terça-feira, 26 de agosto de 2008

O gosto de um suave pensamento


anônimo, sec. XVIII


Quando se pensa em certo mestre caolho



Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida descontente,
Repousa lá no Céu eternamente,
E viva eu cá na terra sempre triste.

Dear gentle soul, who has, too soon, departed
this life, so discontent: please rest, my dear,
forever in heaven, while I, remaining here,
must live alone, in pain, and brokenhearted.
(na versão de William Baer)


É sintomático. O poeta da língua era uma alma inquieta. Um trânsfuga morto de sede de aventura. Que teve o olho vazado por uma seta moura. E seguiu envolvendo-se em peripécias. Algo de não pouco patético. Vida de estudante entre tavernas e putas. Amores por damas de maior estirpe. Disputas de espada com escudeiros da Casa Real. Pena comutada por degredo no Oriente. Naufrágio na foz do Mekong. Desterro em Moçambique, onde viveu na indigência. Um homem que passou ao largo da vida morta dos gabinetes. Que estava no tempo e no espaço justos para render grandeza. Quem saberá o quanto de tudo isso é legenda. Sua arte é tão vasta que autoriza essas fantasias livrescas: salvar a nado o manuscrito do poema que consolida a língua. E, no entanto, é saboroso pensar que houve algo ao menos próximo, em tangência, de tanta fantasia. Que só um ser humano assim --- sitiado por lendas posteriores, em parte criadas por uma empatia coletiva de vertigem viquiana --- pôde escrever versos como "Enquanto quis fortuna que tivesse"; "Alma minha gentil, que te partiste"; "Amor é fogo que arde sem se ver"; "Aquela triste e leda madrugada". Nada mais vanguarda que ele. Nenhuma forma mais avançada que a encontrada em seus sonetos, canções, voltas, redondilhas, decassílabos encorpados. Um bálsamo oceânico diante dos chatíssimos da vez. Diante de tanta pseudo-vanguarda que não passa de mistificação travestida de novidade. Diante de tanta repetição que é tão-só tartamudez, má hesitação e morbo. Novidade ainda é e será sempre a linguagem que não envelhece. Esquecer de buscá-la, de aludi-la, de nela nutrir-se é como esquecer de viver a língua na ponta da língua. Ou mesmo em seus abissais exílios que beiram a mudez. De viver testando suas fronteiras, seus limiares. É esquecer que é possível, volta e meia, revigorar-se nessa fonte. É esquecer que, por gerúndios e sintaxes outras, esses arroubos heróicos e expansões gentis se encontram mais próximos de nossa própria língua corrente, falada --- ao mesmo tempo recente, afro-americana e compósita e, por um genial paradoxo histórico, mais arcaica, vocálica e lusíada que a dos falantes europeus. Aqui, como em sôbolos rios, quase tudo é exceção, fermento. Quase tudo é apenas uma questão de achar o ponto e o argumento que, no espaço, seguem "da particular beleza/ para a beleza geral". Um obter, por algum milagre alquímico, o desdobrar desse ponto, o conversar desse argumento.





Mimeógrafo Generation


Africa Wallpaper, autor desconhec., c.2006




Poema ao modo dos brasileiros da década de 70

completamente desolado

o título do blogue moveu-se
automaticamente para o lado

o mundo anda sem prumo
deixou de ser centralizado

e eu, automaticamente, não sei
reparar isso

estou ferrado




Nota -- alguém por acaso sabe como recentralizar títulos de blogues?

domingo, 24 de agosto de 2008

Deus era sua única elegância: Stevens


Barnett Newman, 1945



The Good Man Has No Shape

Through centuries he lived in poverty.
God only was his only elegance.

Then generation by generation he grew
Stronger and freer, a little better off.

He lived each life because, if it was bad,
He said a good life would be possible.

At last the good life came, good sleep, bright fruit,
And Lazarus betrayed him to the rest,

Who killed him, sticking feathers in his flesh
To mock him. They placed with him in his grave

Sour wine to warm him, an empty book to read;
And over it they set a jagged sign,

Epitaphium to his death, which read,
The Good Man Has No Shape, as if they knew.

Wallace Stevens


O Homem Bom Não Tem Forma

Por séculos viveu na pobreza.
Deus era sua única elegância.

Então geração após outra tornou-se
Mais livre e forte, um tanto melhorado.

Viveu cada vida, porque mesmo ruins,
Dizia que uma boa era possível.

