[Após uma leitura de Sobrados e Mucambos]
Há
um momento na poesia de João Cabral em que ele compara o canavial ao
mar. E quem alguma vez passou em viagem pela Zona da Mata deve ter
constatado o quanto a comparação procede. A uniformidade da
monocultura transforma a paisagem num grande mar de cana-de-açúcar.
E não é uma estranha literalidade que esse mar vegetal tenha sido
exatamente o que possibilitou a transposição do outro, mineral, e a
fixação do homem à terra no início de tudo? Se é assim, as
extensões de ondas desse mar interior têm como medida as frases da
prosa de Gilberto Freyre, pois ele, mais que ninguém, as entendeu. E logrou a
proeza de colecionar uma terra. Ou sobre ela tecer uma
elegia.
*
*
Há
uma espécie de casuística que dá o mote e simultaneamente amarra o
assunto de que trata Gilberto Freyre nos gordos capítulos que ele
dedica ao Brasil talássico dos tempos da Colônia, do Império, da
República Velha. Sua exposição é temática e sincrônica,
perfeitamente avessa à diacronia. Sua falta de sistema é tão
mais cativante quanto antológica. Entenda-se antológica menos com o sentido de depuração, de filtragem do melhor, e mais como vontade de compilação que segue por fundos mergulhos ao pormenor mais comezinho. Um colecionismo. Ou, por igual, a de seguir com a narrativa
pela consecução das anedotas. Pois nos livros da trilogia
freyreana [Casa Grande & Senzala; Sobrados e Mucambos; e Ordem e Progresso], o método é a digressão. E as páginas vão-se sucedendo
de uma a outra divagação, como ondas quebrando contra a quilha das teses.
Circula-se pelo mapa do país inteiro e desce-se ao porão dos assuntos. Mas sempre se volta ao Recife, mais ou menos como se volta à mancha, à invulnerabilidade nos jogos infantis. Ou ao primeiro amor. E se a circunvizinhança de engenhos e canaviais, em Freyre, propõem-se como resumo do país, o Recife é o fio de sua navalha crítica. E, embora esse anedotário vergue-se sobre cada mínimo aspecto da vida cotidiana, quando a estampa se dá distante do universo recifense (e de seu entorno rural) são, no mínimo, a ele comparados, a título de aferição. Pois é preciso trazer de volta tudo para perto da zona de luz, da referência. E a zona de luz e a referência, como na poesia de João Cabral, encontram uma espécie de equivalente concreto, objetal – de resto, bastante literal, efetivo - na paisagem pernambucana. E, então, é como se essa paisagem – e as outras apenas por analogia à ela - constituísse metáforas e imagens prontas, acabadas de um Brasil arcaico, mas de algum modo imprescindível para a compreensão do atual. E imagens semelhantes, digamos, às que Benjamin irá perceber, difusas, brotando fugazmente de objetos e de tipos humanos que prenunciam a modernidade urbana, a vida nas grandes metrópoles, coalhada de referencialidades e estímulos sensitivos.
Tão distante dessas metrópoles era a Recife de Freyre do tempo colonial e do império. Mas não menos carregada de sua própria coleção de estímulos sensitivos e referencialidades, de sua forêts de symboles. Uma cidade de tempo longo e lento. Assim, quando em Freyre há uma saída do litoral de Pernambuco, o veículo é, como dissemos, a analogia, o paralelismo. E como vão bater longe algumas dessas analogias. Podem chegar à Europa, à Índia, à China. E a exemplo de certas teses presentes no texto, assomam um tanto insustentáveis, volta e meia. E, no entanto, as anedotas e casos que alicerçam essas teses é que constituem, em si, o grande patrimônio, o acervo mais precioso, o generoso catálogo que é a obra freyreana. E além desse catálogo, o que mais ela é, senão um desejo de entender mentalidades no Brasil, desde que o país ainda não era mais que uma criança, em termos daquela primeiridade de que nos falam autores como Vico ou Peirce? Uma primeiridade que vem mais da intuição que da idade.
