Jean Vigo, L'Atalante, 1934
Tudo
que corre perigo
Tudo
que surge ao lado, em surpresa, e corre perigo faz parte do que eu
quero com você. Esse é mais o menos e involuntariamente o lema de
qualquer jovem casal. E os dramas e epifanias de qualquer jovem casal
estão bem expostos em L'Atalante (1934). A visão lírica, lúdica,
lúcida, louca que Jean Vigo lança sobre recém-casados nesse filme, cuja beleza e poesia salpicam para fora de cada fotograma, tem um
preço: chegar perto de empatar com vida. O que imprime a
L'Atalante o erotismo de que o filme se reveste é a contundência de
saber que o afeto entre um jovem casal passa inevitavelmente pelo curto-circuito do corpo. Da carícia.
Não há possibilidade para amores imaginados, ideais. Ao centro desses corpos o amor queima. E não como se queima um feed com vírtua distância. O que ocorre
entre os jovens recém-casados é uma corrente elétrica que lhes
reanima, acende os corpos. E, assim, não é pouca presença de espírito
demarcar uma cena de masturbação de ambos no entrecho de uma amarga
e inesperada separação. E olha que estamos nos anos 30, não nos
60. Há vários aspectos de um cinema moderno e mesmo procedimentos e
dispositivos da nouvelle vague antecipados por L'Atalante. E não à
toa Truffaut entrevê em Vigo uma espécie de herói-precursor que é
reverenciado e devidamente citado em Le Quatre cents coups. Mas à certa altura,
mesmo esse filme perenemente atual, é subitamente assaltado por um
instante de modernidade indelével também no emprego preciso e
definitivo da música. É quando o Pére Jules (Michel Simon) - que,
fora de dúvida é o grande motor da mise-en-scène - sai atrás de
achar a jovem esposa (Dita Parlo) do capitão. As
digressões desse velho marinheiro pelas eclusas, pontes e passarelas
de Paris são secundadas por um tema musical que sequestra tudo para
uma ambiência imponderável e onírica. Uma ambiência que antecipa
o tanto de mundo que será videoclipado meio-século adiante. Ou nos
faz lembrar daqueles vagabundos que se tornam andarilhos por
nostalgia. E então, na desoladora ternura e suavidade do tema, desliza algo como se no procedimento houvesse um pressentimento de Beatles,
que só viriam trinta anos depois. São momentos fortes assim que nos
levam a perspectivar o quanto há de perecível e passado em boa
parte inclusive da tecnologia que nos rodeia. Como quando vemos num
filme de dez ou doze anos atrás os modelos graúdos dos aparelhos
celulares de então nas mãos dos atores. E como parecem desgraciosos esses aparelhos que só
servem para telefonar. E, no entanto, se nos determos melhor, mais dos que os aparelhos são os
atores, a conversa deles, o próprio filme, o modo como segue gravado e editado, que assomam
constrangedoramente datados e descartáveis. Volumosos, desgraciosos, afetados, como se também fossem parte do design dos aparelhos. Como se derivassem desse design. Ou o ressaltassem ainda melhor que os próprios aparelhos. E olha que não são mais que oito ou
dez anos passados. E no entanto, para aquele que tem uma ideia mais
consolidada, histórica, digna do que é linguagem cinematográfica e por onde se deu a
evolução dessa linguagem, filmes como L'Atalante parecem haver sido
feitos hoje pela manhã. E, por igual, semelham abrir-se muito mais rente à nossa
sensibilidade do que os blockbusters realizados com régua de público,
renda e premiações de festival à mão. Ou com a contagem dos mililitros de lágrimas que extrairão por espectador. Filmes como L'Atalante não
se enquadram em teorias. Eles as criam. No caso de L'Atalante é
paradigmático o tanto que se tentou atrelar o filme a uma canção
("La Chaland qui passe") como forma de torná-lo mais
"vendável". E assim, pela mão dos produtores, o filme foi inicialmente lançado com uma montagem diversa da de Vigo, e que buscava ao máximo ressaltar a canção. Nessa versão, levou inclusive o título da canção: La Chaland qui passe. Porém no âmbito do filme em si, durante sua
gravação - ou tomado enquanto mera intenção - havia tanta verdade, inquietação, invenção que, algum tempo depois, consideravelmente remontado à proximidade do que
Vigo havia assinalado ou previsto, o filme foi relançado com seu título original.