Por fim, veio a boa, sono bom, boa fruta,
E Lázaro entregou-o aos demais,

Que o mataram, enfiando penas em suas carnes
para dele zombar. Puseram junto à tumba

Vinho azedo em advertência, e um livro em branco;
E sobre ela puseram um marco saliente,

Epitáfio à morte dele, em que se lia,
O Homem Bom Não Tem Forma, como se soubessem.




Nota -- no segundo verso optei por não ser literal e tascar um "Só Deus era sua única elegância". Mas Stevens concordaria comigo. Mesmo sem saber português. Seu segundo idioma era o francês, que não está assim tão distante. Ele achava naturalmente "engraçado" que se pudesse falar francês o tempo todo. Daí um poema como "Le Monocle de Mon Oncle" refletir isto no título. Ainda que fosse só pelos portugueses --- não todos obviamente, apenas a fração mais pavorosa da elite em tempos idos --- e esta versão estaria mais perto da compreensão de Stevens. Eles chamam café da manhã de "pequeno almoço". Quanta vontade de ter à mesa um petit-dejeuner de manhã cedo. De todas as várias dimensões do português europeu --- algumas extremamente vívidas e charmosas --- essa subserviência ante o modelo francês é das menos atraentes.

sábado, 23 de agosto de 2008

Humor e morte: A. D. Hope


Balthus, 1943



THE BED

The doctor loves the patient,
The patient loves his bed;
A fine place to be born in,
The best place to be dead.

The doctor loves the patient
Because he means to die;
The patient loves the patient bed
That shares his agony.

The bed adores the doctor,
His cool and skillful touch
Soon brings another patient
Who loves her just as much.

A. D. Hope


A Cama

O doutor ama o doente,
O doente ama a cama;
Um bom lugar para nascer,
O melhor ao fim da trama.

O doutor ama o doente
Que aponta à letargia;
O doente ama a cama
Com quem reparte a agonia.

A cama ama o doutor,
Seu toque preciso e frio
Cedo traz outro doente
Para deitar no macio.




Nota - este poema de A. D. Hope é sempre lembrado, pelo bom humor com que trata da questão da morte, em antologias de poesia em inglês. Hope, ao morrer em 2000, aos 93 anos, era considerado o maior poeta australiano em atividade. De fato, se pode aferir o débito da Austrália para com a Inglaterra do quanto de 'humour' inglês segue embutido na peça. Inclusive no declarado 'contempt' pelos médicos. Há uma estrutura simples de extensões e rimas, que semelha o modo das quadrinhas em português. Foi por aí que se pensou a tradução.



quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Para Ela



Sobre uma foto de F. aos vinte anos

O mar, o píer, a moça e seus descalços,
Na luz da tarde que brota de seus olhos,
Os pés pisando as tábuas em falsos
Passos: ela flutua acima dos abrolhos.
Tudo converge para o xis dos braços
Onde de novo o dia nasce em portefólio—
Como se conseguisse os próprio traços
Da água da tarde, logrados em espólio.
Ela está onde a cidade se equilibra
Sobre o mar com um petroleiro à deriva
Num sem andar que move mais que a vida—
A resolução da foto não retem sua fibra.
Nela, tudo balé, milagre, céu, saliva,
E, atrás, o Atlântico é só sua jazida.



Nota – o único texto não ilustrado deste blogue vai para aquela que, em beleza e continuidade, às vezes no empuxo de horas extraordinárias, soube acolher em seus braços as promessas e os fracassos de uma vida. Na verdade, este poema é um pouco a admissão de um contrasenso, pois, como diz o de Stratford: "conservar algo que possa recordar-te seria admitir que eu pudesse te esquecer."

terça-feira, 19 de agosto de 2008

Aferindo o peso do mundo: Ginsberg


John Cassavetes, Love Streams, 1984



Song


The weight of the world
is love.
Under the burden
of solitude,
under the burden
of dissatisfaction

the weight,
the weight we carry
is love.

Who can deny?
In dreams
it touches
the body,
in thought
constructs
a miracle,
in imagination
anguishes
till born
in human--
looks out of the heart
burning with purity--
for the burden of life
is love,

but we carry the weight
wearily,
and so must rest
in the arms of love
at last,
must rest in the arms
of love.

No rest
without love,
no sleep
without dreams
of love--
be mad or chill
obsessed with angels
or machines,
the final wish
is love
--cannot be bitter,
cannot deny,
cannot withhold
if denied:

the weight is too heavy

--must give
for no return
as thought
is given
in solitude
in all the excellence
of its excess.