Quando Gilberto Freyre trata, por exemplo, do ato de defecar, chega até ao urinol e suas gradações. E, nas páginas seguintes, há já toda uma “urinologia”. E se entende, então, a influência decisiva do urinol, enquanto artefato, não só dentro do sobrado aristocrático - para sociabilidade das mulheres e até para o trabalho intelectual dos homens - mas também para que ruas e praças se transformem num verdadeiro desastre em termos de saneamento no Brasil até meados do séc. XX. E assim, por surtos digressivos, nutrindo-se da anedota, mordendo a circunstância, como uma sorte de Xerazade, a propor uma antropologia que é muito mais um relato à nova história – e quando esta ainda não havia sequer produzido algo tão sumarento e nuançado em francês – nos deparamos com a obra não só de um sociólogo, não apenas de um (micro-)historiador ou atento etnólogo, mas sobretudo de um escritor de uma verve absolutamente singular:
Circula-se pelo mapa do país inteiro e desce-se ao porão dos assuntos. Mas sempre se volta ao Recife, mais ou menos como se volta à mancha, à invulnerabilidade nos jogos infantis. Ou ao primeiro amor. E se a circunvizinhança de engenhos e canaviais, em Freyre, propõem-se como resumo do país, o Recife é o fio de sua navalha crítica. E, embora esse anedotário vergue-se sobre cada mínimo aspecto da vida cotidiana, quando a estampa se dá distante do universo recifense (e de seu entorno rural) são, no mínimo, a ele comparados, a título de aferição. Pois é preciso trazer de volta tudo para perto da zona de luz, da referência. E a zona de luz e a referência, como na poesia de João Cabral, encontram uma espécie de equivalente concreto, objetal – de resto, bastante literal, efetivo - na paisagem pernambucana. E, então, é como se essa paisagem – e as outras apenas por analogia à ela - constituísse metáforas e imagens prontas, acabadas de um Brasil arcaico, mas de algum modo imprescindível para a compreensão do atual. E imagens semelhantes, digamos, às que Benjamin irá perceber, difusas, brotando fugazmente de objetos e de tipos humanos que prenunciam a modernidade urbana, a vida nas grandes metrópoles, coalhada de referencialidades e estímulos sensitivos.
Tão distante dessas metrópoles era a Recife de Freyre do tempo colonial e do império. Mas não menos carregada de sua própria coleção de estímulos sensitivos e referencialidades, de sua forêts de symboles. Uma cidade de tempo longo e lento. Assim, quando em Freyre há uma saída do litoral de Pernambuco, o veículo é, como dissemos, a analogia, o paralelismo. E como vão bater longe algumas dessas analogias. Podem chegar à Europa, à Índia, à China. E a exemplo de certas teses presentes no texto, assomam um tanto insustentáveis, volta e meia. E, no entanto, as anedotas e casos que alicerçam essas teses é que constituem, em si, o grande patrimônio, o acervo mais precioso, o generoso catálogo que é a obra freyreana. E além desse catálogo, o que mais ela é, senão um desejo de entender mentalidades no Brasil, desde que o país ainda não era mais que uma criança, em termos daquela primeiridade de que nos falam autores como Vico ou Peirce? Uma primeiridade que vem mais da intuição que da idade.
Quando Gilberto Freyre trata, por exemplo, do ato de defecar, chega até ao urinol e suas gradações. E, nas páginas seguintes, há já toda uma “urinologia”. E se entende, então, a influência decisiva do urinol, enquanto artefato, não só dentro do sobrado aristocrático - para sociabilidade das mulheres e até para o trabalho intelectual dos homens - mas também para que ruas e praças se transformem num verdadeiro desastre em termos de saneamento no Brasil até meados do séc. XX. E assim, por surtos digressivos, nutrindo-se da anedota, mordendo a circunstância, como uma sorte de Xerazade, a propor uma antropologia que é muito mais um relato à nova história – e quando esta ainda não havia sequer produzido algo tão sumarento e nuançado em francês – nos deparamos com a obra não só de um sociólogo, não apenas de um (micro-)historiador ou atento etnólogo, mas sobretudo de um escritor de uma verve absolutamente singular:
Mas
esses urinóis, às vezes grandes, chamados “capitães”, outras
vezes de louça, muito bonitos, cor-de-rosa, com enfeites dourados,
onde as mulheres—contam as pessoas mais velhas—se sentavam
fumando e conversando, nas suas camarinhas; esses urinóis eram dos
aristocratas, dos burgueses mais lordes. Ainda hoje, alguns não
querem saber de meio mais cômodo de defecar; morreu há pouco no Rio
um médico ilustre, da geração mais antiga, e de formação
ortodoxamente patriarcal, que, sentado no seu vasto urinol, lia e
estudava todas as manhãs. Alguns fidalgos mais comodistas, de
sobrado ou de casa grande, tinham na alcova poltronas especiais,
furadas no meio do assento, por baixo do qual ficava o urinol. O
grosso do pessoal das cidades defecava no mato, nas praias, no fundo
dos quintais, nos pés dos muros e até nas praças. Lugares que
estavam sempre melados de excremento ainda fresco. Lucock diz:
“thickly strewed with ever fresh abominations”. Isto sem falarmos
da urina, generalizado como era o costume dos homens de urinarem nas
ruas; e de nas ruas se jogar a urina choca das casas ou dos sobrados
sem quintal.
