quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Realidade Aumentada



Óculos de realidade aumentada [augmented reality] é o próximo passo depois dos smartphones e tablets. O Google está investindo pesado no desenvolvimento da geringonça. Boatos escorrem pelo mundo. Mas até agora o que se tem são formatos toscos diante do que especialistas asseguram que é já possível confeccionar. E lançar comercialmente. Até o final deste ano, estarão à venda.

Cinema expandido, telefones inteligentes, realidade aumentada, que será que vem depois: morte invertida?

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

O jogo estraçalhado se multiplica: Fontela


Ludismo

Quebrar o brinquedo
é mais divertido.

As peças são outros jogos:
construiremos outro segredo.
Os cacos são outros reais
antes ocultos pela forma
e o jogo estraçalhado
se multiplica ao infinito
e é mais real que a integridade: mais lúcido.

Mundos frágeis adquiridos
no despedaçamento de um só.
E o saber do real múltiplo
e o sabor dos reais possíveis
e o livre jogo instituído
contra a limitação das coisas
contra a forma anterior do espelho

E a vertigem das novas formas
multiplicando a consciência
e a consciência que se cria
em jogos múltiplos e lúcidos
até gerar-se totalmente:
no exercício do jogo
esgotando os níveis do ser.

Quebrar o brinquedo ainda
é mais brincar.


Orides Fontela

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

E Billie Holiday ninava Billy Crystal

A mítica Livraria Shakespeare and Company, hoje no nº37, Rue de la Bûcherie,
foi uma das locações para o Midnight in Paris de Woody Allen.


Já nos anos 1930, John dos Passo (esq.) Joris Ivens (costas para a câmera) e Hemingway
 (dir.); eles colaboraram na feição do documentário The Spanish Earth (1937)


Sylvia Beach e James Joyce à entrada da primeira Shakespeare and Company. 
Essas ambiências e personalidades estão presentes em A Moveable Feast, de Hemingway

Se quando jovem você teve a sorte de viver em Paris, então, onde quer que vá, a cidade seguirá junto, pois Paris é uma festa móvel. [Ernest Hemingway]
*
No atacado, merecidas as premiações do Óscar: Streep, Plummer, The Artist, A Separation. Agora, alguns agradecimentos deixaram a desejar. Já pensaram, se Jean Dujardin tivesse aberto seu discurso com: “estou sem palavras”?
**
De outro modo, o prestigioso jornal canadense Globe and Mail deplorou estilo e teor das piadas de Billy Crystal: "Mr Crystal has clearly lost the touch with today standards".  A matéria censura o modo como o comediante brinca com o esforço do ator Jonah Hill para perder peso, além de encadear uma série de piadas raciais de duvidoso gosto, segundo o jornal. Deve-se dar um desconto, contudo, pois os canadenses são excessivamente crédulos e adeptos do politicamente correto. Do contrário, Crystal saiu-se um mestre de cerimônias à altura. Especialmente quando cornetou o paulificante discurso de Tom Sherak, presidente da Academia: Thank you for whipping the crowd into a frenzy”.
***
O que pouca gente sabe, aliás, é que Billy Crystal vem de uma família judia de Manhattan. E que entre as babás (babysitters) que ocasionalmente tomavam conta dele estava certa negra bonita, que cantava lindas canções de ninar. Tinha a veia dos blues. Seu nome: Billie Holiday. 
****
Um filme americano sobre um ilusionista francês. Um filme francês sobre uma forma de ilusionismo americano. Eis os dois vencedores da noite. Muito em comum. Os americanos não resistem ao charme de Paris. Os franceses levam a fama de hiperintelectualizar o cinema americano. Howard Hawks, por exemplo, deliciava-se com as intrincadas análises que o pessoal dos Cahiers du Cinema fazia de seus filmes. O mesmo ocorria com Cassavetes. Interesse mútuo e intercâmbio. Uns compassos de jazz por um punhado de filosofia. Ou ao menos teoria, vá lá. E, não esqueçamos, do lado de cá do Atlântico, houve Jean Renoir e William Wyler. E há os que juram de pés juntos que Chaplin, na verdade, era francês. A coisa vem de longe. Desde Thomas Paine. Ou pelo menos desde a Lost Generation, e Hemingway decretando que Paris é um estado de espírito, que a gente leva para onde for jovem. Mas não é esse exatamente o tema de um terceiro filme de ontem? Um que ganhou o Óscar de melhor roteiro original? Bem, Paris não é exatamente um roteiro original para americanos. Para quem quer ir mais fundo, além dos dois livros clássicos de Hemingway - o ficcional The Sun Also Rises (O Sol Também se Levanta), o autobiográfico A Moveable Feast (Paris é uma Festa Móvel) - e o de Gertrude Stein - A Autobiografia de Alice B. Toklas - há um livro recente do jornalista Sérgio Augusto: E Foram Todos para Paris - Um Guia de Viagem nas Pegadas de Hemingway, Fitzgerald & Companhia. Quem um dia não invejou essa farra permanente dos expatriados americanos [e agregados] na Paris dos anos 20? E olha que faltam não poucos nomes ao filme de Allen: Ezra Pound - talvez ausente por suas posições políticas - James Joyce, John dos Passos, Sherwood Anderson, Ford Madox Ford, George Antheil, Man Ray, Wyndham Lewis e tantos outros. 

