sábado, 28 de março de 2009

A vanguardice tem falado mais alto que a verdade


Wise Blood, John Huston, 1979




Nove Meses, um belo curta & reflexos para além
-sitiada pelo usual ponto de vista da unilateralidade de se fazer algo "de vanguarda", em termos de linguagem, as produções cearenses recentes não conseguem vazar para fora de uma sorte de gueto


Há um fluxo de produção de imagens no Ceará que merece atenção e cuidado. Ele em geral gravita em torno de três importantes pólos que se interpenetram: a Escola de Audiovisual da Prefeitura, a ONG Alpendre e a Produtora Alumbramento.

Dias atrás assisti um filme chamado Nove Meses, de João Luís [Jojô]. O curta traz belas imagens e, em especial, na sequência de abertura, que é magnífica. Também o ritmo da montagem chama a atenção nesse começo: cortes abruptos, relâmpagos sobre uma bela cena em plano longo, provavelmente gravada da vigia de um jato, onde se vê um céu de brigadeiro, plácido, pairando acima do mundo, com seu relevo de densas nuvens brancas, límpidas, que mais se assemelham a blocos, montanhas de gelo em meio a um oceano azul. A imagem é de uma pureza excepcional. Bastante indicativa de uma idéia de início. E ainda mais quando, volta e meia, intervalada por esses rapídisssimos cortes, em que assoma uma espécie de aparelho de tons amarelos, semelhante a uma empilhadeira de bagagens (mas não é isso), a lembrar do mundo neste planeta aqui embaixo, com todos os problemas - inclusive ambientais - que ora vivenciamos.

O tema de Nove Meses é a consolidação da vida através do nascimento de um bebê. O processo que vai da gestação ao parto. Mas, ainda assim, apesar de toda sua gana experimental e algumas sequências que merecem aplauso sem reservas, o filme padece exatamente da mesma defasagem da maioria dos filmes experimentais produzidos nos últimos tempos em Fortaleza. Ou seja, a defasagem entre certo arrojo de dispositivos e os pontos de contato desses dispositivos e da proposta geral da coisa com um panorama mais coletivo e histórico. Ou ainda seja, o ponto é que essas produções não conseguem elastecer-se para uma inscrição mais coletiva. Uma inscrição que brote de uma conversa com signos de uma vida normativa, cotidiana. Os filmes prosseguem sem conseguir transcender os códigos compartidos apenas por uma meia-dúzia de iniciados. Ir além disso. Porque é preciso ir. Quer dizer, é necessário fazer filmes que consigam abrir-se, sem detrimento de seu arrojo experimental, para uma inscrição em um projeto que aponte para realidades concretas e locais, vivenciadas por outras pessoas que não as envolvidas expressamente no circuito da produção de imagens. Algo que vaze o fluxo dessa produção apontando para a experiência de vida de milhares, milhões de pessoas que não ortodoxamente estão ocupadas com o processo de se montar um filme. Ou mesmo de ir ao cinema. Ou sequer conceber que possa existir algo apurado, em termos audiovisuais, que se afaste muito do dispositivo narrativo da telenovela.

É esta, precisamente, a espada de Dámocles da atual produção de jovens e promissores cineastas cearenses. Os filmes são instigantes sob vários aspectos. Em especial, no que toca à imensa gana experimentalista. Mas falta só um pouco mais, alguns poucos passos, para que essa gana consiga consorciar-se á necessidade épica de abordar temas menos genéricos, video-clipáveis, de gueto, tribais; porém, do contrário, fazê-los mais próximos da cotidianidade e da memória coletiva. De uma espécie de "senso-comunalidade". É esse clique, esse engate que ainda não ocorreu.

Sem isso, corre-se o risco de que essas produções gravitem apenas em torno de uma estética "fru-fru", que experimenta por experimentar, mas sem se permitir maiores vínculos com as realidades experienciadas por todo um povo, em níveis diversos. Em resumo, falta senso-comum à maioria dessas novas produções.

Esforços como os de Jojô e de vários outros jovens realizadores devem ser louvados e tomados com apreço e aplauso. Entendidos como exercícios que, pela insistência em testar novos dispositivos, são instigantes em si. Inclusive por, em muitos casos, serem filmes de estréia. E, no entanto, não enquanto destinam-se a buscar atingir soluções fílmicas onde a inscrição do projeto seja mais coerente em termos históricos concretos, uma vez que a maioria desses esforços passa bem ao largo de um senso mais historicamente consolidado e uma tradição que os antecipa. E os antecipa não necessariamente na forma de cinema (mas na literatura, na memorialística, na música, na gestualidade, na elocução da fala, na especificificidade de todo um cromatismo de ruídos, na etnografia presente na confecção de certos utensílios, etc.). Filmes, enfim, capazes de transcender a subjetvidade individual - ou mesmo do pequeno grupo gnóstico - e atingir, assim, aquele raro condão de consorciar experimentação com inscrição em algo mais amplo, divisável por um número maior de pessoas e por um senso cultural calcado em uma tradição histórica, tão relegada às favas pela maioria desses jovens realizadores. Pois só munidos dessa consciência histórica - que é também uma consciência das "formas" prometidas pela vivência coletiva num "passado longo" - será possível a confecção de filmes calcados em códigos compartidos por mais de uma meia-dúzia de iniciados. Filmes simultaneamente arrojados, do ponto de vista dos dispositivos, mas com consequências e ressonâncias culturais. Tão-só estes podem ser reivindicados como formalmente arrojados. Os que persistem nos experimentos de linguagem por si - ao modo de vespas em torno de uma chama numa noite fria - logo convertem-se apenas em curiosidades a serem vistas por iniciados e rapidamente viram arquivo. Crônicas de como se fazia um filme experimental em Fortaleza no ano de 2009. Curiosidade de época. Algo que já nasce datado.

A impressão que se tem é que ao se assistir filmes como Nove Meses gera-se um fosso, uma ambiguidade quase intransponível. Por um lado, as belas imagens, o afã de experimentar, além do desejo de que a produção não pare por aí. Por outro, a frustração de entrever essa produção quase que exclusivamente obcecada com questões de linguagem - como se fosse possível separar forma (pesquisa de linguagem, emprego de certos dispositivos) - de assunto [ou conteúdo], consequência histórica de uma coletividade. Forma e assunto são indissociáveis e se entre-salpicam. Qualquer forma em arte provem desse equilíbrio. E apenas nos momentos em que ambos - experimento e consequência histórica - acham uma solução de equilíbrio é que esses filmes poderão, de fato, serem robustos, formalmente. Serem reconhecidos como elocuções que podem transformar a produção de audiovisual em Fortaleza, num pólo realmente importante dentro de um contexto não só brasileiro.

É mais ou menos nesse rumo que se pode pensar que uma boa sugestão estética vem a ser a de se estudar modos de representação de regiões que guardam semelhanças históricas com o Nordeste clássico (ainda que, de momento, atravessando uma incipiente e progressiva urbanização que grita para ser documentada). Como o Deep South, nos Estados Unidos, por exemplo. Nesse sentido, filmes não ortodoxamente de vanguarda, como Wise Blood, uma produção mais "artesanal" de John Huston, baseado em romance de Flannery O'Connor, talvez tenham tanto ou mais a ensinar a essas jovens mentes seduzidas apenas pelas sereias do experimentalismo, do que muito de Deren, Anger, Shirley Clarke, Brakhage, Kubelka, Bruce Connor ou Bill Viola.



[28.03.09]

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