[Sobrados
e Mucambos, Global, São Paulo: 2004, 15ªEd., 317, 318]
Ou:
Os
urubus vinham com uma regularidade de empregados das câmaras pinicar
os restos de comida e de bicho morto e até os corpos de negros que a
Santa Casa não enterrava direito, nem na praia, nem nos cemitérios,
mas deixava no raso, às vezes um braço inteiro de fora. Com a mesma
regularidade burocrática a maré subia e levava a imundície das
praias.
[313]
Ou
ainda:
O
hábito de defecar de cócoras, à maneira dos índios, de tal modo
se generalizou não só entre a gente rural como entre a população
mais pobre das cidades, que ainda hoje há brasileiros distintos, de
origem rural, ou então humilde, incapazes de se sentarem nos
aparelhos sanitários: só acham jeito de defecar pondo-se de cócoras
sobre a tampa do W.C., que às vezes deixam toda emporcalhada. Daí
serem tão raros, no Brasil, os W.C. Públicos limpos ou asseados.
[316]
[316]
Notem
que nesse estudo das precárias condições gerais de
higiene e sanitarismo, a parte mais exponencial está no conjunto de
exemplos compilados. E, opostamente, quando surge uma tese, como a que explica a raridade dos W.C. públicos asseados, ela não parece tão
convincente assim. Até porque, no caso, seguindo o que o próprio
Freyre nos ensina no livro anterior [Casa Grande & Senzala], o
índio foi quem, com seu hábito de nomadismo e muitos banhos à
beira-rio, minorou um tanto a clássica falta de asseio do português, no contato inicial entre as duas culturas. É nitidamente do indígena que o brasileiro herda essa compulsão por banhos. E há pessoas que não se sentem limpas se não tomarem dois ou mais banhos diários.
Outro aspecto sublinhável da obra de Freyre vem a ser um saudável anti-maniqueísmo. Os escravos podem ser safados e ladinos para além de sofrerem sevícias e castigos diabólicos. E há pelo menos um senhor de engenho que, na confissão por escrito, revela-se justo e até fiel no casamento. E se ele se demora em debuxar um perfil francamente favorável dos judeus nem por isso se furta de igualmente lhes apontar as desonestidades nos negócios, os juros escorchantes que praticavam, assim como margens de lucro que só há em histórias de Trancoso. Há, por igual, calculadas doses de humor que são ministradas sobretudo por violentos contrastes e alguma desfaçatez. Como no caso de descrever a merda fresca pela rua e apôr logo em seguida a citação em inglês, "thickly strewed with ever fresh abominations" ["espessamente revestidas de abominações ainda frescas"], onde a solenidade é tal que oximora-se diante do cocô que besunta as ruas.