Estranha Arte da Simultaneidade



-Ei, eu tô bem aqui na sua frente, viu? - disse, afastando-se da fila, mais um desses seres especiais que dominam a estranha arte de estar em dois lugares ao mesmo tempo. 

domingo, 26 de fevereiro de 2012

errata e amor de madrugada


em algum lugar por aqui, e escrevi: “os dicionários portugueses não registram graviola”. depois uma amiga, sempre muito ciosa, me disse que há pelo menos um que registra. daí voltei à sentença. e tasquei um “a maioria dos dicionários portugueses”. mas - e é aqui que mora o perigo - bem na hora de consertar a desinência do verbo, o celular deve ter tocado. ou foi a campainha. a bateria do notebook pifou. uma fragrância inebriante veio da rua. a net saiu do ar. alguém chegou. ou partiu. tive que sair. ou voltar. ou fiquei no mesmo lugar, sonhando com uma viagem à romênia, certo de que a tradução de magpie era mesmo pega. mas quando já estava em craiova, uma puta batida na rua. ou a lata de coca-cola, que pus no freezer para gelar mais rápido, explodiu. ou segui pingando is que eram para ontem. ou tive de limpar os pingos da coca-cola na porta do freezer. ou passou algo na TV - mulher ou gol - que me prendeu olhar. e o olhar desviou feio, feito muitos, muitos quilômetros na 222. ou lembrei-me das duas malditas cápsulas, esquecidas desde o café. ou deu vontade de comer queijo com goiabada. ou de fazer xixi sem goiabada alguma. ou de reler romeu e julieta. ou, ainda melhor, pôr em prática esse negócio todo de rouxinóis e cotovias, queijos e goiabadas, romeus e julietas. caminhar até a praça. ou simplesmente namorar um muitão. 
de forma que a sentença toda não foi revisada. e a frase ficou assim (ou sic como dizem os doutos): “a maioria dos dicionários portugueses não registram graviola”. por dias e dias, assim e sic. doentinha. sem eu notar. 
a grécia em polvorosa. o aquecimento global ligeiramente amenizado pelas chuvas. a estação comandante ferraz explodindo que nem coca-cola, lá na antártica. a ponte preta se ferrando diante do santos. a baixaria na apuração das escolas de samba de são paulo. yuri dizendo que renata é ninfomaníaca. e, sobretudo ela, a frase, morrendo à míngua de erro de concordância - enquanto concordávamos na cama, fulana. insoniávamos, dormíamos, sonhávamos, acordávamos, adiávamos. tomávamos suco de graviola e outros líquidos de maior teor alcoólico. e a frase lá, cambaleando, doente, também de cama mas por outra razão: vômitos, náuseas novortográficas, soro, 39º de febre. tadinha. um quadro de desconcordite aguda. 
a quem interessar: nunca houve erro de conjugação. mas de concordância. ou, ainda melhor, nem de concordância (sabemos nós em cama, rede, mesa e banho): de atenção. 
agora, poxa, como foi bacana! - no redizer do samba. e o que eu não daria por mais desatenções assim. deu até vontade de deixar com a concordância errada

sábado, 25 de fevereiro de 2012

duplamente na rede




ensaio fotográfico sobre mulheres menonitas no méxico visto por aí, na rede, duplamente na rede
há humanidade, senso de companhia. gentileza com quem leva vida de forma muito alheia. e, entre as fotos, uma em que duas mulheres pulam sobre cama elástica, numa felicidade que talvez não encontrem em outras camas, carnavais. quem sabe. ou talvez apenas uma delas encontre. ou meia. mas que importa, se o momento é?
depois se fuça um pouco, e acha outras fotos por aí na rede, duplamente na rede. armadores rangem mais alto que piped music.
duas delas, o olho demora a deixar, é o tema indo mais longe que a fotógrafa.
as bolhas nos pés da menina de braço. o olhar de chapéu ao centro, querendo transpor a palha, e que é frágil e forte ao mesmo.
por que ser é bonito?