The warm bodies
shine together
in the darkness,
the hand moves
to the center
of the flesh,
the skin trembles
in happiness
and the soul comes
joyful to the eye--

yes, yes,
that's what
I wanted,
I always wanted,
I always wanted,
to return
to the body
where I was born.

Allen Ginsberg



Canção

O peso do mundo
é o amor.
Sob o fardo
da solidão,
sob o fardo
da insatisfação

o peso,
o peso que carregamos
é o amor.

Quem pode negar?
Em sonhos
nos toca
o corpo,
em pensamento
constrói
um milagre,
na imaginação
extingue-se
até nascer
humano—
salta do coração
ardendo de pureza—
pois o fardo da vida
é o amor,

mas suportamos o peso
cansados,
e então temos de descansar
nos braços do amor
oxalá,
descansar
nos braços do amor.

Nenhum descanso
sem amor,
nenhum sono
sem sonhos
de amor—
louco ou frio
obcecado por anjos
ou máquinas,
o último desejo
é o amor
—não deve ser amargo,
não deve negar
não deve persistir
se negar:

o peso é demasiado

—deve ser dado
sem nada
em troca
como o pensamento
é dado
na excelência
de seu excesso.

Os corpos quentes
brilham juntos
no escuro,
a mão se move
para o centro
da carne,
a pele treme
de contentamento
e alma sobe contente
até o olho—
sim, sim,
era o que
eu queria,
eu sempre quis,
eu sempre quis,
voltar
ao corpo
em que nasci.





Nota -- poema extensamente traduzido em português. Talvez a primeira versão seja de Claudio Willer, nos anos 80, para uma reunião, pioneira em livro, do trabalho de Ginsberg no Brasil. Devo ter traduzido este poema pelo menos uma meia-dúzia de vezes ao longo dos anos. Mas esta versão foi feita cinco minutos atrás. Ainda que Gisnberg tenha escrito muita coisa apenas passável, este poema é de uma beleza muito própria. Não acham? A foto de ilustração é um still de Love Streams, último filme de John Cassavetes. Na tomada, ele aparece com sua mulher, Gena Rowlands, a bela dama do teatro e do cinema norte-americanos. Curiosamente esse filme difícil, nada 'mainstream', era presença recorrente no 'Corujão' da Rede Globo aí pelos anos 80 e 90. Ao que parece Cassavetes como cineasta tem uma obra menos desigual que Ginsberg como poeta.

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

As imensas distâncias da intimidade: Larkin


Nan Goldin, 1983


Talking in Bed

Talking in bed ought to be easiest,
Lying together there goes back so far,
An emblem of two people being honest.
Yet more and more time passes silently.
Outside, the wind's incomplete unrest
Builds and disperses clouds in the sky,
And dark towns heap up on the horizon.
None of this cares for us. Nothing shows why
At this unique distance from isolation
It becomes still more difficult to find
Words at once true and kind,
Or not untrue and not unkind.

Philip Larkin


Conversar na Cama

Conversar na cama devia ser mais fácil,
Deitar juntos lá remete para tão longe,
Emblema de duas pessoas em honestidade.
Porém, mais e mais o tempo passa em silêncio.
Lá fora, a incompleta inquietude do vento
Forma e dispersa nuvens no céu,
E cidades cinzas empilham-se no horizonte.
Nada disso nos nutre. Nada mostra porque
À tamanha distância do isolamento
Se torna ainda mais difícil achar
As palavras certas e afáveis,
Ou não incertas e não inafáveis.




sábado, 16 de agosto de 2008

Uma memória de internet


Google Co., 2008



O professor e o papagaio

O professor M. de Lima e Barbacena havia lido tudo. No espaço de trinta e oito anos não havia uma página célebre dentre as milhares da literatura ocidental que sua vista cansada não houvesse averiguado.

Nesse ínterim, ele envelhecera. O corpo, de compleição naturalmente atlética, sofria distensões musculares. Contraíra diabetes. Ficara míope. A vista não mais podia ler sem óculos para perto. Além disso, ele tinha problemas na cama. Não conseguia mais lembrar sequer dos próprios sonhos. Eram tudo citações e espasmos apreendidos em textos alheios. Não lograva escrever um parágrafo que o satisfizesse. Quer dizer, sem achar que o parágrafo era apenas um pastiche pálido de Gracián, se sóbrio; ou de Vieira, se levemente entorpecido de vinho -- o único torpor que ainda lhe enlevava.

