Google Co., 2008
O professor e o papagaio
O professor M. de Lima e Barbacena havia lido tudo. No espaço de trinta e oito anos não havia uma página célebre dentre as milhares da literatura ocidental que sua vista cansada não houvesse averiguado.
Nesse ínterim, ele envelhecera. O corpo, de compleição naturalmente atlética, sofria distensões musculares. Contraíra diabetes. Ficara míope. A vista não mais podia ler sem óculos para perto. Além disso, ele tinha problemas na cama. Não conseguia mais lembrar sequer dos próprios sonhos. Eram tudo citações e espasmos apreendidos em textos alheios. Não lograva escrever um parágrafo que o satisfizesse. Quer dizer, sem achar que o parágrafo era apenas um pastiche pálido de Gracián, se sóbrio; ou de Vieira, se levemente entorpecido de vinho -- o único torpor que ainda lhe enlevava.
Ao longo dos anos, quanto mais o Professor Barbacena se enfronhava em suas leituras, mais se afastava dos amigos. Não se permitiu ter amores. Ter filhos seria uma hecatombe: trocar uma página de Henry James por fraldas descartáveis besuntadas de urina e cocô, nem pensar.
O professor, como todo sábio que se preza, morava sozinho. Mas tinha um papagaio. O papagaio tinha algo do professor. E, com o tempo, o professor também agregou algo do papagaio.
Ao descobrir que seria impossível render tanta cultura a alunos que mal tinham começado a ler, o Professor Barbacena tinha que decorar tudo que iria dizer aos pupilos. Absolutamente tudo. Caso contrário, simplesmente seria despedido, por uma razão simples: incomunicabilidade. O que ele diria seria impenetrável aos alunos. Nenhum código comum. O professor chegou a decorar algumas gírias.
Os esforços de didáctica do Professor Barbacena, repetidos à exaustão, antes de sair para as aulas, eram guardados pelo papagaio. Barbacena foi, aos poucos, percebendo isto.
Aos poucos, ao invés de buscar lembrar suas aulas, o professor recorria ao papagaio, como se recorre ao Google. Pronunciava um trecho ainda não esquecido, um retalho de aula, e o papagaio completava as lacunas.
Por fim, foi sumariamente despedido.
Cansado da artimanha mnemônica, Barbacena estava a levar o próprio papagaio para a sala de aula. Meio como, às vezes, em certos textos, se percebe a presença cinza e gélida do Google, da Wikipédia, a completar o calor de um pensamento.
Nesse ínterim, ele envelhecera. O corpo, de compleição naturalmente atlética, sofria distensões musculares. Contraíra diabetes. Ficara míope. A vista não mais podia ler sem óculos para perto. Além disso, ele tinha problemas na cama. Não conseguia mais lembrar sequer dos próprios sonhos. Eram tudo citações e espasmos apreendidos em textos alheios. Não lograva escrever um parágrafo que o satisfizesse. Quer dizer, sem achar que o parágrafo era apenas um pastiche pálido de Gracián, se sóbrio; ou de Vieira, se levemente entorpecido de vinho -- o único torpor que ainda lhe enlevava.
Ao longo dos anos, quanto mais o Professor Barbacena se enfronhava em suas leituras, mais se afastava dos amigos. Não se permitiu ter amores. Ter filhos seria uma hecatombe: trocar uma página de Henry James por fraldas descartáveis besuntadas de urina e cocô, nem pensar.
O professor, como todo sábio que se preza, morava sozinho. Mas tinha um papagaio. O papagaio tinha algo do professor. E, com o tempo, o professor também agregou algo do papagaio.
Ao descobrir que seria impossível render tanta cultura a alunos que mal tinham começado a ler, o Professor Barbacena tinha que decorar tudo que iria dizer aos pupilos. Absolutamente tudo. Caso contrário, simplesmente seria despedido, por uma razão simples: incomunicabilidade. O que ele diria seria impenetrável aos alunos. Nenhum código comum. O professor chegou a decorar algumas gírias.
Os esforços de didáctica do Professor Barbacena, repetidos à exaustão, antes de sair para as aulas, eram guardados pelo papagaio. Barbacena foi, aos poucos, percebendo isto.
Aos poucos, ao invés de buscar lembrar suas aulas, o professor recorria ao papagaio, como se recorre ao Google. Pronunciava um trecho ainda não esquecido, um retalho de aula, e o papagaio completava as lacunas.
Por fim, foi sumariamente despedido.
Cansado da artimanha mnemônica, Barbacena estava a levar o próprio papagaio para a sala de aula. Meio como, às vezes, em certos textos, se percebe a presença cinza e gélida do Google, da Wikipédia, a completar o calor de um pensamento.
Nenhum comentário:
Postar um comentário