para uma matéria da bbc sobre fotos de mulheres menonitas (em inglês):

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Oscar 2012, alguns palpites ainda sem samba e arvoredo

Leila Hatami em cena de Uma Separação (Asghar Farhadi, Irã, 2011)


O que segue abaixo não é torcida para este ou aquele. Mas o que se pensa como resultado provável das premiações mais destacadas. Uma palpitação. Ou palpitologia. Certamente um pé de previsões para toda obra, não se tenha dúvida. E de dar em doido. E, ainda assim, periga alguma lógica. Em ressalva, mudamos o prognóstico inicial de dois ou três percursos, depois de algum contexto vir piscar PS's em neon:

Melhor filme
Entre The Artist (o fascínio que os americanos têm pela cultura francesa, ainda mais quando esta os homenageia), The Tree of Life (nova formatação de filmagem em estética passível de ser apropriada por Hollywood, convertida em linha de produção) e Hugo (Scorsese é já quase ancião, seria um modo de homenageá-lo pelo conjunto da obra, devem pensar muitos "acadêmicos" [Por que será que os chamam de "membros da academia" e nunca "acadêmicos"? Só pode ser tradução. Os de língua inglesa dizem "members of the Academy" para isolar qualquer vinculação com algo que respeitam: a universidade. Aqui, qualquer espaço de fisicultura bem ali na esquina a gente chama de "academia" . Eles? Fitness center.]
Cravado: The Artist
Azarão: The Tree of Life

Melhor Diretor
Entre Terrence Malick e Michel Hazanavicius
Cravado: Michel Hazanavicius
Azarão: Martin Scorsese

Melhor Atriz 
Cravado: Meryl Streep (The Iron Lady)
Azarona: Rooney Mara (The Girl with the Dragon Tattoo)

Melhor Ator 
Entre Jean Dujardin (The Artist) e Gary Oldman 
Cravado: Gary Oldman (Tinker Taylor Soldier Spy)
Azarão: George Clooney (The Descendants)


Melhor Atriz Coadjuvante (Uma de todas, páreo duro)
Cravado: Jessica Chastain (The Help)
Azarona: Bérénice Bejo (The Artist)

Melhor Ator Coadjuvante 
Entre Kenneth Branagh (My Week With Marilyn) e Max Von Sidow (Extremely Loud and Incredibly Close)
Cravado: Kenneth Branagh (My Week With Marilyn)
Azarão: Christopher Plummer (Beginners)
(Aqui há controvérsia. A menção a Von Sidow vai pelos mesmos motivos que Scorsese é azarão: idade provecta, bons serviços prestados. O mesmo se dá com Plummer, que quase todo mundo aponta como favorito. E, no entanto, há o deslumbre de Hollywood por tudo que vem de Álbion. E o que dizer então de um fino ator shakespeareano (Branagh) fazendo o papel do sujeito que era sinônimo de ator, shakespeareano ou não (Lawrence Olivier)?)