Ao longo dos anos, quanto mais o Professor Barbacena se enfronhava em suas leituras, mais se afastava dos amigos. Não se permitiu ter amores. Ter filhos seria uma hecatombe: trocar uma página de Henry James por fraldas descartáveis besuntadas de urina e cocô, nem pensar.

O professor, como todo sábio que se preza, morava sozinho. Mas tinha um papagaio. O papagaio tinha algo do professor. E, com o tempo, o professor também agregou algo do papagaio.

Ao descobrir que seria impossível render tanta cultura a alunos que mal tinham começado a ler, o Professor Barbacena tinha que decorar tudo que iria dizer aos pupilos. Absolutamente tudo. Caso contrário, simplesmente seria despedido, por uma razão simples: incomunicabilidade. O que ele diria seria impenetrável aos alunos. Nenhum código comum. O professor chegou a decorar algumas gírias.

Os esforços de didáctica do Professor Barbacena, repetidos à exaustão, antes de sair para as aulas, eram guardados pelo papagaio. Barbacena foi, aos poucos, percebendo isto.

Aos poucos, ao invés de buscar lembrar suas aulas, o professor recorria ao papagaio, como se recorre ao Google. Pronunciava um trecho ainda não esquecido, um retalho de aula, e o papagaio completava as lacunas.

Por fim, foi sumariamente despedido.

Cansado da artimanha mnemônica, Barbacena estava a levar o próprio papagaio para a sala de aula. Meio como, às vezes, em certos textos, se percebe a presença cinza e gélida do Google, da Wikipédia, a completar o calor de um pensamento.


História e anamnese


artista desc., gravura do romancista Lu Xun (1881-1936)



Lutar ou se divertir


"Cem vitórias em cem batalhas não é o mais sagaz. O mais sagaz é provocar a rendição do inimigo sem sequer lutar". O trecho encontra-se em um clássico da literatura chinesa.
A China se preparou para ser uma anfitriã modelo. As instalações esportivas impressionam pelo arrojo arquitetônico. Horários são cumpridos. A melindrável imprensa internacional pouco se tem queixado da estrutura de trabalho no centro de imprensa. Os chineses conseguem sua meta: transformar as olimpíadas no cartão de visitas de sua recém-obtida condição de superpotência.
Mas nem tudo é um mar de rosas. O esporte mais popular no país mais populoso do mundo é o futebol. E no futebol, os chineses pouco têm evoluído. O time é um saco de pancadas, e foi eliminado na primeira fase da competição olímpica. O golpe de misericórdia foi dado pelo Brasil -- justo a equipe que eles mais admiram.
"Eu adoro a técnica deles, é elegante e suave. Eles se divertem jogando futebol enquanto os jogadores da China pensam em futebol como uma luta", diz Cui Wei, fã de carteirinha da seleção brasileira, um professor do ensino básico que dirigiu cinco horas para estar no estádio, na cidade litorânea de Qinhuangdao. E ver sua adorada China jogar contra seu venerado Brasil.
Durante a partida, em que a China perdeu de 3x0, o público chinês entoou refrões exigindo a renúncia do dirigente da federação de futebol local. Além disso, à saída do estádio, houve uma pequena rusga entre torcedores insatisfeitos e a polícia. Os torcedores haviam esboçado um protesto.
Bom, por uma ironia histórica, o livro de cabeceira de Luiz Felipe Scolari na conquista da Copa de 2002 era justamente a Arte da Guerra, um tratado militar chinês escrito no sec. VI, por Sun Tzun. O mesmo de onde se extraiu a citação que abre este texto.

Fonte: International Herald Tribune [14.08.08]:
http://www.iht.com/articles/2008/08/14/sports/OLYSOC.php?page=2

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Um barulho no vão esquerdo da alma


Terry Winters, 1986



A Oficina de Efestus

Falar em eternidade, a oficina de Efestus se mudou aqui para as vizinhanças. Um barulho insuportável de solda estilhaça o silêncio da manhã. Um maçarico que vai bater nos meandros do cérebro. Engole o ruído da vassoura, que raspa os ladrilhos, gentilmente, lá fora. Não adianta pensar: não existe. Existe e troa. (Troar é legal porque remete a Tróia). Então, me imagino como um general aqueu enfurecido abordando a questão. Chegando, em estampa equestre, na recém-instalada oficina e dizendo para Efestus: "Vós não sois digno de convivência, escolhei as armas e o duelo". Mas antes caio em mim: digitando essas bobagens enquanto o mundo é varrido e soldado. Antes chegaria lá em meus próprios passos e bom espírito de diplomata. E, adaptando o discurso à circunstância, diria: "Desejo que teu time caia para terceira divisão, e que campeão não seja do Estadual pelos próximos três séculos. E que o time do filho de teu filho todos os campeonatos na lanterna acabe".

