sábado, 16 de maio de 2009

Quantas vezes eu mudei de conversa


Augusto Pontes (1935-2009), em foto de fins dos anos 70



O morcego se foi

Ontem morreu Augusto Pontes. Tinha setenta e três anos. Difícil defini-lo. Sua inteligência e seu carisma eram tremendos. Contribuiu com muitas ideias para o Pessoal do Ceará. Foi um dos idealizadores da Massafeira Livre. Um inovador da linguagem publicitária à frente da agência Scala, nos anos 80. Era profundamente irreverente. De um sarcasmo que não poupava a si mesmo quanto mais aos amigos. E, no entanto, os amigos lhe tinham uma grande e estável estima. Não era de muito sistema. Um conversador por vocação. Provocador por hábito. Aglutinador por temperamento. Nutria um saudável desprezo pela pompa que vem a reboque da autoridade, algo que lhe deve ter atrapalhado a própria gestão como secretário da cultura do estado, por breve tempo, no início dos anos 90.

A última vez que o encontrei foi em janeiro passado, num bar. Gostava de bares. De conversar em mesas. Mas nessa noite, estava um pouco consigo, mais contido que de hábito, observando amigos a disputar uma partida de bilhar. Bebia uísque. Conversamos longamente. E ele, como sempre, discorreu com grande sabor sobre muita coisa: a efervescência que era a Faculdade de Arquitetura ao fim dos anos 60; a destreza lírica de letristas como Brandão e Fausto Nilo; a magia mitológica do Bar do Anísio; o grande instantâneo coletivo da música cearense que foi a Massafeira [como evento e como álbum duplo]; de como Belchior trazia Os Lusíadas quase de cor; ou como a letra de “Apenas um rapaz latino americano” surgira de uma sua carta, em que dizia também que não tinha dinheiro no bolso nem "patentes" importantes; da importância do cinema para sua geração como atesta, entre outras, certa letra de Evangelista Moreira [Dedé]. Ao nos despedirmos, à saída, na madrugada sonolenta e chuvosa, ele encaminhando-se para o táxi, com sua inseparável bolsa de napa à tiracolo, me largou um:
-É isso, amigo, a gente se vê por aí!

Parece que a vida de Augusto era cercada de um permanente, inefável senso de anedota literária. Uma espécie de dom de inspirar arte nas outras pessoas. Um Midas de frases curtas. Ele adorava tiradas, ditos espirituosos, improvisos, blagues, blefes, analogias burlescas. E, claro, trocadilhos. Era quase um epigrama ambulante. Uma imensa presença de espírito. Difícil imaginá-lo como professor da UnB nos anos 70. Ele definitivamente estava imune à proverbial chatice acadêmica. Perdia o amigo, nunca a piada. E, no caso de Augusto isso não é bem verdade. Pois nele era quase inverossímil a vocação de ser simultâneamente mordaz e cativante. Tinha algo de bruxo. Guardava um quê de morcego em seu semblante—e assim foi caricaturado mais de uma vez no jornal.
"O comunismo acabou antes de chegar aos pobres"; "estou do seu lado, mas não me olhe de banda", "a união se faz à força"; "vida, vento, vela, leva-me daqui" (que Belchior aproveitou para verso final de "Mucuripe") são de sua lavra. Era antes de mais nada um grande phrase-maker. Daqueles que não deixavam passar nada em vão. O mínimo que fosse. Conta-se, por exemplo, que quando o músico Eugênio Leandro foi apresentado a ele, que era então secretário da cultura, durante uma audiência, disse no aperto de mão:
—Prazer, Eugênio!
Ao que Augusto respondeu:
—Prazer, eu também!

Augusto escreveu também letras de música emblemáticas. Como esta, para um tema de Petrúcio Maia [gravado por Téti e Ednardo]:

Lupcínica
Vamos acabar com essa briga, amor,
Que eu estou cansado.
Fique aqui ao meu lado e não fale mais,
Que eu estou calado.
E não balance essa chave,
Vai acordar meu remorso,
A tua bolsa guarda segredos de mim.
E por mais que eu mexa e remexa,
É você que não deixa ver
Quantas vezes eu mudei de conversa
Pra não falar,
Tantas vezes eu dobrei a esquina para não ver.
E hoje, sinto ciúmes até da tua falta,
Mas não vou mais
Matar ninguém por tua causa:
Mate-me, que eu já te matei!
Inutilmente bêbado,
Triste como um peixe afogado
Na madrugada sonolenta
De bolero em bolero,
'Acuerdame daqui a poco',
Você está com a vida que pediu a Deus.


* * *

Um comentário:

  1. Q baita retrato do Augusto, vc captou uma coisa impressionante nele: era cáustico e terno ao mesmo tempo, talvez por isso poucos se zangassem com sua ironia fina, lembro que, sentado em uma roda de escritores, um deles se pabulando de prêmios literários, ele retornou de seu 'providencial e fingido sono pra se livrar dos chatos' e disse que se fosse secretário de cultura iria instituir um prêmio de poesia intitulado "a" Pessoa Anta, o poeta riu sem jeito, outros olharam de lado e ele nem aí rsrsrs

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