Melhor Roteiro Original
Entre J.C. Chandor (Margin Call) e Michel Hazanavicius (The Artist)
Cravado: Michel Hazanavicius 
Azarão: Asghar Farhadi (A Separation) - mas é um bocado improvável
(Há certo sentimento geral de canonização do filme iraniano (Uma Separação). Pode-se perceber que tanto Hollywood quanto os críticos europeus estão de joelhos, babando no i-phone ante o filme. Ainda assim, é improvável que Uma Separação ganhe qualquer outro prêmio que não o de melhor filme estrangeiro (que tem tudo para ganhar). Quando há um filme estrangeiro concorrendo em categorias tradicionalmente "reservas de mercado" , dificilmente o estrangeiro leva. (Lembram de Fernanda Montenegro?). A não ser que haja judeus em posição de importância na equipe. Este ano, o filme "intruso" com mais chances é O Artista. Mas O Artista está sendo encarado praticamente como um filme americano. Tanto assim, que sequer concorre a melhor filme em língua estrangeira. Pode-se alegar que é mudo, mas, de qualquer forma, é um filme francês. Carrega um carácter francês de ver, vestir e sentir o mundo - apesar de homenagear o cinema mudo americano dos anos 20. O Artista possui, de outro modo, melhores chances que o filme iraniano de ser bem sucedido nessas "reservas de mercado". Até porque, querendo ou não, com o forte poder de barganha dos judeus norte-americanos e de Israel - que de outro modo deve beneficiar em linha reta Meryl Streep e tem apoiado tudo que se vincula a Spielberg (quando há margem) - Hazanavicius, o diretor de O Artista, é filho de judeus-lituanos. Não por coincidência, o produtor de O Artista, Thomas Langmann, também é judeu. Ou seja, o filme é francês mas está em casa. Alguma ou muita coisa vai faturar. A tensão política e os últimos acontecimentos no Oriente Médio, do contrário, vão interferir contra o filme de Farhadi (Uma Separação). O lobby, aqui, é de arrancar pedaço de celuloide. E antes fosse de celulite - embora, convenhamos, um poquinho de celulite, uma leve insinuação, tem lá seu valor neste mundo moldado por botox e academias. Então se Uma Separação ganhar em categorias para além de Melhor Filme em Língua Estrangeira, já será uma enorme surpresa. Mas isso não deve ocorrer).


Roteiro Adaptado
Entre John Logan (Hugo); e Bridget O'Connor/Peter Straughan (Tinker Taylor Soldier Spy)
Cravado: John Logan (Hugo)
Azarão: Alexander Payne, Nat Faxon e Jim Rash (The Descendants)

Melhor Filme em Língua Estrangeira (a maior barbada)
Cravado: A Separation (Irã, falado em persa)
Azarão: In Darkness (Polônia, em polonês) ou Footnote (Israel, em hebraico) - mas seguem, aqui, apenas para constar.

Cinematografia (ou Direção de Fotografia)
Entre Guillaume Schiffman (The Artist) e Janusz Kamiński (War Horse)
Cravado: Janusz Kamiński (War Horse)
Azarão (pero no mucho): Emmanuel Lubezki (The Tree of Life)


No frigir, O Artista tem tudo para ser o grande ganhador da noite. Se vai ser, são outros seiscentos. Seus concorrentes diretos, por ordem de importância, são Hugo, The Tree of Life e Tinker Taylor Soldier Spy. Quanto menos estes filmes ganharem, mais a parte do leão será d'O Artista. E há uma boa perspectiva para Sérgio Mendes e Carlinhos Brown (que é um poço de sorte), já que existe apenas uma outra canção no páreo. Ainda que essa outra, Man or Muppet, de Brett McCenzie, venha sendo apontada como favorita. E, no entanto, não seria recado irônico ao cinema brasileiro um primeiro Oscar dado... à música? 


Como de uso, vários filmes mereceriam indicação bem mais do que alguns que o foram. La Piel Que Habito, Melancolia e Shame, por exemplo, foram um tanto subestimados. Assim como Drive. Midnight in Paris poderia concorrer a mais categorias. Há tempos Woody Allen não tramava algo tão engraçado. Talvez a Academia haja julgado o western Meek's Cutoff como excessivamente difícil. E é. Mas é também um filme que tem tudo para não envelhecer. O coreano Poetry abriria mais concorrência à Uma Separação que qualquer dos outros filmes indicados em língua estrangeira. O mesmo vale para The Mill and The Cross, produção sueco-polonesa dirigida por Lech Majewski; o italiano Le Quattro Volte; e, ainda na casa dos aindas, o turco Once Upon a Time in Anatolia. E blá. Blá. Blá? De outro modo, uma desafinação: Extremely Loud and Incredibly Close é reputado por muitos críticos como a pior produção jamais indicada ao Oscar de melhor filme. O certo é que provavelmente Uma Separação é por quem bate o coração de muitos cinéfilos. Ampliem acima a foto de Leila Hatami e observem-na por alguns segundos ao som de "Layla" com seu riff crispado, de guitarras no cio. E o filme está bem resumido na beleza forte, tocada, desse rosto de mulher. Mesmo envergando véu. Et pour cause. 

