Mt 2, 11).

De acordo com a tradição exegética, o ouro representa a realeza – afinal, o Cristo não só é rei, mas o rei dos reis. O incenso, usado nos templos, em vapor, para purificá-los e criar a ambiência propícia para a concentração da prece, indica a fé. E a mirra, um composto resinoso, que era utilizado no Egito para o embalsamamento de múmias, não só a paixão e morte de Jesus, como também a idéia de continuidade e perpetuação de sua fé.

O certo é que, advertidos em sonhos, os magos não retornaram a Herodes. E ainda menos se sabe deles depois disso. Como sempre, o relato bíblico só centra-se nas essências.

Ao longo dos séculos, tudo isso ganhou diferentes compositividades, dependendo da cultura em que radicou. Na Idade Média, o teatro era exclusivamente sacro. Se dava por meio de autos piedosos e exemplares, representações de mistérios e da vida dos santos (hagiografias). Na Inglaterra até hoje, algumas pequenas cidades mantém o costume das mistery plays [autos de mistério] – mas infelizmente sem nenhum valor devocional. É como manter um rito sem fé. E, ainda assim, não se pode duvidar que isso indique um caminho.

Em português, todo o teatro composto na língua radica nesses autos religiosos, um tanto quanto transformados e laicizados pelo nosso Shakespeare de plantão: Gil Vicente, que, de outro modo, antecipa o inglês em um século. E, claro, posteriormente, esses atos teatrais foram acrescidos de novos condimentos culturais. Especialmente no Brasil. E muito especialmente no Nordeste.

De resto, o próprio Shakespeare tem uma peça chamada justamente A Noite de Reis [Twelfth Night]. Ao pé-da-letra a tradução do inglês aponta para a décima segunda noite após o Natal, pois é assim que se chama a Noite de Reis naquele idioma – sendo também usada, mas com menos difusão, a expressão Véspera da Epifania [Epiphany Eve]. A peça de Shakespeare, portanto, resguarda no título esse substrato cristão. E, não por acaso, pois se sabe que foi baseada em um auto do italiano Matteo Bandello.

Trazendo tudo isso mais para perto de casa, a Noite de Reis, na Península Ibérica amalgamou-se às comemorações de vitórias contra os mulçumanos. Uma espécie de celebração da Cristandade vitoriosa após as muitas batalhas, idas e vindas, das guerras de reconquista a sul. Essas vitórias contra os mouros infiéis eram cantadas e decantadas pelos trovadores anônimos – ao menos tão anônimos quanto os nossos cegos de feira. Os Homeros da ocasião. E festejadas anualmente com alguma ênfase e excesso na Noite de Reis.

Tudo isso foi trazido para o Brasil. E permaneceu intacto onde o Brasil encontra sua fonte mais profunda: os sertões do Nordeste. Aqui, a tradição da Noite de Reis, se tornou ainda mais compósita, com a aportação de elementos – sobretudo musicais e rituais – de africanos e indígenas. O resultado foi a floração de belos ritmos e ritos, que, vinculados ao catolicismo popular, nos deram as formas atuais dos reisados, enquanto manifestações que conjugam dança, música e teatro. Isso para  não mencionar o vestuário, confeccionado especificamente para a ocasião, etc. Ou ainda o amálgama com outros rituais coletivos como os "bumba-meu-bois" e "cavalos-marinhos".
* * *
Há uma canção do ciclo de reisado que não consigo esquecer, não só pela beleza de sua melodia, como pelo suave lirismo da letra. Ela foi recolhida por um amigo de Limoeiro do Norte. E, no início mesmo diz assim: "O sol entra pela porta/ e o luar pela janela". Reparem que a letra nos geografiza um interior mais pacato, onde era possível dormir com essa janela aberta, pela qual coava-se o luar para dentro da casa. Por contraposição, é a porta quem está aberta à luz do sol, sugerindo o trânsito entre rua e casa: o dia de trabalho, a convivialidade dos vizinhos, a brincadeira, as cirandas e o futebol dos pequenos.

Em Fortaleza, ao final da década de 80, apesar de urbanos até a medula, e tão distantes dessas remotas, delicadas e belas tradições coletivas, espontâneas e rurais, um grupo de amigos – vários deles futuros músicos profissionais – se reuniam e seguiam em peregrinação pela cidade, tentando reviver um tanto da mística calorosa da Noite de Reisado. O cortejo, já feito de carro, dado à grande distância coberta, partia da Aldeota Velha, atravessava Dionísio Torres, Varjota e Papicu, tendo, como ponto final, a residência do fotógrafo José Albano, na, então, distante Sabiaguaba, algo que chegava ao limiar da ruralidade.

Certa feita, ao chegarmos à casa de Albano, ele se encontrava dormindo, deitado numa rede, à sala, próxima a varanda da casa. Podia-se entrevê-lo pelas amplas janelas abertas, como na canção de reisado. Foi acordado, no entanto, ao som de uma outra canção, que é uma de suas favoritas: “Blackbird”, dos Beatles. Albano ergueu-se, espreguiçou-se, e com a aquela sua típica gentileza, de gestos longos, algo solenes, apesar da simplicidade que todos conhecemos, veio saudar o grupo, abrir a casa, acomodar as pessoas. Foi uma longa noite de música, vinhos e conversas.

Como sei disso? Muito simples, fui eu quem executou “Blackbird” ao violão àquela Noite de Reis.


Nota – um sinal de o quanto a Noite de Reisado, como evento sacro, não tem mais qualquer significado concreto em nossa sociedade laica é dada pela desambiguação do verbete Twelfth Night na Wikipedia em sua versão em inglês. O dia santo assoma em último lugar, depois da Peça de Shakespeare, de um filme Russo, de um filme anglo-americano, de um teatro em Brisbane (Austrália) e de uma banda inglesa de rock progressivo.

2 comentários:

  1. as canções são lindas mesmo. ano passado ainda passou um grupo aqui em frente cantando.

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  2. é isto, mariana:

    'o sol entra pela porta/ e o luar pela janela.// cá estamos, em vossa porta [...]

    além de lindas, as canções são nossas.nada a ver duendes, abóboras...

    como diz um amigo: "eu acredito em doentes"

    bjs.

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