terça-feira, 19 de outubro de 2010

No imperfeito pretérito

Anna Blume e Bernhard Blume, Kitchen Frenzy, 1986





Queria
- uma re-flexão senso-comum sobre a imensa sedução da TV sob o signo da telenovela



As telenovelas. Queria ter mais tempo e poder assisti-las. Ao menos uma. Coisa que não faço há uns dez anos. Elas aproximam as pessoas. São o combustível de muitas conversas.

O custo de tentar educar o olhar para outros sistemas de seccionar a imagem, de relacioná-la com outras imagens e com o som; de lhe dar uma sintaxe própria; de tratá-la com a singularidade que o assunto demanda; de, enfim, ritmar a imagem, evitando a assistência das telenovelas, é alto.

Sinto saudade delas. Assim como sinto dos blockbusters, porque não se pode viver só de filmes de cinemateca. O perigo é ir confeccionando as galochas do chato. E, logo, há que se buscar outras formas de apreensão de imagens. Que podem ou não passar pela novela e pelo blockbuster.

Há, no entanto filmes que seguem no limiar, a meio-termo entre algo mais palatável para uma audiência um tanto mais ampla e uma forma digna de tratar o conteúdo. Exemplos? Wise Blood, de John Huston; Waterland, de Stephen Gyllenhaal; My Life as a Dog, de Lasse Hallström; Between the Devil and the Deep Blue Sea, de Marion Hänsel; Cinemas, Aspirinas e Urubus, de Marcelo Gomes; quase todos os filmes de Nicholas Ray; e por aí se vai. 

Falar a verdade, entre assistir e não assistir novela, ainda acho melhor ler um livro. Dedilhar um violão. Ou um piano. Ouvir música com fones de ouvido, porque perturba menos. E posso ser um ouvinte compulsivo. De ouvir a mesma canção dezoito, vinte vezes seguidas. Ou tentar escrever algo. Qualquer coisa. Quase sempre ciente depois do primeiro parágrafo se daquilo sai alguma lebre ou não. Ou ir ao boteco encontrar os amigos, jogar fora alguma conversa regada a fermentados, a algum futebol, a automobilismo, àquele inescapável assunto. A música. A cidade.

Isso de só beber fermentados vem de um fígado fraco para a contundência quase mineral dos scotchs, bourbons, gins, vodcas, schnapps, steinhaegers, runs, conhaques, tequilas, piscos e, claro, cachaças. Tenho amigos que são cachaceiros finos. Que sabem o ponto cardeal de onde veio a prenda. Se da Serra de Guaramiranga, se de Minas ou do Piauí. Ou se vêm da Ypióca, a ampla e próspera indústria que as exporta até ao Japão, com bela sede, a caminho do Eusébio e do Porto das Dunas.

O importante é que no fim haja sempre aquele café amargo e aromático. Tão brasileiro como um dia deve ter sido, talvez ao tempo de Pessoa, A Brasileira do Chiado.

Pode-se fazer muitas coisas. Uma caminhada pelas redondezas. Fumar um havana depois de se degustar algo mais exótico no pub australiano, que fica duas quadras adiante.

E, no entanto, nenhuma dessas atividades te aproxima de uma incondicionalidade de assunto, que é como que ubíqua. Na sala de espera do médico, anteontem, senti-me um marciano com todos discutindo animadamente os sucessos de Passione. E eu totalmente por fora. Completamente idiotizado. Porta. Alienado. Poste.

Isso não é bom. Um dia espero voltar a ver novelas. Nunca da mesma forma de antes, contudo.

Gertrudo Stein já alertava sobre os riscos de se perder o “senso-comum”. Ela reafirmaria isso justamente por contraposição às telenovelas, já que a frase toda é: “todos recebem tanta informação o dia inteiro que acabam perdendo seu senso comum”. Mas no caso das telenovelas, elas formam quase um estoque de conversa. um Barbarismo disseminado no México e aperfeiçoado no Brasil. Um barbarismo que, apesar de reconfirmar esse excesso de informação, desperta, no mínimo, contato entre as pessoas. E, logo, uma modalidade, ainda que um tanto suspeita, de "senso-comum". E isso é relevante.

Acho que não vejo mais televisão porque o veículo é tentador demais. Convida a passar o dia inteiro fazendo só aquilo. E comento porcaria. Parece banal e bom. Algo que se faz sem qualquer preocupação, quando se está entediado, porque o mundo não parece bastante.

E, no entanto. No entanto, é teu corpo que o tubo suga para dentro de si. Junto com as tuas angústias - as legítimas. O alquebrado rosto do teu medo. Teus olhos que se vedam para a paisagem de tua casa e de teu quarto. A migalha cega de tua vontade, involuntária, de desolhar as coisas e os rostos dos que estão à volta. Sem necessariamente remultiplicá-los em outras imagens: fotos, vídeos, etc.

E, aqui. Bem aqui, lembro de Denise Levertov dizer num poema: “Alguns […] /recebem terras,/ seu próprio chão sob os pés,/ e ainda tomam estradas”.

Ver TV nada tem de errado, a não ser tudo. Porque é a forma de evasão que temos de escapar à própria percepção do mundo à volta. Evidentemente, precisamos, em maior ou menor grau dessa evasão - porque não suportaríamos um excesso de apercepção, fruição do mundo exterior, dado que ele é muito vasto. Isso simplesmente nos aniquilaria.

O problema da TV, não é este. Mas o de ser tão efetiva e, sobretudo, perene ao regular nossa percepção do mundo. Ao destreinar nossos sentidos para um corpo a corpo com percepção mesma. Suas vastíssimas realidades materiais. E as associações que secretamente encerram por detrás da realidade - apesar de antes de mais nada constituírem, em essência o mundo visível. Sua miríade de coisas concretas: superfícies, sombras, luzes, formas, brilhos, curvas, ângulos, contornos, sons, micro-espaços...

E, em assim sendo: congé, telenovelas! Foi bom enquanto durou.



Nota – para o poema completo de Levertov, clique, AQUI.


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