O meu voo não suporta vous


4 pegas em coventry

quatro pegas pousaram num varal.
a mais nova disse: “mais tarde vou dançar na union”.
a primeira do meio falou: “ah, pois eu vou prum show da adele”.
e a segunda do meio: “eu vou é pro sarau da sociedade de poesia”
o vento frio sacudiu três pulôveres verdes. e as três olharam para a mais velha.
então, a mais velha disse: “divirtam-se, mas o meu voo não suporta vous”.
e bateu asas.


quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

6 pegadores no varal



i. 
é estranho ver essas atrizes jovens de tarde. lembrar de como imantavam nossos olhares em torno do monitor, vertendo desejo e sonhos por todo lado, o perfume delas transpondo cristais. 
de noite, bem, já são mães das que nos atraem.
e provavelmente sentem-se atraídas por nossos filhos

ii. 
as voltas dão muita vida

iii. 
ao contrário de zé do caixão não digo: “esta noite levarei tua alma”, mas “esta noite, lavarei tua alma”

iv. 
adoro quando você deixa uma pista fora de hora. de haver visto algo leve como uma acrobata de buriti. e é como o quê? é como se nata pairasse um pouco sobre a baguete antes de molhá-la

v. 
um livro é uma bela coleção de espaços vazios um tanto quanto sujos de letras

vi. 
é, não tem a mínima chance de escapar ileso: 
um homem sem chifres é um animal indefeso
[da sabedoria popular]


vii. 
a segunda melhor coisa de fortaleza é partir, a terceira nem sempre voltar. a primeira? só lhe digo ao vivo, como deve ser, numa mesa de bar

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Um você ainda mais urgente

Cecilia Beaux, Le derniers jours d'enfance, 1885

Pelo modo como as mulheres enchem a boca ou não para dizer “você” é possível saber se estão apaixonadas. E o quanto. Tem algo desse tumulto – só que mais desesperado – na voz dos meninos: 

Você, Você (Uma canção edipiana)

Que roupa você veste, que anéis?
Por quem você se troca?
Que bicho feroz são seus cabelos,
Que à noite você solta?
De que é que você brinca?
Que horas você volta?

Seu beijo nos meus olhos, seus pés
Que o chão sequer não tocam,
A seda a roçar no quarto escuro
E a réstia sob a porta.
Onde é que você some?
Que horas você volta?

Quem é essa voz?
Que assombração
Seu corpo carrega?
Terá um capuz?
Será o ladrão?
Que horas você chega?

Me sopre novamente as canções
Com que você me engana.
Que blusa você, com o seu cheiro,
Deixou na minha cama?
Você quando não dorme,
Quem é que você chama?

Pra quem você tem olhos azuis
E com as manhãs remoça
E à noite, pra quem
Você é uma luz
Debaixo da porta?
No sonho de quem
Você vai e vem
Com os cabelos
Que você solta?
Que horas, me diga que horas, me diga
Que horas você volta?

Letra de Chico Buarque (para um tema de Guinga)

O modo como o amante da mãe é um monstro, Bicho-Papão que assombra a vida do menino, percorre toda a letra. Nesse estado de neurótica desconfiança, inquisição e ciúme, o menino não pode esquivar-se de estar mergulhado. Como esteve antes, no líquido amniótico. Ou de seguir perguntando. Compulsão. Antecipado interrogatório. E, pior, não há como competir. E há mesmo o ponto em que o autor não quis ser explícito, embora esteja lá: "quem é que você (ch)ama?" ("Eu ou o Lobo Mau?" bem podia ser a continuação da pergunta). E esse não tocar os pés no chão que está presente também nas impossibilidades de "Beatriz". A dolência do ritmo, as dissonâncias, a intrincada harmonia (marca registrada de Guinga) emprestam a essa anti-canção de ninar a feição daqueles “clássicos discretos”, como "Valsa Brasileira" (com Edu Lobo), “Trocando em Miúdos” (com Francis Hime), "Todo Sentimento" (com Cristóvão Bastos), "Cadê Você" (com João Donato); e, dele próprio, "Basta um Dia" ou "Futuros Amantes". O mais são rimas toantes (aprendidas com Cabral?) e destreza com palavras. 

