sábado, 14 de novembro de 2009

Que borra será de nós?


Russell Crotty, 1996



Palhaço da Boca Verde



esqueci de perguntar

o que há entre você e o medo


entre o medo e eu

há duas décadas


entre o medo e eu

uma parábola


entre o medo e eu

duas almôndegas


entre o medo e eu

partículas sólidas


entre o medo e eu

dois nomes, a custo ditos


entre o medo e eu

tocar a própria carne


(não vê? duas personagens

o palhaço, a puta – refratam-nos


que borra será de nós

mais tarde ou cedo?)


entre eu, o medo e o sol 

o radioso cometa


de teu sorriso

descreve a elipse



* * *

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Muito mais que esses quinze minutos


Francis Bacon, Study of a Dog, 1958


Carlos e eu


Não gosto de lembrar de Carlos. Não gosto da palavra trauma. Mas o que aconteceu entre nós, percebo hoje, foi quase isso. 

 Já tive namoradas. Reparti o mesmo espaço com uma mulher por anos, em duas ocasiões. E sei dos infernos e delícias disso. A todas prezo. Mesmo ao lembrar os momentos de maior azedume.

Mas o que ocorreu entre Carlos e eu foi um bocado forte. 

 Em 1999, precisava de um sítio isolado. Sair da bagunça de São Paulo, com suas permanentes tentações boêmias, para algo menos frenético. E para escrever um texto longo: a tal tese de doutoramento. Uma colega de turma, da PUC, me sugeriu um apartamento, em Florianópolis, que podia me alugar a um preço acessível.  

Na verdade, o imóvel era em Canasvieiras, uma praia que vaza argentinos pelo ladrão e outras gentes de sortidas nacionalidades e distintas paixões futebolísticas. Isso no verão. No inverno, é uma ilha de isolamento dentro da Ilha de Santa Catarina. 

O nome original de Florianópolis é Desterro. E chega ser uma ironia que a homenagem ao nosso segundo presidente, Floriano Peixoto, um caudilho no melhor estilo Latinoamérica, lhe tenha legado esse nome solar, floral, exuberante – não raro abreviado carinhosamente para Floripa. E, em especial, se contraposto à melancolia exílica de Desterro.  

 Mas era de um desterro do que eu precisava. E os preços dos aluguéis em Canasvieiras despencavam no inverno. E o espaço era bom. Um apartamento no térreo, com o mar quebrando a menos de cem metros adiante, uma pequena ilhota no horizonte, duchas aquecidas, boa mobília, servidor de internet 24hs, televisão a cabo…

Mudei-me.

 As novidades dos primeiros dias. Comprei um caniço de pesca. E às vezes pescava na madrugada. Nunca havia vivido à beira-mar no Sul do Brasil. Ou seja, naquelas costas em que o resto mínimo de floresta atlântica, densa e viçosa, agarrada ao lombo das serras, literalmente mergulha no mar. E adiante se entrevê ilhotas pontuando o horizonte. Achava aquilo lindo. De uma beleza diferente das praias de dunas ou falésias barrentas do litoral do Nordeste. Quase peladas de vegetação – a não ser por coqueiros, bredos, cajueiros-da-praia ou manguezais de quando em vez.  

E quinze dias depois morria de tédio. 

Passava o dia lendo e escrevendo. Havia apenas um vizinho, que morava no terceiro e último andar do prédio, e cujas janelas davam para a rua oposta à praia. Às vezes, quando saía para comprar cigarros na birosca mais próxima, sua filha – e era uma bela adolescente – trocava carícias com o namorado na pequena, sombria, escadaria de entrada. E o casal se continha um pouco e me cumprimentava protocolarmente em meio à penumbra. 

Gosto de solidão. Acho que todos tem direito a seu quinhão de estar sozinho por pelo menos quinze minutos ao dia. O mundo seria menos selvagem. Talvez. O que sei é que até hoje cultivo muito mais que esses quinze minutos, dia após dia. Mas nessa época eram quase as 24hs. Na íntegra. Sem direito a diálogos, nem que de plano e contraplano. 

Por vezes, me revoltava contra esse desterro. Tomava o ônibus e cortava os 27 Km de belas paisagens até Florianópolis propriamente dita. A cidade, mesmo no inverno, possuía uma vida moderadamente pulsante, à noite. Especialmente nos fins-de-semana. 

