terça-feira, 12 de outubro de 2010

Beleza só se tem quando se acende a lamparina

[s/i/c]




Derivando duas assertivas de J.M.G. Le Clézio


J’ai toujours pensé que la littérature devait servir non pas à décrire mais à comprendre ce qu’on voyait, à entrer en soi ce qu’on voyait. Un peu comme on entre aujourd’hui des informations dans un ordinateur en les scannant. L’oeil permet de faire entrer cette information, et le dessin était pour moi un des moyens me permettant de comprendre ce que je voyais, c’est-à-dire de séparer ce que je jugeais essentiel de ce qui ne l’était pas. Dans un visage, dans une scène de rue, pour un plan de ville, un plan de rue, un plan de maison, ou bien simplement le déroulement d’une action, afin de la mettre sur le papier, afin de la voir évoluer.

[J. M. G. Le Clézio, entrevista à Le Magazine Littéraire. Para a entrevista na íntegra (em francês) AQUI]

Sempre pensei que a literatura devia servir não para descrever mas para compreender o que vemos, para adentrar propriamente no que vemos. Um pouco como adentramos nas informações em um computador hoje em dia escaneando-as. O olho propicia o adentramento nessa informação, e o desenho é para mim um dos meios que me permite compreender o que vejo; quer dizer, separar o que julgo essencial daquilo que não o é. Em um relance, em uma cena de rua, através do plano de uma cidade, o plano de uma rua, o plano de uma casa, ou mais simplesmente o desdobramento de uma ação, a fim de pô-la sobre o papel, a fim de vê-la evoluir.


Outro extrato interessante de Le Clézio – mas que não se encontra na sobrecitada entrevista – passa por aqui, quando ele nos fala das culturas ditas “primitivas”, com as quais conviveu, sobretudo entre indígenas mexicanos e nativos da Oceania:

Souvent très archaïques, à beaucoup d'égards, ces sociétés sont en même temps extrêmement juvéniles. Et possédant, en tout cas, une qualité que seule la jeunesse peut offrir: une certaine insouciance face aux aléas de la vie quotidienne. Manquer d'un peu de nourriture ou perdre quelque chose, un objet par exemple, n'est pas vécu comme un événement dramatique. Ce que je trouve terrifiant, c'est que la société moderne dans laquelle nous vivons en Occident s'enferre dans cette idée que perdre quelque chose est toujours tragique, que le tragique est incontournable, qu'on ne peut y échapper. Il faudrait aborder les aléas de la vie quotidienne avec plus d'insouciance, et accorder une attention plus grande, faire une place plus large a des préoccupations relevant de la beauté et de l'harmonie.
[in J.M.G. Le Clézio, biografia escrita por Gérard de Cortanze, p.79]

Frequentemente bastante arcaicas, em muitos aspectos, essas sociedades são ao mesmo tempo extremamente juvenis. E possuem, em todo caso, uma qualidade que só a juventude pode ofertar: uma certa despreocupação face aos riscos da vida quotidiana. Carecer de um pouco de nutrição ou perder algo, um objeto por exemplo, não é vivido como um evento dramático. É o que acho terrível, o fato de a sociedade moderna na qual vivemos no Ocidente se aferrar a esta ideia de que a perda de qualquer coisa é sempre trágica, que o trágico é incontornável, algo inescapável. Seria necessário abordar os riscos da vida quotidiana com mais despreocupação, e despertar uma maior atenção, abrir mais espaço às inquietações relevantes à beleza e à harmonia.