Para uma versão com a cantora portuguesa Bruna Pintus:

Para a interpretação (ao vivo) do próprio Chico Buarque, antecedida pela explicação sobre a obsessão do neto, Francisco, pela mãe/filha:


terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Simultaneidades sinuosas


Segunda-feira à tarde, deitado na rede, ouvindo As Pastorinhas. De repente, o chegadinho passa. E o triângulo vibra no exato tom em que a música está sendo tocada. 
Da vida, nada sei. Sinto. Mas o estofo da poesia é feito de simultaneidades assim.
Há essa luz lavada entrando pelas venezianas. Mais intensa depois que podaram, bem rente o fícus. Um espasmo de luz seguido a três dias de chuva. Há um travo de marmelada com creme de leite. Algum bem-te-vi avulso. A voz de uma criança reclamando uma fantasia de hacker. Como será? E tardes assim de pós-chuva numa cidade que só lembrança.
Cai chuva. Escorre pingo. Passa tempo.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Arquelogia dos Carnavais Pré-Hecatômbicos



A gente se via por ali

Num futuro, onde não seremos mais que geleiras extintas em montanhas tropicais, arqueólogos descobrem algo, Fulana: uma mulher caminhando com um pacote em um comercial. Ou seria num poema? Mas é um mundo outro. Perdeu a pista do nosso. Veem o fim de um dia de desfiles. E pensam esse primitivo, estranho rito. Bocejam ao cantochão dos sambas-enredos.
No Globo Rural, as vacas seguiam mais carnavalescas para o pasto num Domingo Gordo. Talvez entoando As Pastorinhas entre um e outro mugido compungido. E o expectante traçava o repasto ofertado pelo plim-plim. E o bem-te-vi bem pousava, sob as bençãos de Padre Marcelo, na franja úmida da manhã. Os beijos, juras, sambas entoados em sussurro, noites namoradas. Enquanto isso, na Sapucaí, no Alto da Misericórdia, no Circuito do Farol, milhares de foliões desfoliavam sob a chuva, numa espécie de última cruzada. O tal caso de amor extinto na tela da TV, em que a gente se via por ali.


sábado, 18 de fevereiro de 2012

Deu no Guardian: Campeonato Cearense



Isso é só o começo, pois nós, no íntimo, sabemos quem dominará o mundo

E o campeonato cearense acabou ganhando uma nota no Guardian, edição de hoje. Nem o Gaúcho, nem o Carioca: o Cearense. É certo que não propriamente pelos méritos esportivos, muito menos mercadológicos, do certame. Mas tá valendo. Lembro de uma vez comentar com uma colega inglesa o jeito como mais comumente se pronunciava o “sporting”, de Ceará Sporting. Ela me olhou espantada, abriu um sorriso, e disse: “mas é idêntico ao modo como os aristocratas londrinos pronunciam”. E aí depois aprendi que a turma que sacode as joias diz "tchá" por "tea". E eu nem que desconfiava vir de um povo aristocrata. 
Eis o teor completo da pequena nota:

President of the week

Brazil: Fortaleza's Osmar Baquit – fined 100 reals (£40) for calling match officials "crooks, thieves, a gang of tramps, a legion of thugs" while being restrained by military police. Baquit: "I know I shouldn't act like that but I'm a passionate president. Maybe I'll do it again in the next match."

Presidente da Semana

Brasil: Osmar Baquit, do Fortaleza – multado em 1oo reais (40 libras) por chamar o trio de arbitragem de “velhacos, ladrões, um bando de vagabundos, uma ruma de imprestáveis” enquanto era contido pela polícia militar. Baquit: “sei que não devia agir assim, mas sou um presidente apaixonado. Capaz d'eu fazer a mesma coisa, próximo jogo”.

A fruta com nome de instrumento musical



Verbetes ao Vinagrete, Volume Dois
GRAVIOLA

sf 1 V cherimólia. 2 Peça de madeira em que, nos estaleiros, repousa a quilha dos navios. 3 Fruto da graviola-do-norte. G.-do-norte: árvore anonácea frutífera (Anona muricata). Var: gravéola
[Dicionário Michaelis da Língua Portuguesa]

*

sf.
1. Bras. Bot. Árvore da fam. das anonáceas (Annona muricata), originária das Antilhas, de frutos com polpa comestível de que são feitos sucos e sorvetes; ANONA; ATA; PINHA
2. Bot. O fruto dessa árvore.
3. Bras. Ict. Peixe (Platydoras costatus) de água doce.
[F.: De or. Incerta.]
[Dicionário Aulete da Língua Portuguesa]

A maioria dos dicionários portugueses não registra graviola. 