Mas logo numa dessas primeiras noites de revolta contra o tédio, dei com meu vizinho numa danceteria. Ele se chamava Rui, assim com “i”; e era um advogado bem sucedido. Tinha quase mais que a meia-idade. E se encontrava tão expansivo, que volta e meia era repreendido, debalde, pela esposa. Rui já se encontrava naquele estágio bebum de quem não ouve mais ninguém a não ser a si próprio. De quem fala e ouve pelos demais. Quem não conhecesse Rui, ou visse apenas seu vulto em meio a semi-obscuridade multicor da pista de dança, julgaria tratar-se de um adolescente. Um tanto corpulento. Mas ainda assim um adolescente.

Ao fim da noite, Rui insistiu – e não pouco – para que eu voltasse de carona com eles até Canasvieiras. Fui, um tanto a contragosto, para não ferir suscetibilidades entre vizinhos que mal se viam e não tinham outros vizinhos. 

O problema é que logo à saída do clube, Rui jogou seu carro na traseira de outro. E, como todos sabemos, advogados não perdem causas no Brasil se a pendência se dá com eles. Ainda quando bêbados e sem razão. E, quando eu estava observando a cena, em desolamento, Rui, achegou-se aos trancos, abraçou-me, como a um velho amigo, e disse: “Xará, você vai ser meu testemunho. O caso tá ganho”. 

Mas a coisa não era tão simples. Seria preciso aguardar a Perícia de Trânsito, sempre morosa. E, enquanto isso, a mulher de Rui lhe enfiava uma garrafa de café amargo goela abaixo na esperança de que ele se recompusesse um pouco. Ou ao menos cambaleasse menos. E, sabendo que a responsabilidade pelo incidente fora inteiramente de meu “xará”, dei um jeito de esquivar-me. E voltei de táxi para Canasvieiras. 

O episódio, não só estremeceu um tanto a relação entre os vizinhos, como também me retirou o gosto pelas noitadas em Floripa. Quando muito ia ao cinema ou a um café. E voltava cedo, ainda no horário dos ônibus. Isto é, antes de onze. 

Percebendo meu excesso de isolamento, uma conhecida, professora de antropologia na Federal de Santa Catarina, propôs-me adotar um cachorro. É que sua cadela, uma labrador, tivera ninhada. 

Disse que não, quase automaticamente. Em criança, à exceção de alguns pássaros, que cedo se foram, e de um coelho que vivia escondendo-se atrás de uma caixa de madeira, no quintal, nunca tivemos animais de estimação.

 Mas certa tarde ela apareceu com o pequeno cão. E era tão pequeno e tão belo. Tinha os olhos tão doces, e um modo de erguer a cabeça assim com a suavidade de quem pede entregando, que não pude resistir. O cãozinho dormiu na sala, a primeira noite, numa caixa com trapos, um pouco de água e comida. Ainda assim gemia. E não sei porque cargas d’água comecei a me preocupar com os gemidos daquela criatura. Ainda cogitei devolvê-lo na manhã seguinte. Mas a doçura de seus olhos nunca que deixariam. E, assim, armei um nicho para ele rente ao balcão da cozinha.

Pus-lhe o nome de Carlos. Em homenagem a Drummond e Williams. Talvez Drummond e Williams não tivessem a doçura dos olhos do meu Carlos. Mas o meu Carlos, a seu modo, podia ser tão poeta quanto os outros dois. Ao passearmos pela praia, por exemplo. Ele, sempre comedido, até na alegria. No perseguir o bando de gaivotas. Ou do contrário no rosnar piano para um bêbado que certa vez aproximou-se com um porrete na mão mascando ameaças desconexas. 

Era também um cão de uma natural inclinação para disciplina. Perto de nosso horário de caminhada, pela manhã, se eu não ia até ele, postava-se ao lado de minha cadeira. Sentado, em circunspeção. E, por vezes, me entrolhava. Mas sem transparecer aborrecimento. Apenas com aquela insinuação tácita no negro dos olhos: “você não vê que está atrasado? Não vê que tem ficado demais com esses livros e a praia nos espera lá fora?” 

Carlos era um lindo cão. Um labrador de porte. Pelo branco-gris. Patas traseiras bem constituídas. Havia uma nobreza em seu sentar. Ou no ganhar corrida pela areia úmida, sempre embalando, de pouco mas continuadamente, a velocidade. Havia em sua personalidade a inata qualidade do cuidar. Do cuidar sem reclamos. Sem ter de puxar algo de volta. Fosse o carinho do dono, fosse o biscoito canino mais raro que sua usual ração, fosse uma nova coleira, porque a anterior ficara pequena para sua compleição. Ele ainda crescia.

E assim, com essa mesma têmpera, vi-o ficar adolescente. E recém-adulto.

