terça-feira, 11 de novembro de 2008

Bravios, verdes mares da memória


Praia de Iracema na década de 30 [Arquivo Nirez]


Teorias do desapego

O horror crônico do fortalezense por seu passado. Aqui, recordo um amigo que entende que a melhor coisa do mundo que poderia ter acontecido à cidade foi o advento dos shopping-centers.

Na aparência, não há nada de errado nisso. Afinal não se pode negar a comodidade e a segurança, quase uterinas, que se desfruta no interior dos shoppings. Neles há uma espécie de "mundo ideal" que não se encontra nas ruas: segurança, assepsia, ausência de mendigos, belas vitrines e, por vezes, belas vitrinistas. Isso, apesar de serem privados e as ruas públicas. Ou então, da história dos shoppings ser bem recente, ao contrário de certas ruas mais centrais. Mas se pode, aqui, também interpor parênteses.

O primeiro deles vem do fato de Fortaleza não ser propriamente uma São Luiz, uma Olinda, uma Salvador, uma São João D'El Rey, uma Goiás Velho. Quer dizer, cidades onde há um núcleo histórico consolidado. E, então, os shoppings não ameaçam tanto o elo entre o habitante e seu passado. Pois o passado, digamos, em São Luis ou Recife, está ao alcance de um passeio entre os sobrados da cidade antiga.

Tome um táxi em Olinda, e o motorista já vai logo lhe explicando o porquê de algumas daquelas velhas casas possuírem mais de uma camada de telhas. (Algumas delas chegam a possuir três, a que se chama "tribeira".) E o motorista, então, te diz: "Era sinal de status, meu ilustre. Quando a sinhazinha ia casar com um mau partido, se dizia que o cabra não tinha nem eira, nem beira, quanto mais tribeira". A explicação pode soar um tanto fantasiosa. E, no entanto, guarda graça ao apontar a relação entre o habitante, o espaço, a língua. Eis uma relação vital.

O segundo parêntese provem do fato de esse amigo, mencionado no início, ser arquiteto. Ora, se um arquiteto demonstra tão pouco zelo pelo passado de sua cidade, e pretere-o ao refrigério asséptico dos shoppings, por que um vendedor das Lojas Americanas ou uma trocadora de ônibus o faria?

E, no entanto, a coisa não é bem assim. Outro dia li no O Povo o depoimento da funcionária de uma escola que localiza-se logo à frente da Base Aérea. A fachada da Base foi recentemente descaracterizada sem nenhuma consulta á população ou aos órgãos que zelam pelo patrimônio. A obra data dos anos 30 e é projeto de Emilio Hinko, o arquiteto húngaro que desenhou tantos edifícios emblemáticos em Fortaleza. A funcionária dizia na reportagem: "Acho uma pena mudarem a fachada. Desde criança ando por aqui e sempre achei a frente [do prédio] muito bonita. Tomei até um susto quando cheguei de férias e vi que estavam reformando. É triste porque faz parte da nossa história".

Depoimentos como este são exceções.

O certo é que algumas teorias se agregam para dar conta desse crônico desapego. Suas variantes são criativas. Mas todas elas convergem num ponto: elas negam algo. Um atributo físico ou uma qualidade moral que a cidade ou seus habitantes deveriam ter. Mas não têm. Ausência de raízes ou, em tempos idos, de uma aristocracia agrária - como em Pernambuco.

Miguel Angelo Azevedo, o Nirez, por exemplo, crê que essa falta de apego passa pelo arrivismo da população. Difícil encontrar uma família de três ou quatro gerações nascidas na cidade. Essa falta de enraizamento reforça a idéia do espaço de Fortaleza não como algo definitivo, mas uma espécie de acampamento sazonal, onde se pode ganhar a vida à falta de outro melhor. Do qual, inclusive, se foge quando dos eventos mais importantes: carnaval, Natal, Ano-Novo, etc. Se busca o interior do estado. Justamente de onde veio o maior contigente da população da cidade, em não poucos casos, tangido pelas secas.

Para a pesquisadora Márcia Sampaio, a questão passa pelo fato de Fortaleza ser uma cidade de comerciantes. Não de grandes proprietários de terra ou de industriais empolgados e positivistas. Comerciantes tecem seu imaginário coletivo como em seus negócios, que tem nas feiras sua idéia mas cristalizada de encontro. Na sazonalidade das feiras, em seu improviso. É uma profissão que em nada resguarda os fumos aristocráticos dos senhores de terra. Eis porque, em sua transitoriedade, a perspectiva de Fortaleza tanto apelo teve para a comunidade libanesa - árabe, perita em comércio - que nela se instalou a partir de fins do sec. XIX , constituindo hoje uma fração considerável de sua elite. E, em Fortaleza, talvez em proporção maior que em qualquer outra capital da Bahia para cima.

O certo é que há, aqui, um paradoxo. No Brasil, nenhum povo emigrou mais que o cearense. Foi um cearense do Aracati quem levou a técnica da carne de charque para a região de Rio Grande e Pelotas, no Rio Grande do Sul. Isso ainda no Sec. XVII. Foram os cearenses que praticamente colonizaram o Acre -- que, até, então era território boliviano. Foram os raros cearenses retornados da Amazônia com os bolsos cheios, os "paroaras", que construíram moradias ostentosas, à novos-ricos, na Fortaleza dos primeiros lustros do século passado. E junto com tantos outros nordestinos, foram os cearenses os que puseram músculo e suor nas indústrias paulistas. Encontre-se, até hoje, com um desses emigrados, e eles morrem de saudade do Ceará. Rasam os olhos. Contam de seus tempos, espaços, paisagens com uma vivacidade de memorialistas treinados.

Enquanto isso, na outra ponta do paradoxo, os que não migraram fazem de tudo para apagar os mínimos rastros do tempo nesses mesmos espaços e paisagens que, um dia, compartiram com os que partiram. Por que será?


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