E,
por outro lado, há na obra de Freyre também uma profunda
melancolia, porque toda ela estrutura-se em torno de um mundo que já
havia desaparecido. Ou, bem, estava prestes a desaparecer. Um mundo na
iminência de virar espectro. Mundo ruinoso. Condenado. Cheio de rachaduras
fatais. Que já tinha conhecido seu momento mais cintilante. Ou podia divisá-lo ao longe. Algo que
nos remete, ainda uma vez, para o Benjamin que nos ensina que “aquilo
que se sabe estar prestes a não se ter mais diante de si torna-se
imagem”. Assim é o universo semi-rural de Freyre, já quase uma miragem ao tempo que ele escreveu seus livros. E sua obra não
é mais que um trabalho de luto em torno dessa imagem que desvanece,
pois trata de um universo em seus estertores. Outro aspecto sublinhável da obra de Freyre vem a ser um saudável anti-maniqueísmo. Os escravos podem ser safados e ladinos para além de sofrerem sevícias e castigos diabólicos. E há pelo menos um senhor de engenho que, na confissão por escrito, revela-se justo e até fiel no casamento. E se ele se demora em debuxar um perfil francamente favorável dos judeus nem por isso se furta de igualmente lhes apontar as desonestidades nos negócios, os juros escorchantes que praticavam, assim como margens de lucro que só há em histórias de Trancoso. Há, por igual, calculadas doses de humor que são ministradas sobretudo por violentos contrastes e alguma desfaçatez. Como no caso de descrever a merda fresca pela rua e apôr logo em seguida a citação em inglês, "thickly strewed with ever fresh abominations" ["espessamente revestidas de abominações ainda frescas"], onde a solenidade é tal que oximora-se diante do cocô que besunta as ruas.
Sua tarefa é traçar os inventários desse universo quase perdido, seus diagramas. E no momento mesmo em que surge a usina, e o engenho, que já vinha de um longo declínio, ameaça apagar-se de vez. Também da memória. E é daqui que provem seu caráter de colecionismo. E a indelével vocação
elegíaca. Ou a simpatia que Freyre nitidamente nutre pela figura do
mais fraco. Ou por certa condição de fragilidade ou vulnerabilidade. Foi isso o que o levou a tomar como assunto elementos até então banidos pelo
próprio patriarcalismo, machista e monocultor, que ele assunta: a
criança, a mulher, o judeu, o negro, o mestiço, etc. Muito antes que isso fosse feito na Europa, aliás. O pária de um modo geral tem a simpatia de Freyre. Discorrendo sobre a astúcia comercial dos mascates judeus alsacianos, contumazes visitadores das casas grandes e dos sobrados no sec. XIX, ele também sublinha um mérito social quase despercebido à maioria:
Do outro lado e contraditoriamente, ele não quer ver esse patriarcalismo e essa monocultura perecerem de todo, porque seria a própria sentença de morte de um estilo de vida que, a despeito de sua brutalidade – que ele em nenhum momento suaviza, ao contrário do que dizem seus críticos - foi o de sua infância. Ora, a imago da infância fabula e imagina liberdades e fantasias possíveis mesmo num meio de extrema rarefação delas, como o do patriarcalismo de engenho na monocultura açucareira. A obra de Freyre, assim, bem pode ser vista como a vendeta do menino que, envolto na beleza da paisagem e da mestiçagem, vivia aflito pelo inflexível despotismo dos adultos:
Com
todas as suas espertezas e até gatunices, esses mascates tiveram sua
função útil junto a um sexo recalcado, cuja vida eles de algum
modo alegravam com suas joias, suas fazendas, seus vidros de perfume,
seus santo-antoninhos de faces cor-de-rosa que as iaiás solteironas
“trocavam” às vezes por enormes rolos de renda fina feita em
casa por elas e por suas molecas. Esses Santo Antônios bonitinhos
ficavam então o objeto de uma devoção intensa e, em certos casos,
de práticas de fetichismo sexual, recordadas pela tradição oral.
[141]
Do outro lado e contraditoriamente, ele não quer ver esse patriarcalismo e essa monocultura perecerem de todo, porque seria a própria sentença de morte de um estilo de vida que, a despeito de sua brutalidade – que ele em nenhum momento suaviza, ao contrário do que dizem seus críticos - foi o de sua infância. Ora, a imago da infância fabula e imagina liberdades e fantasias possíveis mesmo num meio de extrema rarefação delas, como o do patriarcalismo de engenho na monocultura açucareira. A obra de Freyre, assim, bem pode ser vista como a vendeta do menino que, envolto na beleza da paisagem e da mestiçagem, vivia aflito pelo inflexível despotismo dos adultos:
Essa
pedagogia sádica, exercida dentro da casa-grande pelo patriarca,
pelo tio-padre, pelo capelão, teve com a decadência do patriarcado
rural seu prolongamento mais terrível nos colégios de padre e nas
aulas dos mestres-régios. Mas principalmente nos colégios de Padre
do tipo do Caraça. Os pais autorizavam mestres e padres a exercerem
sobre os meninos o poder patriarcal de castigá-los a vara de marmelo
e a palmatória.