O reflexo do mover de uma barbatana de piaba sobre as correntes marítimas do Atlântico


Edward Ruscha, Nine Swimming Pools, 1970


Michael Phelps e o desejo de eternidade

O desejo de eternidade está embutido em tudo que se faz. Um poema, uma piada, um almoço, um afago ou a travessia de uma piscina em Pequim. É sintomática a frustração de Phelps em uma das provas. Ele bate na marca. Emerge das águas. Fixa o painel. Seu rosto anuvia-se. Venceu mas com um tempo abaixo do que esperava. E Phelps possui a volúpia da imortalidade. Centelha de Aquiles. Quando constata que seu tempo não foi suficientemente bom para não ser batido pelos próximos muitos anos, arremessa a toca e os óculos com raiva sobre a flor da água. Está claro que se ele fosse poeta gostaria de produzir palavras duráveis, permanentes. Que não fossem batidas na próxima olimpíada. Ele bem entende que esse desejo de imortalidade vem justamente de se bem constatar a extrema mortalidade e o vulnerável que habitam nossa casa neste mundo.

Reflexões retardadas sobre um veículo "adiantado"


Hein van Dam, Carolien Vlieger, 2002


Sete retalhos sobre blogues e bosques


i. A inversão da lógica do livro

Uma das coisas mais notáveis num blogue é que as postagens mais recentes são sempre as primeiras. Ao contrário de um livro ou de um caderno de notas. Num blogue você é educado para não rememorar. Para esquecer. Quando se acessa a página, o que há de mais novo, que é na verdade a coisa mais velha que você registrou -- sim, porque você está pelo menos alguns minutos mais velho, experiente, cético e desencantado -- vêm primeiro. Mas todo mundo acha que é a novidade. E prossegue muito satisfeito até outros blogues fazendo uma salada dos diabos.

ii. Mamãe, eu quero blogar

O princípio do blogue é o do descartável. Tudo que escapa a essa descartabilidade destoa num blogue. Mas é exatamente isso que destoa o que de fato importa. Quer dizer, algo que requer atenção. Precisamente o que o leitor de blogue --- que também é blogueiro --- não tem. Ele parece uma criança. Curiosíssima, mas incapaz de deter a atenção em algo por muito tempo.

iii. Rever teu rosto debruçado à curva da manhã e não da manha

Outro ponto notável no blogue é que você pode revisá-lo a qualquer instante. Isso é excelente para obcecados e tradutores de poesia. Mas, na prática, perfeitamente dispensável, porque os blogueiros nunca lêem as postagens mais de uma vez. E, aqui, se pode pensar no rancor que o blogue despertaria entre aqueles que tinham de compor tipo a tipo o texto a ser impresso. Isso também transforma o blogue numa sorte de fotografia completamente manipulável, e, logo, sem nenhuma força de testemunho. Lhe retira toda a autoridade, tornando-o apenas um brinquedo tão mais descartável quanto mais possível de manipular.

iv. As árvores permanecem lá, não se transformam em metáforas

Talvez a melhor coisa do blogue seja a não necessidade de se gastar papel. Quer dizer, bosques inteiros vão ser salvos por blogues. Antes, eram sacrificados apenas para se pôr algumas manchas em cima. Ou seja, para se pôr as coisas mortas sobre as vivas.

v. Querida, você vai apagar o livro, mas não esqueça de palitar os dentes

A publicação, via blogue, deixou o decisivo de lado. O blogue, ao contrário do livro, pode ser facilmente apagado diante dos olhos dos leitores. Basta quem escreve decidir que não quer mais ser lido, dar três cliques e pronto. Isso é fundamental para aferir o grau de exigência final do que segue postado. Para alterar a relação entre o leitor e a morte. O escritor tinha de pôr sua alma entre as letras. O blogueiro sabe que não só pode revisar essa alma a qualquer instante, como tirá-la completamente do ar. O blogueiro é dono da vida e da morte de seu "livro", como antes o escritor não era.


vi. Posso fazer assim, assado, cozido, trinchado e acabo não fazendo nada

No blogue, as possibilidades são imensas. Mas são cada vez mais só possibilidades.

vii. Uma última palavra

O blogue e o número sete têm muito em comum.


