Poster original de L'Atalante, 1934
O Barco Que Passa: Paixão e Fé
- L'Atalante, de Jean Vigo, 1934, 89 min., p&b
Num ambiente da província, recém-casados deixam uma igreja acompanhados de um pequeno séquito e dirigem-se à margem do rio. São antecipados por dois marujos em azáfama, que correm pelos campos até uma chata ancorada à beira-rio. As imagens, montadas numa descontinuidade que antecipa a nouvelle-vague em trinta anos, são de uma aterradora beleza.
Por alguma razão Boris Kaufman disse que os anos passados em colaboração com Jean Vigo foram um “paraíso cinemático”. Kaufman, irmão mais novo de ninguém menos que Dziga Vertov (cujo verdadeiro nome era Denis Kaufman), seguiria posteriormente para Hollywood, onde seu apurado senso de cinematografia responderia pelo lirismo de filmes como On the Waterfront (Sindicato de Ladrões, Elia Kazan, 1954).
Mas sob a direção de Vigo, ele nos legou também as imagens de L'Atalante (1934), o filme mais intenso daquele período em que o cinema sonoro ainda lutava para se estabelecer por contraposição ao mudo – que estava perfeitamente estabelecido e era bem mais sofisticado e efectivo.
Por tudo L'Atalante é um dos primeiros grandes filmes sonoros. Pela maravilhosa direção de atores – com destaque para o assombroso talento de Michel Simon; pelo sobredito lirismo da fotografia de Kaufman; pela trilha sonora, calcada na canção “Le chaland qui passe” [“A chata que passa”] – mas cujo tema mais belo é um instrumental, comandado por um realejo, com vaga atmosfera nostálgica e circense; pela simplicidade e engenhosidade da trama, que explora as tensões entre recém-casados com uma ternura incomportável; pela integridade com que paisagens urbanas ou rurais são exploradas em esplendoroso senso de realidade. É canino o faro de Vigo para achar a locação exata – o que denuncia nele o documentarista que já realizara o esplêndido A Propos de Nice (1930).
Até mesmo alguns, hoje, notáveis erros de continuidade são perdoáveis. Como por exemplo, o fato de Dita Parlo reaparecer no barco com sua bolsa – que fora furtada quando de sua voluntariosa fuga para Paris, no auge da crise conjugal. A contrapartida desse auge, do lado masculino, é quando Jean Dasté mergulha no rio e tem uma visão de sua amada, trajada de noiva, imersa na água, como uma sereia branca.
O momento em que o irrequieto Pére Jules [Michel Simon] sai à cata da jovem esposa do capitão, já temendo pela integridade mental do mesmo, é também uma das sequências mais notáveis do filme. Ele deambula em hesitação: atravessa pontes, caminha por uma avenida em que um automóvel dá uma ré. E, de repente, pequeno milagre, soa esse tema instrumental de uma ternura abissal. Pére Jules então, senta-se desolado num banco de praça. Uma prostituta passa. Ele ameaça segui-la. Mas então, não sem certo ar irritado, volta à sua missão de encontrar a jovem esposa em fuga. Por alguma razão há tanta modernidade antecipada neste momento, que o tema (aplicado à imagem) soa algo à la Beatles.
E, no entanto, chega ser uma heresia destacar qualquer momento em L'Atalante. Como em todo grande filme, cada mínimo plano assoma transfigurado por uma intransponível beleza. E é a forte integridade deles o que, no fim, importa. Apesar de tantas e tantas sequências memoráveis. E até mesmo – e sobretudo – aquelas em que apenas a paisagem se ressalta, sem a presença humana, revelam-se de uma indizível plasticidade, como quando um sobrado assoma em quadro, à margem, tomado ao fim do crepúsculo, com suas luzes acesas e certo ar de avulso desolamento, visto do ponto-de-vista do barco que passa. Toda a paisagem conspira para contar da atmosfera de paixão e tensão que envolve o jovem casal. Até mesmo a paisagem corporal de Pére Jules, com suas tatuagens espalhadas por todo o corpo, semelha ser uma extensão dessa paisagem. Isso, na cena em que ele introduz Dita Parlo à sua cabine e em que ele mais parece alguém saído do frenesi dos desenhos animados do que propriamente humano. Uma força. Um vetor dinâmico. Um dáimon, no sentido grego do termo.
Essa trama simples, a da recém-esposa provinciana do capitão de um pequeno barco mercante fluvial que se entedia com a rotina nos claustrofóbicos espaços do ambiente e sonha com a efervescência da metrópole, é primorosamente narrada em L'Atalante. Porém narrada com uma carga de paixão, sinestesia e intensidade limítrofes. Parece que se pode sentir esse filme de diversas maneiras. Quer dizer, não só com a visão ou com o ouvido. Parece que se pode senti-lo como se sente o mundo exterior durante uma caminhada: o vento passando nos galhos, o canto de um pássaro, o latido de um cão, os passos de alguém que caminha sobre folhas secas, o alarido de crianças durante um recreio escolar, os desenhos dos fios nos postes, o choro de um bebê, alguém passando com um pacote de pães...
Sim, pode-se sentir que L'Atalante foi realizado a partir dessa paixão, dessa mesma e imensa carga de amor e fé. Tanto no cinema quanto na realidade deste mundo.
[Fortaleza, 07.10.09]
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