[…]
“Caraça!”
“Mando-te para Caraça!” Os mineiros antigos, piraquaras e do
Norte, dizem que era o nome com que se fazia medo aos meninos mais
valentes.
[184]
A
confusão sobre seus méritos estabelece-se aqui. Pois, de nenhum
modo, ele toma o partido da elite. A elite é coisa de adultos. Muito
ao contrário. Antes de tudo, é da criança que ele toma partido. O
menino para ele representa sempre mais liberdade que o homem. E é
com pesar que ele lamenta em velhos padres tirânicos, que moviam
internatos como o Caraça (MG), a continuação do brutal despotismo dos
pais. Sua preocupação com a pedagogia é notável. Ou há uma lástima de nota quase pessoal quando constata o
quão cedo rapazotes tinham de assumir funções de grande
responsabilidade pública – caso do próprio imperador. Ou o quanto eram já velhos na juventude por essa circunstância, bem como pela total falta de vida ao ar livre e atividades físicas. Joaquim Nabuco, por exemplo, sequer sabia montar a cavalo, aponta ele.
Da mesma forma, à mulher portuguesa ele
credita uma capacidade de civilização decididamente superior à do
homem. E a todo instante, ressalta a importância dos judeus ou
cripto-judeus para viabilizar, mediante financiamentos, a empresa do
açúcar e a da extração do ouro. Mas também o deambular dos mascates no sec. XIX
e uma série de outros serviços prestados à empresa da civilização
no Brasil. E esta visão favorável e inclusiva se dá, à sua vez, num momento em que os judeus andavam hostilizados a
torto e a direito numa Europa dominada pelo fascismo. Sem falar que o
negro, pela primeira vez é, então, posto como elemento decisivo - ainda mais que o branco, em determinados aspectos - para a
consolidação de nossa cultura. Não é pouca coisa, quando se
lembra das teses racistas que imperavam até a década de 20 do século
passado e ainda são praticamente contemporâneas à publicação
de Casa Grande & Senzala, o primeiro volume da trilogia.
De outro modo, as páginas dedicadas à sexualidade são antológicas. Mulheres cumprindo funções de homem - com certa propensão a isso se dar na Amazônia, talvez por influxo indígena. Padres que colecionavam conquistas entre as fieis. Ou um padre, pregador, que levava o revelador apelido de Sinhazinha. Por suas páginas chega-se a estrutura dos bordeis no Rio, em Salvador, no Recife. Ao jogo dos proxenetas e das cafetinas. Aos aristocratas levando flores para cantoras italianas, na ópera. Ao estreito papel que as mulatas tinham ao seduzir portugueses mais velhos, relativamente afluentes e extremamente avarentos. À homossexualidade e à vida extraconjugal nos incipientes centros urbanos. E em que local social elas eram sabidas, e alvos de mexerico, etc. Nada, enfim, parece escapar à sua sede de inventário.
Em termos de uma autonomização apologética da cultura
brasileira, não há outro como Freyre. Sua obra é também uma espécie de samba-enredo - mas sem deixar de aludir à funda violência que percorre a convergência das três culturas como um dínamo. E, dessa forma, ele agrega um veio autonomista que nos indica: é possível criar teoria ao invés de apenas copiá-la, pronta e inadequada, da Europa, dos Estados Unidos. Pode-se sentir, por exemplo, com que
assertividade ele diz que a palavra marmelada foi legada pela cultura
brasileira à cultura inglesa. Ou seja, à segunda cultura que ele
mais apreciava. A cultura que ele sentia-se, de alguma forma,
próximo. E, de fato, marmelade em inglês ganhou uma extensa conotação. É simplesmente qualquer compota ou geleia um pouco menos consistente que a cascão, e que
se passa na torrada ou no pão, não importa a origem da fruta. De outro modo, notem como é gordo e espraiado o parágrafo de Freyre ao tratar do assunto. Vai do início até próximo do fim num só extenso período, sem pontos, como um arremesso de onda. Ou como quando se deita numa rede, meio dia para tarde, depois de se traçar a contento uma feijoada completa:
O
mesmo que com o caju, a banana e o cará se terá dado com o
jenipapo, com o araçá, com o mamão, com a goiaba, com o maracujá,
com o marmelo; mais tarde com a manga, com a jaca, a fruta-pão, o
coco da índia – frutas que misturadas com mel de engenho, com
açúcar, com canela, com cravo, com castanha, tornaram-se doces de
calda, conserva, sabongo, marmelada, geleia, enriquecendo de uma
variedade de sabores novos e tropicais a sobremesa das casas-grandes
de engenho e dos sobrados burgueses; e chegando a ir em latas e
caixas ao próprio Portugal. Parece que mesmo a palavra marmelada,
hoje tão comum no vocabulário inglês, é brasileirismo.