Inventário das máximas prioridades


Louise Bourgeois, 2003



Lista

é, há coisas mais importantes
do que a poesia neste mundo
pentear macacos, catar cocos
achar pelo em ovo, seguir para
caixa-pregos, pedir pitangas
ao cajueiro estão entre elas



quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Arte longa, vida breve


Hélio Oiticica, 1958



Epigramáticos

E este trecho de Ortega y Gasset:

“O que significa esse asco pelo humano da arte [moderna]? É por acaso asco pelo humano, pela realidade, pela vida, ou é muito mais bem tudo ao contrário: respeito à vida e uma repugnância ao vê-la confundida com a arte, com uma coisa tão subalterna como é a arte?”

Este outro de George Oppen:

“Há situações que não podem ser encaradas dignamente pela arte”.

Ora, talvez o maior problema dos poetas brasileiros contemporâneos é que há muito pouca vida no que escrevem. Eles estão excessivamente preocupados em demonstrar que leram, fizeram o dever de casa. Mas fazer o dever de casa não é sinônimo de talento. Ou de alcançar uma tradução da experiência que segue carregada de estranheza, não paridade. Eis porque tanto se assemelham. Ocupam-se com sintaxes esdrúxulas, como se o emprego de certas palavras – e não de certas experiências, por maior malogro que seja o empenho de traduzi-las -- dispensasse um correspondente lastro de vida. Como se o arranjo dessas palavras não antepusesse uma forma anterior, coletiva, que pegou dois ônibus e um metrô para ir trabalhar, que tem pais, um namorado, que é mãe solteira e passou o dia contando cédulas atrás de um guichê...

Objetividade sobre futebol é gozo precoce


Gego (Gertrude Goldschmidt), 1988


Estender uma alfombra vermelha X Poupar titulares e conseguir a terceira vitória


“Los chinos demostraron una mayor preocupación por no encajar goles que por anotarlos, lo que, unido a su ya de por limitado fútbol, extendió una alfombra roja por la que transitó a placer un Brasil a medio gas”.

“Mesmo tendo poupado alguns de seus titulares, o Brasil venceu a China por 3 a 0, com dois gols de Thiago Neves, e conseguiu sua terceira vitória no torneio masculino de futebol dos Jogos Olímpicos de Pequim, nesta quarta-feira, em Qinhuangdao”.

Eis como se pode comparar as primeiras palavras de dois artigos sobre a vitória da seleção olímpica brasileira diante dos anfitriões chineses. O segundo, da edição online da Folha de São Paulo é de uma objetividade inarredável: contendores (China e Brasil), placar (3x0), artilheiro da partida (Thiago Neves), histórico do time brasileiro (três vitórias), competição (torneio masculino de futebol dos Jogos Olímpicos de Pequim), data (esta quarta-feira), local (Qinhuangdao), alguma circunstância distinta (mesmo tendo poupado alguns titulares).

Mas é o primeiro, do diário esportivo espanhol As, que nos repassa algum ritmo, algum calor, que são destilados à margem do manual de redação. Que nos reconduz ao que há de épico numa partida de futebol.



terça-feira, 12 de agosto de 2008

Notações banais de uma falta inscrita na cidade: O'Hara


Lee Friedlander, 1974



Song


Did you see me walking by the Buick Repairs?
I was thinking of you
having a Coke in the heat it was your face
I saw on the movie magazine, no it was Fabian's
I was thinking of you
and down at the railroad tracks where the station
has mysteriously disappeared
I was thinking of you
as the bus pulled away in the twilight
I was thinking of you
and right now

Frank O'Hara


Canção

Você me viu andando pelas Garagens Buick?
estava pensando em você
tomando uma coca no calor era seu rosto
que vi na revista de cinema; não, era o de Fabian
estava pensando em você
e abaixo na bitola da ferrovia onde a estação
misteriosamente sumiu
estava pensando em você
enquanto o ônibus arremetia ao crepúsculo
estava pensando em você
como agora

Metáfora não exaurida pelas minas: Edward Dorn


Michaël Borremans, 2008



Victorio

Há um tempo de ouro
antes que a energia de um povo
chegue ao rito final
e esta é uma metáfora não exaurida
pelas minas

Não há chamada
para chorar a morte de Victorio
ele foi poupado do trivial sem sentido
de aprisionamento e escravidão
Não há princípios paridos
por um dilema no tempo
e de fato Oklahoma era
o cassino dos caciques apaches

Veja-se as fotos do bando de Jerônimo
passeando em inoperantes automóveis
ou sustendo a abóbora gigante

E, no entanto, seu gosto de Morte
é o travo que provamos na língua
quando apreciamos La Gran Apachería.