E desde então, atravessa o tempo como um dos mais efetivos esforços
de uma era em que fazer filmes falados era ainda um desafio incerto,
uma grande aventura diante da sofisticação a que chegara o cinema
mudo - basta lembrar que Chaplin irá filmar Tempos Modernos (Modern
Times, 1936), o último suspiro do adorável vagabundo e epílogo do cinema mudo, dois anos depois de L'Atalante. A celebrada descontinuidade da
sequência inicial do filme de Vigo não é uma ficção, um acaso ou um
fetiche nouvelle-vaguista. É, do contrário, algo que está para
além até mesmo do conceito de vanguarda. Quer dizer, daquele conceito vulgar de vanguarda como um brinquedinho de
quem é do contra ou se acha demasiado na ponta - como se arte e sensibilidade fossem de uma mensurabilidade científica ou quantificação econométrica: "sou mais de vanguarda do que você, viu?" (Mas isso não é o próprio rosto do politicamente correto? Não vive o politicamente correto dessas mensurações torpes? O politicamente correto daria náuseas em Vigo, Bresson, Tarkovski) Para não dizer dos que querem ser vanguardistas por esporte. Talvez para ressaltar que têm margem
para ser do contra. Pois, em vez da mesquinha chatice e
singlemindness que certos procedimentos vanguardeiros convocam - e isso é ainda mais patente nas instalações que em qualquer outra modalidade de arte - o que
se percebe na aridez, na amplidão desconstruída da sequência inicial de L'Atalante, a do casamento, é
poesia - o que, convenhamos, é um estágio muito mais difícil de
ser atingido do que a vanguardinha de velocípede que qualquer
cineasta da província propõe hoje em dia. E é a poesia o que energiza as junções desse filme incomum em que erotismo e esplendorosas locações externas se sucedem um tanto em revezamento. E há uma sucessão de bem tramadas sinestesias. Pelo menos até a gente chegar ao ponto de divisar na paisagem a angústia existencial e a indomável beleza em jogo a partir dos corpos desejantes. Porque, então, há um sucedâneo concreto, preciso, objectual para cada hesitação, suspiro, delírio, devaneio. Para cada abstração corresponde a concretude de uma imagem. À cada ideia há um objeto equivalente. Por exemplo, um sobrado avulso, aceso, à margem do rio, quando a noite principia, quer dizer desolamento ou medo do futuro. Ou pode ser visto como o reflexo de uma noiva no espelho, se em diálogo com uma outra tomada. Uma correspondência, enfim, só possível nesses filmes em que a própria paisagem, as roupas, os objetos dão testemunho do sentimento geral que povoa os espíritos.
[A
sequência da deambulação do Pére Jules pode ser vista aqui nos
dois minutos iniciais deste trecho do filme no Youtube. Ela encerra
com uma inusual pan vertical e logo vemos Dita Parlo numa loja de
fonógrafos, pagando por uma execução de "Le Chaland qui
passe". Mas é a avassaladora ternura desse outro tema, com suas inflexões de realejo de feira e inexcedível nostalgia o que dá o tom da coisa. E pré-propaga o videoclipe. É um tema feito sob medida para os que flanam pela cidade sem um roteiro pré-definido ou um ponto onde chegar].
Ou para mais L'Atalante e Vigo em Afetivagem: Aqui.
Ou para mais L'Atalante e Vigo em Afetivagem: Aqui.
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