sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Longe de qualquer verso


[s/i/c]


Farewell


Cercando a península com nossos passos. Ainda conseguíamos ser os palhaços da vez por um nadinha de tempo. Era a felicidade do Brasil que ainda nos salpicava. Aquele sol imorredouro. Já de tão longe. Como luz de estrela extinta. Dunas cada vez menos. Mangues esquecidos. E seus canais meandrosos. Mas agora à tarde, o frio abrandou. Apesar de ainda, a cada sílaba dita, uma golfada de ar branco esticar-se ao outro rosto, feito uma sorte de beijo em croquis.

Como as raras casas brancas destoam das de tijolo vermelho, cinza. Tudo é um pouco cinza por essas bandas. Cinza vermelho e assepsia. E ainda assim, bonito. É mundo.

Impossível bordejar toda a península. As trilhas acabam. E, então, o que há é lamas e charco. E já que não se pode mais caminhar sobre águas, o melhor mesmo é cada um voltar pelo por-onde-veio antes de vir junto.

Algo trincou. O inverno faz exício e sombra. Sombra enorme que veste palavra desde as três da tarde. E, à sobremesa, é também uma enorme farsa. Um estar sozinho a dois recíproco. Uma suíte pop em tom menor, com diminutas recorrentes, rascantes timbres de guitarra, dissonâncias. Densas harmonias vocais. Alternados solos. Ou este sol que nunca acende direito. Que ameaça pegar, mas não pega. Um desagasalhamento de tudo. É de fechar os olhos. Para tentar enxergar mais longe. Fazer o pulmão recobrar fôlego. A língua provar o sabor da lentilha no sal. Mas não adianta fechar os olhos. O insípido está dentro. Não há benção sobre as coisas. Tudo foi trocado. Torcido como o cordão umbilical torce na hora de nascer. Ou o pescoço espasma já sem vida quando se morre.

Seguimos à margem do rio jogando de futuro. Brincando com fogo. Esgotando tudo que havia de mais puro no coração. Porque algo nos impelia como a dois títeres. Uma mão nos barrava. De simplesmente dizer a verdade. Algo que nos dizia para pisar com botas Wellington sobre os cristais dos minutos. Venham, vocês dois. São meus convidados, pisem ali. Ali é em falso. Vocês vão cair, mas antes há a sobremesa e a maçã. Uma mão invisível, fechada. Uma mancheia de mofo e instintos sacanas. Que nos conspurcava de torpeza e juventude naquela porcaria de inverno. Havia lugar mais belo para ser infeliz?

Estávamos sempre à sombra da fortaleza, da catedral. Mas o abrigo delas não nos bastava. Passeávamos por bosques ordenados pela mão humana há mais de mil anos. Aquela paisagem ordenadinha para ser bonita. Um grande jardim, do qual saímos pela porta de trás. Como bobos de abril – se em abril houvesse inverno e corte:

Piss out of my tree – entredizíamos, dentes trincados – por trás de protocolos, cortesias insípidas. Riso arrancado ao perplexo. E, no fundo, os bolsos cheios de mágoa. Pranto. Elegias. Mas ríamos. Alto até. Como se aquelas férias não fossem riso de mentira. Mas eram. De sarcasmo. Assim mais rolling-stone que beatle.

Então, de novo estávamos na península. Entrar na livraria. Colher o Later de Creeley. Datá-lo à caneta tinteiro, como se assina uma certidão. Comprar a tradução do Macunaíma e lhe dar de presente. A dedicatória escrita no verso da capa, como era senha nossa. E nossa só.

É tão mais fácil. E tão mais difícil. Quando se tem vinte anos.

Há uma gratuidade. Tipo um caminho asfaltado para as Parcas. Porque parece que se quer ainda menos ser dono de si ao se querer foder com a outra. Com o próprio destino. E a vida tivesse uma miríade de dimensões. E você dissesse: “é, agora vou por ali. Mas depois eu volto por aqui, se quiser. Sou dono do meu nariz. Esperto, moro longe. Ainda assinarei dedicatórias em versos de capas todas as vezes que quiser nesta vida. E quando quiser. E se quiser. Não nasci na véspera. Porque isso tudo é paralelo. E se pode pular de um destino para outro. Afinal, essa merda toda está só no começo. E é preciso pular de galho em galho. É o que se diz. É o que se faz. Todo mundo faz. É o que eu faço. Eu”.