Ele, o mais temível
o mais terrível
o mais famoso.

Ed Dorn


Nota – este poema foi traduzido dezessete anos atrás, em uma terra muito distante, bonita, verde e fria. E não consegui localizar o original. Nele Ed Dorn demonstra todo seu interesse pelas culturas indígenas norte-americanas. O poema versa sobre Victorio (Vitório) [1825-1880], um dos mais notáveis caciques apaches – ao lado de Geronimo (Jerônimo). Gosto desse sentido de poesia. Uma poesia que é antropologia, história, cinema, etc. e não só das coisas do amor e das dores de corno.


Será que ele é Maomé?


Ellsworth Kelly, 1951




As 86 mulheres de Mohammed Bello Abubakar

Mohammed Abubakar tem 86 mulheres. De nacionalidade, é nigeriano. De profissão, é curandeiro, professor e pregador do islã. Segundo algumas dezenas de suas mulheres, além de sua boa forma, foi fundamental os dons de cura de Abubakar para a conquista. Mas aos 84 anos e 170 filhos, o patriarca não recomenda que se tenha 86 mulheres. “É, se fosse inglês, com salário médio, só de pensão alimentícia ele teria que viver mais de cento e vinte vidas para dar conta do recado”, pondera o professor Brian Twinckenham, do City College. Acrescendo que Abubakar não teria a possibilidade sequer de viajar nas férias. Previdência á margem, Abubakar ressalta que uma de suas esposas tem asma e lhe dá muito trabalho. E há uma outra com problemas de unha encravada. Além disso seu centésimo quadragésimo nono filho não quer nada com a vida e levou pau na escola. Há outros onze de recuperação. E cerca de catorze fugiram de casa durante a adolescência. Recentemente, noventa e três dos rebentos fundaram a Associação dos Filhos Casados de Mahommed Abubakar. Outras associações estão previstas. Entre elas, uma de filhos e netos que ficaram sem presente de aniversário. Assim mesmo, o prolifico marido relata que por quase uma dúzia de suas esposas perdeu a cabeça: “e então, você calcule: perder só uma vez já é estrago, imagine umas poucas de vezes, como no meu caso”. Abubakar ressalta que a mais velha tem 86 anos, contra 28 da mais nova. O taumaturgo africano sublinha que só consegue saldar seus débitos conjugais por ajuda divina. Mas que ninguém tente imitá-lo, pois não seria bom para a saúde. Seus detratores, no entanto, insistem em apontar que algumas esposas de Abubakar optaram por manter casos extra-conjugais: “Só que eu saiba, pelo menos umas dezesseis”, disse um vizinho do clã, que vive na cidade de Bida, norte da Nigéria. Mas esse vizinho é solteirão e parece guardar certo rancor do empenhado casadoiro. De acordo com o Corão, um homem pode ter até 4 mulheres – desde que lhes dê uma atenção equânime. Mas Mohammed Abubakar interpreta a letra. Embora reconheça que foi um pouquinho além da prescrição corânica, diz que não há nada no Al-Azim sobre castigos para quem tiver mais de um quarteto: “não tem um limite. Depende da tua força, da tua capacidade”.

Ao que se pode acrescentar: e de uma memória de elefante também. Afinal, não deve ser fácil gravar o nome das 86 esposas e dos 170 filhos. Ou um mínimo da história de vida de cada um deles. Ou até mesmo a sequência em que os meninos nasceram. Isso para não falar em netos, noras, genros, parentes-afins, etc.

Hoje [12.08.08], no El País, "No os caséis con 86 mujeres", citando uma fonte da BBC.