[143]
De
fato, a palavra marmelada (marmelade) conheceu grande difusão no inglês. Está até na letra de “Lucy in the Sky With Diamonds”.
Os inventários gastronômicos de Freyre, de resto, são irrepreensíveis. A
gastronomia é um dos seus muitos fortes. Lendo-o, agrega-se uma apreciável noção histórica que nos dá todo o roteiro de
formação dos pratos e regimes alimentares mais típicos do país ao longo do tempo. E, aqui, tudo tem uma razão de ser. Até o mínimo detalhe. Por exemplo, quando
na passagem acima ele diz “mais tarde”, quer
implicar que, ao contrário das primeiras frutas (caju, banana, araçá,
mamão...), que eram frutas da terra; a manga, a jaca, a fruta-pão, o coco foram
trazidos de fora pelos portugueses.
Sem embargo, essa
fixação pelo doce, pelo açúcar parece ter ido junto com a
palavra marmelada, pois o Brasil é a terra em que essa compota é comida
pura, sem se passar no pão. Como no caso da goiabada cascão, do marrom glacê, do caju seco, do doce de buriti, da marmelada propriamente dita. Mas o fato vai mais adiante, quando se
sabe que foi o Nordeste – que era o Brasil que importava
a Freyre mais imediatamente– quem repassou a palavra ao idioma inglês. Até
Gilberto Freyre, por sinal, só se falava em Norte do Brasil. Norte
era algo mais ou menos genérico, um bocado vago, que abrangia tanto a
Amazônia quanto os nove estados a leste dela. Mas foi Freyre, mais que ninguém, através de sua obra, quem, ao reconhecer e melhor precisar os sinais de interculturalidade entre esses noves estados, inventou toda um região.
E a ela, inclusive, deu um nome.
Chamou-a
de Nordeste.
Fortaleza, 04.02.12 - Uma estação de chuvas que parecem não querer cair. ---
Belo texto que me fez lembrar de uma notícia que vi outro dia: entre outras coisas, está proibido em Recife e Olinda, durante os quatro dias de carnaval, urinar nas ruas. A proibição valerá também para Salvador, aonde, segundo outra reportagem, as pessoas tem o hábito de urinar nas ruas, o que é totalmente justificável depois de ler aqui o que o Gilberto Freyre escreveu sobre o assunto.
ResponderExcluirhttp://www.jornaldametropole.com.br/pdf/jornaldametropole_PDF_03022012.pdf
faz sentido. embora em qualquer lugar do mundo que se juntem mais de um milhão de pessoas - boa fração delas turistas, por sinal - num espaço mínimo tomando cerveja e dançando incessantemente o resultado não seria muito distinto. e olha que esses banheiros químicos, completamente vandalizados e imundos, são um convite a se fazer na rua mesmo. quanto às condições gerais de higiene, mais ou menos na mesma época sobre a qual versava freyre, a europa era igual ou pior, como relata depois norbert elias em 'o processo civilizador'. ou seja, era comum que os cantos das ante-salas do palácio de versalhes ficassem completamente emporcalhados, cobertos de cocô e xixi dos nobres que iam pedir benefícios a luís xv. seu bisavô, luís xiv ao chegar aos 45 anos - um velho para a época - não tinha mais nenhum dente na boca. e por aí se vai...
ResponderExcluirRuy, um texto a ser visitado como a Pernambuco: ora em viagem rápida, ora demorando os olhos no caminho, ora como quase morador, ora em território estrangeiro. Aprendi tanto, mas é da beleza que mais gosto, a facilidade de fazer nó górdio com assuntos que nem se lembravam de se esbarrar!
ResponderExcluirE, por outra, tangenciando, dizer que João Cabral foi quem me trouxe, pela mão, às portas da poesia.
começou com o pé direito, l. cabral é uma aula de síntese e símile.
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