 Não que ele fosse um santo. Uma ocasião, entendeu de ficar cercando e pulando em torno de um siri já na calçada do prédio. Eu tinha o que fazer. E quando o pus para dentro de casa, à força e com alguns tapinhas nas ilhargas. Amuou-se. Passou dias assim. Embora sempre cumprindo seus deveres de companheiro de caminhadas e seus horários habituais. Reservou-se. Correu mais lentamente para apanhar os gravetos. Passou ao largo das gaivotas.  

 Eram dias longos. Abreviados pelo cedo do entardecer sobre as ondas. O hotel, erguido em estilo balneário francês, sugeria que estávamos numa estação termal ou algo assim. Havia molhes e traineiras. Uma bela restinga, que, na baixa-mar mal fendia a praia até a angra. Era sobrelevada por uma ponte de madeira, que, às vezes, atravessávamos se a caminhada para mais longe se estendia. E tudo isso ele observava com a densidade alerta de seu olhar.

A última vez que vi Carlos, ele estava sentado sobre si, naquela postura que só ele tinha, no amplo bagageiro de uma vagonete Renault da família que o adotara. Eu tinha de tornar a São Paulo e ele não poderia seguir comigo. 

 Havia em seu olhar negro, úmido, uma chispa de acusação. De desdém, talvez. Que só não eram maiores que a inata bondade.

Tive outras namoradas. E duas mulheres. Amigos. Inimigos. Li uns tantos outros livros. Nunca plantei uma árvore. Me nasceram duas filhas. Morei outras cidades. Visitei outros países. Escrevi a tal tese.

Por causa de Carlos, jamais tive outro cão. 

Não sei se ainda vive. 



* * *

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Uma história (e uma visão) de lince: morreu Lévi-Strauss


Claude Lévi-Strauss, um mestre (1908-2009)



Inflação, Urgência e Doutrina


Há um aspecto que venho insistindo com meus alunos já faz algum tempo quando o tema recai sobre teorias e exegeses contemporâneas: vivemos numa época de extrema inflação de discurso.

Quer dizer, há uma verdadeira febre por se produzir interpretações da realidade. E por se reproduzi-las com pequenas variações fazendo de conta que se está inaugurando uma nova linha de pensamento. Seja na filosofia, na sociologia, na história, na literatura.

O ponto é que a maioria dessas interpretações constituem tão-só modelos teóricos ocos, incongruentes ou perfeitamente datados.

São elaboradas para suprir uma demanda constante da academia. Uma espécie de sistema de moda do tipo que se retroalimenta cada vez mais em doses cavalares, já que as universidades mais e mais se assemelham a grandes empresas que se regem pela lógica do lucro – da usura, se diria no Medievo. O certo é que não retêm nenhum compromisso mais cerrado com a realidade e com a história. Com a verdade. Com sua busca.

Aqui no Brasil isso é ainda mais caricato, porque, claro, vivemos de macaquear os modelos teóricos europeus. Lévi-Strauss, discorrendo sobre o esquema mental dos alunos da USP de seu tempo, em certas páginas lapidares de Tristes Trópicos, nos dá testemunho disso já àquela altura, quando nos assegura que eles se compraziam em ostentar novas teorias como roupas novas. Ou declinar o nome de um novo teórico, desconhecido pelos demais colegas, com um gozo todo próprio. Como se possuíssem a receita de um novo prato. Uma guloseima que os outros ainda desconheciam, não haviam degustado.

E, no entanto, o conhecimento que tinham dos clássicos, da tradição e de uma formulação menos empacotilhada de pensar era sofrível. Ou seja, esse zelo cosmopolita pela teoria nova os tornava ainda mais provincianos. Coisa que, aliás, num certo sentido, São Paulo prossegue sendo. O próprio Lévi-Strauss aponta para o fato de seus estudantes paulistas estarem pelo menos seis meses mais “adiantados” que ele próprio na recepção de novas teorias. Mas serem inteiramente incapazes de se dedicar a um assunto com um mínimo de zelo monográfico ou por meio de um recorte mais profundo, menos refém desse sistema de modas acadêmicas e dessa erudição de pacotilha.


[trecho da postagem Erudição e Pacotilhas, publicada neste blogue em 16.11.08]


*   *   *

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Embora coisas ditas


Brice Marden, Zen Study 6 (Early State), 1990



'Coisas ditas'


coisas ditas da boca

pra fora

passam pelos

ouvidos até

a pletora


embora coisas ditas

da alma pra fora

entram em outra alma

e lá demoram

demoram



* * *

Como se não houvesse o passado feito o presente: Creeley


Naoto Fukasawa, Plus Minus Zero Humidifier, 2006



Zero


for Mark Peters


Not just nothing,

Not there's no answer,

Not it's nowhere or

Nothing to show for it -


It's like there's no past like

the present. It's

all over with us.

