Martin Scorsese, The King of Comedy, 1983
Se não foi o mordomo, deve ter sido o fã
Fã é alguém cabeça de vento, cego e louco para matar. Que é cabeça de vento, nem é preciso estender-se. Ventilador em inglês se chama fan. É cego porque nunca pensa no
grau das dificuldades, só no glamour. Não lhe ocorre, por
exemplo, que pode acontecer de seu venerado ídolo estar quase
vomitando de tão completamente enojado da canção que ele tem de
repetir pela enésima vez, como uma maldição desesperadora, espetáculo após
espetáculo. Ou que essa é uma rotina pelo menos tão massacrante
quanto os desgastantes e repetitivos procedimentos de trabalho dele próprio, fã. E, fora de dúvida, fã é louco para matar, porque como o filho, o soldado, o subordinado, o paciente, o aluno – que têm sempre o parricídio ou o motim (ainda que simbólicos) como solução no horizonte – ele próprio se encontra nitidamente numa condição como essa, e que ele julga inferior.
Há, portanto, o desejo de ser o ídolo, estar na posição do outro: subverter jogo e balança. Chegar ao poder. Avessar a ordem. Desinverter o espelho. Esse revestrés tem de acontecer mais cedo ou mais tarde, caso contrário ele não estará em paz consigo mesmo. Nesse tipo de relação, como sugeria Hegel em outro contexto, não só
o escravo é escravo, mas também o senhor é escravo do escravo. Mais ou menos como a classe-média brasileira tem sido escrava do tráfico e dos despossuídos a ponto de viver atrás de grades no último meio-século. Ou dentro de condomínios monitorados como presídios. E então alguns fãs, mais literais, não contentes com mortes simbólicas, chegam à solução final: o assassinato do ídolo. O de Lennon foi um emblema. Mas Harrison, dentro de casa, escapou de ser morto por um fã pela astúcia da esposa. E ainda assim os ferimentos resultantes desse episódio precipitaram a fragilização de sua saúde. E vai aí metade dos Beatles dizimida por fãs. De ilustração, há uma comédia negra de Scorsese (The King of Comedy, 1983) em que Jerry Lewis faz um papel um tanto autobiográfico: o de um grande cômico. Ao passo que De Niro, um aspirante a comediante e fã de Lewis, o sequestra e mantém preso numa casa. Além de ter uma arma apontada contra si, Lewis ainda é obrigado a ouvir as gags de De Niro. Ou fingir que as aprecia, fazer cíticas, sugestões, etc. A situação é absurda. Mas o filme é um bom subsídio para a psicologia do fã. Até porque depois de algum tempo não se sabe mais o que é realidade e o que vem da mente em delírio do sequestrador-fã. De resto, todo fã é um potencial sequestrador. [1] Ou no mínimo alguém extremamente violento em potência. Afinal, ele nunca está contente por princípio. Vê o ídolo, mas olhar não arranca pedaço. Colhe o autógrafo. Mas a foto é ainda mais imprescindível: ele e o ídolo, enfim, juntos. Há a foto. Mas que tal uma mecha de cabelo ou a camisa. Colhido o suvenir, há o número de telefone. Agora, nada como um encontro: para jantar? E depois, claro, chega-se à cama. É tão delicada e frágil a ordem entre fã e ídolo, que há entre gente mais velha e/ou de classes populares aquela clássica confusão instantânea que de pronto a subverte: "Fulano é meu fã", diz a velha senhora crente que está dizendo o contrário. Em verdade, diz inadvertidamente o que todo fã inconscientemente deseja dizer. Ou ouvir. Hoje, com a quantidade de comentários absolutamente maníacos ou esquizóides que se encontra internet a meio, bem se pode perceber que um grupo de fãs está muito mais perto de uma falange de freaks ou de um magote de doidos do que se imaginava só uns quatro sistemas operacionais atrás. Logo, bem se pode suspeitar qual era a ambiência entre as famosas groupies de pop-stars dos 60 e 70. Os macabros assassinatos levados a cabo pelos fanáticos de Charles Manson guardam algo da explosiva violência do fã. E não há dúvida que se o fenômeno do fã já existisse tal como hoje ao fim da época vitoriana, uma famosa catchphrase teria de ser modificada. Ao invés de "the butler did it", seria: "the fan did it". Pois, se não foi o mordomo, deve ter sido o fã.
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[1] E, aqui, seria importante conhecer o que Mário de Andrade entende por sequestro - uma conotação de sobretons eróticos - em seu conhecido ensaio "Amor e Medo".
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[1] E, aqui, seria importante conhecer o que Mário de Andrade entende por sequestro - uma conotação de sobretons eróticos - em seu conhecido ensaio "Amor e Medo".
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Sei que não é educado comentar fora do tema do post, mas como dizer que alegria ficar um tempo fora e ao voltar encontrar a csa aberta a comentários? Chegando em casa, tratarei de colocar a leitura em dia...
ResponderExcluiropa, luciana, tudo bem de viagem?
ExcluirViagem incrível e encontros da mesma estirpe. Levo um carregamento de abraços pra você, todos com genuína e carinhosa admiração.
Excluirpois ruy, eu era (e sou ainda) a maior fã do michael jackson, só que eu queria era casar com ele, ter filhos com ele (nada de tirar fotos, colher autógrafos). "só" casar e ter filhos viu? que eu sou cabeça de vento eu sempre soube, afinal até hoje eu ainda acho que ele era macho de doer e, claro, nada de pedófilo. mas assassina eu não era (e não sou) não! saudades de ti, criatura. kalu
ResponderExcluirhahahahaha, kalu, não sabia. essa sua faceta é inédita. mas veja, duvido que você fosse mais feliz sendo chaves jackson.
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