sábado, 28 de janeiro de 2012

Lírico, Lúdico, Lúcido, Louco: Jean Vigo e L'Atalante quase 80 anos depois

Jean Vigo, L'Atalante, 1934

Tudo que corre perigo

Tudo que surge ao lado, em surpresa, e corre perigo faz parte do que eu quero com você. Esse é mais o menos e involuntariamente o lema de qualquer jovem casal. E os dramas e epifanias de qualquer jovem casal estão bem expostos em L'Atalante (1934). A visão lírica, lúdica, lúcida, louca que Jean Vigo lança sobre recém-casados nesse filme, cuja beleza e poesia salpicam para fora de cada fotograma, tem um preço: chegar perto de empatar com vida. O que imprime a L'Atalante o erotismo de que o filme se reveste é a contundência de saber que o afeto entre um jovem casal passa inevitavelmente pelo curto-circuito do corpo. Da carícia. Não há possibilidade para amores imaginados, ideais. Ao centro desses corpos o amor queima. E não como se queima um feed com vírtua distância. O que ocorre entre os jovens recém-casados é uma corrente elétrica que lhes reanima, acende os corpos. E, assim, não é pouca presença de espírito demarcar uma cena de masturbação de ambos no entrecho de uma amarga e inesperada separação. E olha que estamos nos anos 30, não nos 60. Há vários aspectos de um cinema moderno e mesmo procedimentos e dispositivos da nouvelle vague antecipados por L'Atalante. E não à toa Truffaut entrevê em Vigo uma espécie de herói-precursor que é reverenciado e devidamente citado em Le Quatre cents coups. Mas à certa altura, mesmo esse filme perenemente atual, é subitamente assaltado por um instante de modernidade indelével também no emprego preciso e definitivo da música. É quando o Pére Jules (Michel Simon) - que, fora de dúvida é o grande motor da mise-en-scène - sai atrás de achar a jovem esposa (Dita Parlo) do capitão. As digressões desse velho marinheiro pelas eclusas, pontes e passarelas de Paris são secundadas por um tema musical que sequestra tudo para uma ambiência imponderável e onírica. Uma ambiência que antecipa o tanto de mundo que será videoclipado meio-século adiante. Ou nos faz lembrar daqueles vagabundos que se tornam andarilhos por nostalgia. E então, na desoladora ternura e suavidade do tema, desliza algo como se no procedimento houvesse um pressentimento de Beatles, que só viriam trinta anos depois. São momentos fortes assim que nos levam a perspectivar o quanto há de perecível e passado em boa parte inclusive da tecnologia que nos rodeia. Como quando vemos num filme de dez ou doze anos atrás os modelos graúdos dos aparelhos celulares de então nas mãos dos atores. E como parecem desgraciosos esses aparelhos que só servem para telefonar. E, no entanto, se nos determos melhor, mais dos que os aparelhos são os atores, a conversa deles, o próprio filme, o modo como segue gravado e editado, que assomam constrangedoramente datados e descartáveis. Volumosos, desgraciosos, afetados, como se também fossem parte do design dos aparelhos. Como se derivassem desse design. Ou o ressaltassem ainda melhor que os próprios aparelhos. E olha que não são mais que oito ou dez anos passados. E no entanto, para aquele que tem uma ideia mais consolidada, histórica, digna do que é linguagem cinematográfica e por onde se deu a evolução dessa linguagem, filmes como L'Atalante parecem haver sido feitos hoje pela manhã. E, por igual, semelham abrir-se muito mais rente à nossa sensibilidade do que os blockbusters realizados com régua de público, renda e premiações de festival à mão. Ou com a contagem dos mililitros de lágrimas que extrairão por espectador. Filmes como L'Atalante não se enquadram em teorias. Eles as criam. No caso de L'Atalante é paradigmático o tanto que se tentou atrelar o filme a uma canção ("La Chaland qui passe") como forma de torná-lo mais "vendável". E assim, pela mão dos produtores, o filme foi inicialmente lançado com uma montagem diversa da de Vigo, e que buscava ao máximo ressaltar a canção. Nessa versão, levou inclusive o título da canção: La Chaland qui passe. Porém no âmbito do filme em si, durante sua gravação - ou tomado enquanto mera intenção - havia tanta verdade, inquietação, invenção que, algum tempo depois, consideravelmente remontado à proximidade do que Vigo havia assinalado ou  previsto, o filme foi relançado com seu título original. E desde então, atravessa o tempo como um dos mais efetivos esforços de uma era em que fazer filmes falados era ainda um desafio incerto, uma grande aventura diante da sofisticação a que chegara o cinema mudo - basta lembrar que Chaplin irá filmar Tempos Modernos (Modern Times, 1936), o último suspiro do adorável vagabundo e epílogo do cinema mudo, dois anos depois de L'Atalante. A celebrada descontinuidade da sequência inicial do filme de Vigo não é uma ficção, um acaso ou um fetiche nouvelle-vaguista. É, do contrário, algo que está para além até mesmo do conceito de vanguarda. Quer dizer, daquele conceito vulgar de vanguarda como um brinquedinho de quem é do contra ou se acha demasiado na ponta - como se arte e sensibilidade fossem de uma mensurabilidade científica ou quantificação econométrica: "sou mais de vanguarda do que você, viu?" (Mas isso não é o próprio rosto do politicamente correto? Não vive o politicamente correto dessas mensurações torpes? O politicamente correto daria náuseas em Vigo, Bresson, Tarkovski) Para não dizer dos que querem ser vanguardistas por esporte. Talvez para ressaltar que têm margem para ser do contra. Pois, em vez da mesquinha chatice e singlemindness que certos procedimentos vanguardeiros convocam - e isso é ainda mais patente nas instalações que em qualquer outra modalidade de arte - o que se percebe na aridez, na amplidão desconstruída da sequência inicial de L'Atalante, a do casamento, é poesia - o que, convenhamos, é um estágio muito mais difícil de ser atingido do que a vanguardinha de velocípede que qualquer cineasta da província propõe hoje em dia. E é a poesia o que energiza as junções desse filme incomum em que erotismo e esplendorosas locações externas se sucedem um tanto em revezamento. E há uma sucessão de bem tramadas sinestesias. Pelo menos até a gente chegar ao ponto de divisar na paisagem a angústia existencial  e a indomável beleza em jogo a partir dos corpos desejantes. Porque, então, há um sucedâneo concreto, preciso, objectual para cada hesitação, suspiro, delírio, devaneio. Para cada abstração corresponde a concretude de uma imagem. À cada ideia há um objeto equivalente. Por exemplo, um sobrado avulso, aceso, à margem do rio, quando a noite principia, quer dizer desolamento ou medo do futuro. Ou pode ser visto como o reflexo de uma noiva no espelho, se em diálogo com uma outra tomada. Uma correspondência, enfim, só possível nesses filmes em que a própria paisagem, as roupas, os objetos dão testemunho do sentimento geral que povoa os espíritos. 
[A sequência da deambulação do Pére Jules pode ser vista aqui nos dois minutos iniciais deste trecho do filme no Youtube. Ela encerra com uma inusual pan vertical e logo vemos Dita Parlo numa loja de fonógrafos, pagando por uma execução de "Le Chaland qui passe". Mas é a avassaladora ternura desse outro tema, com suas inflexões de realejo de feira e inexcedível nostalgia o que dá o tom da coisa. E pré-propaga o videoclipe. É um tema feito sob medida para os que flanam pela cidade sem um roteiro pré-definido ou um ponto onde chegar].


Ou para mais L'Atalante e Vigo em Afetivagem: Aqui.

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