There are no doors...


Oh my god! Like

I wish I had a dog.

Oh my god!

I had a dog but he's gone.


His name was Zero,

something for nothing!

You like dog biscuits?

Fill in the blank.


Robert Creeley



Zero


a Mark Peters


Não apenas nada,

Não não há respostas

Não que esteja algures

Nada a mostrar em troca—


É como se não houvesse passado feito

o presente. Tudo

acabado entre nós.

Não há portas...


Ah, meu deus! Como

gostaria de ter um cão

Ah meu deus!

Eu tinha um mas ele se foi.


Seu nome era Zero,

algo em vez de nada!

Te agradam biscoitos caninos?

Preencher a lacuna.



* * *

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Algures a um canto, num sítio desalinhado: Auden

Pieter Brueghel, o Velho, Paisagem com a queda de Ícaro, c.1558



Musée des Beaux Arts


About suffering they were never wrong,

The Old Masters: how well, they understood

Its human position; how it takes place

While someone else is eating or opening a window or just walking dully along;

How, when the aged are reverently, passionately waiting

For the miraculous birth, there always must be

Children who did not specially want it to happen, skating

On a pond at the edge of the wood:

They never forgot

That even the dreadful martyrdom must run its course

Anyhow in a corner, some untidy spot

Where the dogs go on with their doggy life and the torturer's horse

Scratches its innocent behind on a tree.


In Brueghel's Icarus, for instance: how everything turns away

Quite leisurely from the disaster; the ploughman may

Have heard the splash, the forsaken cry,

But for him it was not an important failure; the sun shone

As it had to on the white legs disappearing into the green

Water; and the expensive delicate ship that must have seen

Something amazing, a boy falling out of the sky,

had somewhere to get to and sailed calmly on.


W.H. Auden



Musée des Beaux Arts


Sobre sofrimento nunca se equivocavam,

Os Velhos Mestres: como entendiam bem

O ponto-de-vista humano, de como ele ocorria

Enquanto alguém comia ou abria uma janela ou tão-só caminhava monotonamente;

O modo como os idosos seguiam reverentes, em ardente aguardo,

Pelo nascimento miraculoso, devia haver sempre

Crianças que não o desejavam tanto, patinando

Num charco à orla da floresta:

Eles nunca esqueciam

Que mesmo o mais medonho martírio tinha de seguir seu curso

Algures a um canto, num sítio desalinhado

Onde os cães prosseguem com sua canina vida e o cavalo do torturador

Esfola o inocente atrás de uma árvore.


No Ícaro de Brueghel, por exemplo: de como quase tudo dá as costas

Um tanto placidamente ao desastre; o lavrador

Pode ter ouvido o espasmo, o clamor desamparado,

Mas para ele nada havia de muito erro; o sol brilhava

Como sobre as pernas brancas a desaparecer no verde

mar; e o caro e sofisticado navio que deve ter visto

Algo fantástico, um moço caindo do céu,

Tinha um destino a encontrar e navegava suavemente.



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Guimarães Rosa, o diretor


Fragmento do manuscrito de Grande Sertão: Veredas, c. 1956


Quando alguns serviços são desserviços


Ontem uma amiga foi a um espetáculo teatral baseado em textos de Guimarães Rosa. E gostou do que viu. Mas também alertou-me para esta nota de serviço sobre a peça no Vida & Arte de O Povo, em certa edição, setembro passado:

SERVIÇO

ENCANTRAGO VER DE ROSA UM SER TÃO - peça do Grupo Expressões Humanas e Teatro Vitrine, com direção de Guimarães Rosa. Reestreia hoje, 17, no teatro do Sesc Senac Iracema (rua Boris, 90 - Praia de Iracema, ao lado do Centro Dragão do Mar). Em cartaz às quintas-feiras de outubro, exceto dia 22; e dias 1º e 5 de novembro, sempre às 20 horas. Ingressos: R$ 10 (inteira) e R$ 5 (meia). Outras informações: 3452 1242 ou 8854 3219. [sic]

Talvez do além-túmulo, Rosa tenha vindo dirigir a peça - que por sinal, parece ser um espetáculo à procura de uma melhor recensão. A "resenha" completa pode ser vista aqui:

http://opovo.uol.com.br/opovo/vidaearte/910060.html


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