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

3 Citações para contexto de um blogue


Yoshitomo Nara, 1999



Sobre expressão e medidas


“Aquilo que se estende longamente é sem alma, assim como o que é repetido num comprimento fora de propósito.”
(Longino)

“Minha inteira tendência e acredito a tendência de todos os homens que um dia tentaram escrever sobre ética ou religião foi a de ir de encontro às fronteiras da linguagem.”
(Wittgenstein)

“Na má poesia muitas coisas concorrem para ilustrar um ponto. Enquanto devia ser: aquilo que concorre é o ponto.”
(George Oppen)

Os primeiros serão os últimos


Patty Chang e David Kelly, 2007



O importante é competir

Se Pierre de Frédy, o Barão de Coubertin, pudesse tornar a este mundo e constatar em que bruto negócio os jogos olímpicos se converteram, ficaria rubro. No comitê olímpico não há espaço para homens com sua mentalidade gentil. Nos tempos de hoje, quando muito, ele poderia montar uma consultoria para vender ideais. Para vender uma boa idéia que pudesse, nas mãos de outros, virar negócio da China.



sábado, 9 de agosto de 2008

Rua de mão dupla


Francis Picabia, Portrait of a Couple, 1943


Einbahnstraße


Graças às conquistas do feminismo e às astúcias da psicanálise, hoje as relações entre casais são muito mais ricas e matizadas. Em geral, têm uma mão dupla: você vai prum lado, eu vou pro outro.

Como se fosse da coleção Primeiros Passos


Phillips Smalley and Lois Weber, Suspense, 1913



O que é vanguarda?


Ao contrário do que já foi em tempos idos, é tudo que se esquece depois que se desmonta a instalação no espaço cultural.

Quando a dose é inversa ao espírito


David Wark Griffith, What Shall We Do with Our Old?, 1911



Anedota da Vacina


E um dia destilaram a vacina contra a velhice. De nada adiantou. Os sensatos que se predispuseram a vacinar-se – e as filas nos postos não eram longas -- foram justo aqueles sobre os quais a vacina não tinha qualquer efeito.

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Sem contar mexicanos: Borges


John Ford, The Searchers, 1956



A conta dos mortos de Billy The Kid



É de Jorge Luis Borges, na História Universal da Infâmia, este exemplo de humor que hoje seria tomado como preconceituoso, agressivo ou impertinente pelo politicamente correto:

“El casi niño que al morir a los veintiún años debía a la justicia de los hombres veintiuna muertes—'sin contar mejicanos'”.

“O ainda menino que ao morrer aos vinte e um anos devia à justiça dos homens vinte e uma mortes—'sem contar mexicanos'”.

É claro que Borges, que era fanático por um bom western, jamais quis insultar os mexicanos -- ele tinha apreço por figuras como Alfonso Reyes ou José Vasconcelos. Do contrário, a insólita ressalva demarca bem o modo grosseiro como a figura do mexicano era posta nos filmes de caubói. Borges gostava tanto de westerns que chegava a chorar durante as projeções encantado com o senso de honra medieval e a coragem - sobretudo daqueles que lutavam com facas.

Lendo essa e outras bravatas de Borges, de resto, se pode lembrar da frase, célebre, de Oscar Wilde: "a vida é importante demais para que se fale dela a sério".

sábado, 2 de agosto de 2008

Contanto que não haja baratas


Ernest J. Bellocq, c. 1912



Os postais pornôs do Franz


Deu no Times de Londres, hoje [02.07.08], que, nunca noticiada antes, havia no espólio de Franz Kafka uma coleção de fotos e postais pornográficos. E, ao que parece, bem apimentados: “even today the pornography would be on the top shelf” ["mesmo hoje a coleção seria guardada na prateleira de cima”], diz o especialista que fez a revelação, um tal de Dr. Hawes. De qualquer forma, um devido desconto deve ser dado, levando em conta o fato de Dr. Hawes ser inglês e certamente haver feito tão bombástica e imprescindível declaração com o rosto em brasa. Um livro será lançado em breve, analisando o caso.

O autor de Na Colônia Penal mantinha os postais trancados numa caixa, na casa dos pais, onde morava. Quando viajava em férias, levava a chave. Estima-se que não se divulgou antes a existência da coleção por receio de prejudicar a imagem – quase beatífica – do escritor.

Será?

De qualquer forma, um amigo me disse que já suspeitava da existência da coleção. E, de fato, a coisa toda só contribui para humanizar a figura de Kafka. Ou como disse um especialista (este brasileiro): “contanto que não haja entre as fotos um casal de baratas gigantes copulando, está tudo em casa”.

E está mesmo.