______________________

A graviola é a fruta com nome de instrumento musical. Por alguma razão junto a ela estão esquinas próximas do Colégio General Osório na década de 70. E sua carne tenra de fruta aquosa guarda algo da tez branca, pré-palimpséstica que as meninas portam da sexta para a oitava séries. E são aquelas meninas cujos nomes acompanham a gente para o resto da vida, e entram para o acervo e polpa dos pequenos mitos. A graviola existe aberta, com o tecido exposto, num dia de muitas e espessas nuvens brancas mas de céu azul. Leque com motivos orientais bordados no branco sobre branco ou o Santos em grande dia. Proa de iate quebrando contra ondas e espumas. E assim, aberta, espumante, é mais do que quando está no pé, e se resguarda numa armadura verde, cheia de ressentimentos, nervuras, rugas, espinhos.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

A nostalgia do caminho

Lee Ufan, 2009

Andava para cima. Às vezes, para baixo – mas era mais raro. Tinha dos vagabundos a nostalgia dos caminhos. E não só dos vagabundos. Dos loucos. Dos tensos, ansiosos. Dos cheios de desvios. Dos oscilantes entre dois polos. Dos que lutaram em guerras de reconquista contra a demência. Dos completamente desvairados, sem esperança, que tomam sorvete de inadimplência quando o dia vai ao meio. Dos que aprenderam a amar no tempo frágil do sem valor. Dos que quando expiram é o vento nos ramos do jambeiro. E amar aquilo que surge prestes a desaparecer à frente da gente. Feito miragem, escultura efêmera. Assovio. Lua de Saturno. 

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Ainda Marchinhas de Carnaval


Se o Carnaval tem hino? Vários. Pode bem ser o alucinado frevo Vassourinhas, que é de 1909, e tem combustível de suingue para séculos adiante. Começou com uma letra, da qual divorciou-se para se apreciar melhor a música. Mas o que fazer se o frevo madruga lá em São José? Agora, a maioria desses hinos segue no andamento compassado das Marchinhas. Fosse por idade, e seria Ô Abre Alas, de Chiquinha Gonzaga, que é de 1899. Cidade Maravilhosa e Bandeira Branca estão entre as candidatas, assim como Máscara Negra. Mas marchinha por marchinha, há uma mais clássica: As Pastorinhas (1934), de Noel Rosa e João de Barros. Ela afirma o gênero, e ao mesmo tempo o esgota. Há em As Pastorinhas um caminho individual dentro do coletivo, capaz de inspirar um carnaval inteiro. 

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

4 vieses pelo mundo




i.
O Irã baniu a pena de morte por apedrejamento. Mas não ficou claro que modalidade de execução a substituirá. Se a cadeira elétrica ou a injeção letal, como nos Estados Unidos. Se o fuzilamento ou a forca, como em outros países onde há pena capital.

ii.
A Polícia do Senado é a mais bem paga do Brasil: R$ 13.800,00 para um subalterno em início de carreira. Trabalha muito menos que as outras, pois o Senado passa meses em recesso, além de funcionar, na prática, apenas de segunda a quinta. Corre menos riscos. Ainda assim, os senadores são massivamente contra um piso salarial unificado para as polícias estaduais. No Distrito Federal, onde se paga melhor, um PM ganha R$ 4.300,00. É 1/3 do salário da Polícia do Senado com muito mais trabalho e riscos envolvidos. O temor de deputados e senadores é de que um aumento assim possa alavancar demandas em outras áreas. Inclusive entre os militares das forças armadas. Mas a maioria das polícias estaduais paga menos de três mil reais. É muito pouco. E a própria concorrência para entrar na polícia se vê reduzida em escolaridade e nível.

iii.
Um blogueiro saudita é deportado da Malásia para seu país de origem. A acusão que pesa contra Hamza Kashgari: haver insultado Maomé, o profeta, no Twitter. Kashgari pode ser condenado à morte. Dois pesos, duas medidas. Os mesmos Estados Unidos e Israel que lamentam direitos humanos violados na Síria, no Irã, calam-se diante da aliada preferencial Arábia Saudita.

iv.
E Sean Penn atraiu a ira perpétua dos britânicos ao dizer que as Malvinas devem ser Argentinas. 


terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Ser diferente


Antoni Tàpies

-Tem uma coisa de homem sentir dor de dente – disse a caixa não gestante para a gestante.
-Mas dor de parto que é bom...
-O meu, cheguei em casa da maternidade, no mesmo dia foi jogar bola.
-É. Mas com o Cristiano Ronaldo vai ser diferente - disse a outra, passando a mão no ventre.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Uma Bastilha em Bruxelas e uma Maria Antonieta em Berlim


Ontem foi a noite mais agônica para os gregos. Eles entendem de agonia. A palavra vem deles. O país beira o colapso. O atual primeiro-ministro, Lucas Papademos, sequer convocou a população para um referendo sobre as novas medidas de austeridade. Elas são recorrentes. E enquanto o parlamento votava as medidas, uma multidão enfurecida queimava o Centro de Atenas. O referendo fora uma sugestão de George Papandreou, que deixou a liderança do governo grego em novembro último. Ao contrário dele, Papademos é visto como um marionete dos interesses da troika. A população não aguenta mais medidas severas e ter de pagar pelos equívocos dos políticos. Wolfgang Schäuble, ministro alemão de finanças, entende que o resgate da Grécia é mais complexo que a reunificação alemã. A saída do país da Zona do Euro pode-se dar a qualquer momento. Não é nada improvável. Assim como a moratória. E sabe-se lá o que desencadearia. Portugal, Itália, Espanha e França estão na fila. E por um fio. De outro modo, um comentário no Telegraph resume o acúmulo de reveses e humilhações que os helênicos têm experimentado desde 2010: “alguém tem de dizer aos gregos que a Bastilha deles fica em Bruxelas; e a Maria Antonieta, na Alemanha”. Até o Guardian, tradicionalmente pró-Europeu, lamentou em editorial as sucessivas agruras experienciadas pelos gregos. Em certos casos, para renascer é preciso morrer. E faz tempo que a Grécia respira por aparelhos. E não poucos críticos têm apontado para o modo impessoal e contabilista com que Angela Merkel vem conduzindo a crise grega. O país, além de haver perdido a soberania, está refém de uma política que volta suas melhores energias não para o crescimento econômico mas para um amortecimento de dívida que inviabiliza qualquer expansão até 2020. É uma década inteira de retrocesso. E, pior, pela proa.

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Dois Prismas sobre Benjamin



O assomar do desejo realizado

Assinalar Walter Benjamin é caracterizar seu estilo. Entre todos os textos que buscam uma caracterização de Benjamin escritos por seus amigos e colaboradores, o mais belo e lúcido – e também o mais rigoroso, exacto – vem a ser “Um Retrato de Walter Benjamin”, de Adorno. E olha que belos textos sobre o ensaísta berlinense não faltam. Como atestam os artigos de Gerschom Scholem (em vários momentos) e Hannah Arendt (em Homens em Tempos Sombrios). Vejamos como Adorno trata a ensaística em geral - e a ensaística de Benjamin em particular - em dois tempos que podem ser lidos como cristais ou prismas:

i
[O entremeio do argumento]
O como da expressão deve socorrer, em exactidão, o que a recusa às linhas gerais sacrifica, sem, contudo, entregar o tema visado à arbitrariedade de significações previamente decretadas. Nisto, Benjamin foi um mestre inigualável. Essa precisão contudo não deve permanecer atomizada. Não menos importante, mais que o processo de definir, o ensaio convoca a interação recíproca de seus conceitos no processo da experiência intelectual. No ensaio, os conceitos não constroem um continuum de operações; embora não avancem numa direção única, ao reverso, os aspectos do argumento entremeiam-se como num tapete.
[ADORNO, Theodor W., “The Essay as Form”, in The Adorno Reader, (translated by Brian O'Connor), Oxford (UK) and Malden (MA): 2002, p. 101,]


ii
[literalmente para a realização do desejo]
Tudo o que Benjamin disse ou escreveu soa como se, ao invés de rejeitar as promessas dos contos de fada e dos livros infantis em nome de uma usual e infame 'maturidade', ele as tomasse tão ao pé da letra que a própria realização [ou presentificação] do desejo surgisse então à vista do conhecimento.
[ADORNO, Theodor W., “A Portrait of Walter Benjamin” in Prisms, (translated by Sherry Welber Nicholsen and Samuel Weber), Cambridge, MA: 1981, p.230]


Para mais Benjamin em Afetivagem, aqui.