As Parcas revolvem água. Revolvem a fonte. E nela há muitos desejos. E logo se ouve uma gargalhada daquelas.

Mas, então, por que se sente tanta dor? Parece que, nas manhãs, o rosto é que molha a água. Enxuga a toalha. O rosto é que talha a lâmina do barbeador. Parece que o tapa é que se dá à cara. Que as cinzas é que fumam o cigarro. E faz tanto frio. Você pigarreia. Fala sozinho. Gesticula à frente do espelho. Se acha bonito. Mas bonito o suficiente? E aí percebe, por uma espécie de déjà-vu, que não é bem assim. Essa coisa de poder. Essa coisa de poder pular de uma dimensão paralela de mundo para a outra logo ali do lado. Como se pula num lago. Ou para dentro do olhar dela, que, ora, ressentido, lhe devolve à margem.

Porém você insiste na insensatez do jogo como se inquirisse um infiel. Ou buscasse uma pele de lobo onde só havia cordeiro. Como se um tabique, uma divisória muito esguia, de um compensado fuleiragem, separasse os teus possíveis destinos. A vida jogada num par ou ímpar. Num cara ou coroa. Mas, logo você percebe que esse negócio de destino só tem naqueles filmes bobos de sessão da tarde. E as Parcas sorriem de novo. Elas só te dão um centésimo de segundo para constatar isso. Uma migalha de consciência. E, bum, você esquece. E tá ferrado outra vez. E elas cumprem a missão delas: não te deixar cumprir a missão. Porque nada está escrito. Mas tudo está. A gente que não sabe ler. E se soubesse – não saberia que sabia. Porque tudo está e não está escrito. É difícil ler coisas assim. Seres humanos, afinal, só lêem livros. Livros mais ou menos como este. Que fala de inverno, de cisão, juventude, confusão e burrice. Porque estes são assuntos dele. E nele estão escritos.

Mas acho que ainda não estavam naquela tarde. O problema é que as tardes acabam cedo no inverno.

E na manhã seguinte, veio o trem. O fumegar do café no copo de isopor liso. Certo kitsch no padrão da estampa do assento. Um vagão quase vazio. E você mais vazio que o vagão. Os poemas compressos de Creeley, impossíveis de ler. Tão estúpidos quanto quase qualquer poesia que se tenta ler sob um sei-lá-que-merda-é-essa que é muito maior do que ler poemas. Do que qualquer poesia. Essas coisas menos vestíveis, condicionadas, comestíveis – mesmo aos olhos. Coisas que não se domam por palavras. Não se dobram a elas. São aquelas que olham para as metáforas e zombam delas. E dizem do quanto as metáforas são névoa para verter um tera avos de como se está no mundo, dentro de um trem, cortando a planície do nada, a mais de mil.

Sob seus olhos, à mesa, como natureza morta, ao lado do copo descartável, o bloco onde está notado o telefone da terceira. Da emissária das Parcas. Da que veio para rematar o triângulo. E dizer que a vida é escalena, porque quase sempre a gente é mais vivido do que vivo. A velocidade da paisagem passando à vidraça. Donas-de-casa estendendo roupas. Cercas de madeira e varais. O carteiro, de quépi à cabeça, revolvendo a grande bolsa à tiracolo. Ciclistas apontando para algo lá, no rio. Pedestres a se saudar em ruas estreitas e pacíficas nos cafundós do mundo. Muros e muros de tijolos vermelhos. Casas quase idênticas. Suas chaminés. Daqui a pouco, baldear em Piccadilly. Crianças jogando futebol. Há gramados para os lados todos. Um senhor gordo de passos muito lentos segue por um desses gramados. Um imenso, confinado por um renque de ciprestes a perder de vista. Tudo são parques. Que mundo vertiginoso e lindo. Lindo de ser visto de uma janela de trem. E os grifos de copas de árvores mais próximas zunindo, desgalhadas. Tudo passa.

Para além, o coração pulsa. E a caneta escreve sobre a mesinha de entre os assentos: “desculpe desapontá-la...etc.. etc...Adeus”. Escreve em prosa.

E longe de qualquer verso o pescoço espasma.



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