quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Croqui de uma cidade sem cidade

Wilhelm Wagenfeld, Egg Cups, 1938


Um Ovo sem Sal Faz mais Bem que Mal?
-A cidade de N. S. da Assunção dos diascorrentes, rápido esboço


Fortaleza é um ovo.

Pela desigualdade social, que cai sobre ela como uma lepra, praticamente todos que formam opinião se conhecem. Formar opinião está ligado umbilicalmente com ter poder. Ter poder equivale a dizer: ter um mínimo de grana. Um mínimo de grana que, ao menos, possa ter viabilizado uma educação formal acima da média.

Isso tudo é um evidente truísmo. E acontece em qualquer parte do mundo. E está dito apenas para ressaltar que isso de ter olhos em terra de cegos é, por aqui, muito mais ressaltado.

Mas ter poder é também ter acesso aos espaços de modernidade em Fortaleza. Que são guetos: shopping centers; restaurantes e cafés mais sofisticados; casas de veraneio ou os modernos condomínios horizontais, que proliferam mais a leste – e são as atuais meninas dos olhos da especulação imobiliária. Ter poder resguarda o condão de manter, enfim, um mínimo de acesso a bens culturais: o cinema, a livraria, o jornal, o café, a pós-graduação.

Notem que espaços de urbanidade, como os cafés – que se proliferaram com certa rapidez na última década – nada têm de equívocos em si. São espaços para a convivialidade e a troca de ideias. O que há de errado, no entanto, é que o acesso a eles seja facultado a tão poucos.

E, nesse universo de rebanho escasso em curral pequeno, essa demarcação de poder encontra manifestações diversas de mostrar o nariz. E, quase sempre, bastante ostensivas. Melhor seria dizer ostentatórias. De um modo mais tosco, essa ostentação se dá por aportes de consumo: lustrosas camionetas, roupas de grifes, a frequentação de certos espaços, que, para todos os efeitos, são elitizados, a reforma quase semestral da casa ou do apartamento como demarcação do nível de prosperidade da família.

Isto último, de reformas, é quase o oposto do que se vê, por exemplo, nos países europeus. Onde as características das residências – em especial nos bairros mais afluentes – são preservadas com um zelo canino. Nas áreas ricas de Londres: Mayfair, Highgate, Chelsea – há posturas municipais tão rígidas, quanto a isto, que qualquer modificação que descaracterize o padrão arquitetônico/histórico do imóvel ou o faça destoar dos demais é severamente monitorada.

Porém uma das formas em que esse poder de poucos mais se faz notável em Fortaleza é no modo como a sociabilidade se dá, para alguns, ao modo de um esporte. E esse esporte poderia, digamos, se criássemos um neologismo, ser rotulado de "vantagismo". Essa esportividade já recebeu outros nomes. Alpinismo social, por exemplo. E digamos que ela possa ser expressa na seguinte fórmula: “quanto mais agrego gente de poder à volta, mais poder agrego”. E não só pela instância do poder em si – que tem óbvias reverberações no campo da sexualidade e do consumo; instâncias, de resto tão imbricadas em qualquer lugar do mundo – todavia por explorar ao máximo certo “momento de prestígio de alguém”. Por mais ínfimo que seja.

Há uma espécie de corsariedade psitacídea, aqui. A necessidade de sair na foto. De ser o papagaio de corsário da vez. Como na maioria das ocasiões, esse prestígio é efêmero ou tem a ver com trívias passageiras: algum dinheiro a mais, uma suposta adequação à moda, o destaque por alguma ninharia ligada a prêmio ou cargo, o aspecto jovial, a "boa vibe", a aparência (ainda que se esteja caindo aos pedaços para mantê-la), no geral – tudo isso é calcado numa lógica tão efêmera quanto o endêmico selo nouveau-riche que grassa entre nossa desgraçada elite.

É talvez por essa elite que temos – uma das mais nefastas elites urbanas do planeta – que a cidade seja tão desnivelada e repugnante. Que a preocupação com a coisa pública, a começar da escola básica, assome tão amesquinhada: o transporte coletivo de bom nível, os parques, praças, o acesso a bens culturais na forma de bibliotecas públicas, museus, locais de lazer ao ar livre e comunitários, a preocupação com a memória, com a rua, a preservação do patrimônio arquitetônico, etc. e etc.

Os jovens dessa elite, nossa jeunesse dorée – como os jovens de qualquer outro ponto do planeta – possuem todo o direito de buscar dar vazão ao excesso de hormônios que vaza pelos seus poros em qualquer clube noturno no entorno do Dragão do Mar, durante seus momentos de lazer. Ou aspirar passar o final de semana em torno de um deck-bar à borda de uma piscina no Porto das Dunas, degustando uma lagosta ou entornando um bloody mary.

Faz parte.

O que não faz parte é que a coisa esgote aí. E que pela escassa dimensão dessa elite, mesmo as relações pessoais sejam tremendamente assentadas muito mais em clichês do que no convívio tête-à-tête entre as pessoas.


Isso em parte absolve os jovens. O que fazer, numa cidade planejada para o turista e não para si. Onde não há teatros, universidades realmente fortes, museus, uma efervescência cultural sadia - de alguma feição endentada no local? Reunir-se ao fim-de-semana e encher a cara, nos clubes de forró ou nas festinhas em que os DJ's que comandam a pândega seriam incapazes de compreender uma progressão harmônica de três acordes. 


E, ainda assim, há na cidade locais aprazíveis, potencialmente votados ao lazer público, mas que não são valorizados, não recebem um tratamento urbanístico. Ou, aqui e lá, uma paisagem doce aos olhos, apesar de em certos casos sequer se poder vê-la. Pelo excesso de poluição visual.

De outro modo, a ostensiva necessidade de autodemarcar-se dentro do círculo de giz dessa elite rarefeita, incentiva nas pessoas um culto de pseudo-sofisticações que tiraria riso em uma sociedade onde, de fato, se consolidou uma aristocracia de longa data. Distante desse brilhos efêmeros e, sobretudo, dessa compulsiva necessidade de se dissociar das classes mais pobres.

É claro que esse descompromisso com a dura realidade social da cidade, com sua apartação social, com o fato de haver alguns quistos de classe média em meio a uma favelópolis a perder de vista, é compensado de muitas formas. Uma delas passa pela opção de adotar expressões supostamente “regionais”. Usadas pelo "povo". O povão que comuta de ônibus nos terminas desde muito cedo. E realmente pega no pesado. E aí, esses jovens de classe-média adotam como moeda corrente a linguagem desse povão.


Para bons ouvidos, isso soa como uma espécie de 'mea-culpa'. Ou um certo flerte com um pavoroso humor que se convencionou achar de ser uma característica “local”. Como se houvesse algo análogo a um “cearensês” – ou como, de uso, tanto se vê em mensagens escritas na Internet.

E é também evidente que tudo isso refrata-se nessa sociabilidade exageradamente exaltada via o virtual, exibida com uma ostensividade quase agressiva. Não raro através de índices que agregam tantos signos de modernidade e, logo de poder, como uma necessidade compulsiva: demonstrar aos demais que se cultiva gostos muito singulares – especialmente em termos de música ou das artes no atacado. Como se pode constatar no universo virtual. Daí que celulares, tablets, câmeras digitais, pequenos gadgets, a incorporação de um inglês um tanto capenga – mas derivado em parte dessa terminologia da TI – conformem moeda de troca corrente entre essa elite escassa e autocentrada.

Muito pouco vocacionada a olhar, em desespelho, para tudo que ela não é.

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