[s/i/c]
Divagação sobre o Twitter
“A minha amada me mandou um bilhetinho
Só para ver se eu conhecia a letra dela
A letra dela já era conhecida
Ela me amava e eu também amava ela
Mandei fazer um 'boquê' pra minha amada
De abonina 'fulô' mais disfarçada
O nome dela era estrela matutina
Adeus, menina, serenou na madrugada”
[Canção Tradicional]
Não resta dúvida que a nova febre da internet, o Twitter, na mesma linha das redes de sociabilidade, Facebooks, Orkuts, My Spaces e quejandos, ainda mais que o fenômeno dos blogues, conforma uma espécie de tentativa: pulverizar ao máximo algo como a suposta experiência em tempo real de programas televisivos como o Big Brother. Tentar esticá-la ao maior número possível de pessoas, sem os custos absurdos que uma rede de TV tem para manter alguns primatas numa jaula e emitir os sinais de imagem da jaula aos quatro cantos de um país-continente.
Isso se acentua mais ainda num veículo que mistura no mesmo caldeirão anônimos e celebridades. Pessoas físicas e pessoas jurídicas. Fãs e “ídolos”. Admiradores e admirados. E em que a vida privada se destina ao público em espetáculo. Esticando e ampliando o reflexo de Narciso a um nível incomensurável. Desde que se pode ler que qualquer idiota se espreguiçou às sete da noite ou assoou o ranho do nariz às duas da tarde.
O Twitter segue na vanguarda no sentido de levar ao paroxismo esse senso de espetacularização da vida de que nos falam Orwell e Guy Debord, entre outros autores.
No caso do Twitter, o diferencial vai por um limite: a pequena quantidade de texto a ser escrito. Isso, de início, fascina. Aparentemente parece algo bom. Parece. Porque nem sempre concisão tem a ver com parcas palavras. Um escritor barroco como Vieira, prolixo e derramado, é incrivelmente conciso. Porque ao volume de suas palavras corresponde um imenso volume de ideias, referências, sensações, relações, alusões, associações. Eis porque Fernando Pessoa o chamava de “imperador da língua portuguesa”. É diferente de se dizer: “tirei um cochilo de duas horas”. Ou “próxima semana vou pra Recife”. Ou “nada melhor que almoçar em casa”. Ou ainda “hoje comprei duas passagens na Azul e paguei uma”.
Sim. E daí?
Na verdade, a coisa tem mais a ver com velocidade, aceleração de ritmo, abreviação. Não com concisão. De fato, li num tweet recente: “se você imagina ou já tem a resposta para uma pergunta, por favor, não faça a pergunta. Não pra mim. Meu tempo é ouro”. Nada podeira sintetizar melhor o veículo que esse bilhetinho pouco compassivo.
O Twitter parece ser o veículo dos que não podem perder tempo. Quer dizer, não podem perder dinheiro. E o dinheiro, Deus do homem moderno, decreta que tudo dever ser abreviado para que a gente se esqueça da morte, viva sempre “no presente” e evite pensamentos, trabalhos e/ou estudos que exigiam só até algum tempo atrás um pouco mais de paciência e artesanalidade. No tempo em que o Google ainda não havia exterminado um bocado de intuição. Benjamin já quase dizia isso com todas as letras oito décadas atrás:
Talvez ninguém tenha descrito melhor que Paul Valéry a imagem espiritual desse mundo de artífices, do qual provém o narrador. Falando das coisas perfeitas que se encontram na natureza, pérolas imaculadas, vinhos encorpados e maduros, criaturas realmente completas, ele as descreve como "o produto precioso de uma longa cadeia de causas semelhantes entre si". O acúmulo dessas causas só teria limites temporais quando fosse atingida a perfeição. "Antigamente o homem imitava essa paciência", prossegue Valéry. "Iluminuras, marfins profundamente entalhados; pedras duras, perfeitamente polidas e claramente gravadas; lacas e pinturas obtidas pela superposição de uma quantidade de camadas finas e translúcidas... - todas essas produções de uma indústria tenaz e virtuosística cessaram, e já passou o tempo em que o tempo não contava. O homem de hoje não cultiva o que não pode ser abreviado." Com efeito, o homem conseguiu abreviar até a narrativa. Assistimos em nossos dias ao nascimento da short story, que se emancipou da tradição oral e não mais permite essa lenta superposição de camadas finas e translúcidas, que representa a melhor imagem do processo pelo qual a narrativa perfeita vem à luz do dia, como coroamento das várias camadas constituídas pelas narrações sucessivas.
[“O Narrador” in Walter Benjamin: Magia, Técnica, Arte, Política. Vol. 1. Brasiliense: São Paulo, p. 206, trad. de Sérgio Paulo Rouanet]
Ao economizar tempo, ao evitar "perdê-lo" em longas discussões ou trabalhos longos e continuados, o que se deseja é cavar o máximo de tempo possível para coisas que se consome. Para mercado. Para mercadoria. Ora, informação é mercadoria. E é um tanto ingênuo deixar-se levar na onda dos relativismos e entender que se possa "usar" o Twitter de uma "boa" forma. No fundo, a "forma" do Twitter é quem usa a todos de modo indistinto e uniforme.
É óbvio que as novas mídias abriram enormes espaços para que muitas mais pessoas escrevam, ao invés de só lerem, ou de manterem nas gavetas o que produzem. Mas é ingênuo crer que todos possam, digamos, ser escritores. Assim como nem todos podem ser músicos ou luthiers ou relojoeiros ou vidraceiros. Há aptidões naturais, aqui, que sempre se ressaltarão em qualquer campo de atividade. Em parte porque a destreza que as pessoas tem para realizar determinadas tarefas é muito mais aguçada em algumas atividades que em outras. Ou ainda, é muito mais aguçada, dentro de certa atividade, que a de outras pessoas. E, por alguma razão, escrever com desenvoltura, graça e unicidade, se desenvolve mais rapidamente, com mais idiossincrasia e estilo, em alguns do que em outros. É algo para o qual se educa, muito óbvia e pacientemente. Mas educação só não basta, sem um pouquinho de talento.
O Twitter é uma sorte de coroamento de todo esse processo de abreviação e afastamento do pensamento mais sereno e paciente sobre a eternidade e a morte. No sentido de ser a abreviação da abreviação [ou seja, da short-story; e depois dela, da postagem de blogue; e depois dela da mensagem no Orkut; e depois dela...]. Nisso ele se afasta sobretudo da prece. As preces tradicionais repetem verdades que seriam inacessíveis de atingir via Twitter. Ainda que algumas preces sejam curtas o suficiente para serem postas num tweet.
O provérbio era a narração condensada em uma sentença. No polo oposto, o tweet é a informação condensada em uma sentença.
O que pode ser posto em 140 caracteres e fazer algum sentido, quando não se é Bashṑ ou os poetas chineses da dinastia T'ang?
O mais certo é o que disse uma jornalista que entrou recentemente no jogo da twittagem: “tem um mundo nesse Twitter, né?”
E é verdade.
Mas muito mentira também.
E convenhamos um pouco também se vive de modismos. E o logo do Twitter foi extremamente bem desenhado.
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