Sem dúvida, um ponto interessante na, digamos, estética de Le Clézio – e ele possui uma – é uma espécie de "elogio da escassez". Este aspecto é de suma importância para uma região que está se transfigurando de forma avassaladora. Sofrendo a mutação de uma sociedade artesanal, pré-industrial para uma sociedade de consumo, como o Nordeste do Brasil. Tem muito a ver com o que falamos, por exemplo, a respeito do shopping center por contraposição ao alpendre, como metáforas. E, aqui, sem saudosismos, nostalgias ou armorialismos. Mas sim com a necessidade de manter a chama viva das boas promessas históricas, que, de resto, meandram toda a sociedade e, portanto, sua arquitetura ou o uso e a forma de seus utensílios. Ou o utensílio e a forma de seus usos – parodiando Cabral.

Antes, muito antes de se falar em reciclagem, ou de os europeus desenharem o símbolo da reciclagem com três flechas em triângulo, já se fazia reciclagem em larga escala no Nordeste. Porque a escassez, a pobreza nos ensinou assim. Basta lembrar a beleza que eram as lamparinas feitas de latas de óleo de cozinha ou reaproveitando frascos de vidros de remédios. O que, de resto, resultava em objetos extremamente plásticos, úteis, funcionais. Hoje em dia quase não há mais nem uma coisa, nem outra, em termos puramente físicos – os recipientes de óleo de cozinha são de plástico, os remédios raramente vêm em grandes frascos de vidro e quase mais ninguém usa lamparinas a querosene.

Porém o desastre maior é que não as haja em termos de mentalidade real. Apesar de, paradoxalmente, tanto se falar em reciclagem desde fora.


Da minha parte, gostaria de, na medida do possível, aproximar a escrita ao modo como se confeccionavam essas antigas lamparinas: incorporando e reaproveitando materiais dentro de uma simetria e de uma forma únicas, ao mesmo tempo que coletivas e extremamente funcionais. Provindas de um pensamento autóctone, a partir de uma lição da escassez. Porque estou convencido de que a autonomia e a originalidade que essas formas indicam nada tem a ver com nostalgia ou saudade. Elas apontam para uma expressão. Para uma linguagem no melhor sentido da palavra. A que agrega a destreza, a mestria  autônomas de um povo, que só a memória pode vivificar, indicando novos caminhos a partir.


* * *

Há, por certo, nesta forma de pensar, uma solaridade e uma solidariedade não encontrável na maioria dos intelectuais europeus contemporâneos. Inclusive – e até mesmo – entre antropólogos ou missionários religiosos. Entre os primeiros há quase que um excesso, uma hiperinflação de conceitos sem lastro real. Nos segundos, com frequência, há muita condescendência em relação aos ritos locais. E essa é a generosidade de Le Clézio, uma abertura para outras culturas não ortodoxamente "ocidentais". Porém uma abertura não complacente, uma vez que ele próprio não se cansa de reiterar que essas sociedades ditas "primitivas" também tem lá sua boa carga de problemas. Aqui, não se trata de mitos de bons selvagens, portanto. Ele defende, por exemplo, que um país como o Brasil lance mão de seus recursos naturais para safar-se à pobreza. E não cansa de ridicularizar a faceta mais obtusa  e mesmo autoritária do ecologismo que grassa à reboque do "politicamente correto". Uma anedota resume isto. O contexto é o de ele estar num colóquio ao lado de um escritor de Mali, que então recebia uma premiação:


"Il y a une grande hypocrisie dans l'écologie très autoritaire telle qu'elle est pratiquée aujourd'hui. Après avoir pillé la planète, les pays occidentaux voudraient empêcher les autres pays d'accéder au développement, d'utiliser leurs matières premières. On ne peut pas interdire à un pays comme le Brésil d'avoir recours à tous les moyens pour sortir de la pauvreté. J'étais au côté de l'écrivain malien Amadou Hampâté Bâ,  un jour qu'il recevait un prix littéraire. Une dame est venue vers ce grand gaillard, très africain d'aspect, et lui a demandé : « Qu'est-ce que vous comptez faire pour sauver les éléphants ?». Il lui a répondu : « Madame, les éléphants sont de sales bêtes qui piétinent nos plantations ». La dame a été très choquée..."

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