Inflação, Urgência e Doutrina
Há um aspecto que venho insistindo com meus alunos já faz algum tempo quando o tema recai sobre teorias e exegeses contemporâneas: vivemos numa época de extrema inflação de discurso.
Quer dizer, há uma verdadeira febre por se produzir interpretações da realidade. E por se reproduzi-las com pequenas variações fazendo de conta que se está inaugurando uma nova linha de pensamento. Seja na filosofia, na sociologia, na história, na literatura.
O ponto é que a maioria dessas interpretações constituem tão-só modelos teóricos ocos, incongruentes ou perfeitamente datados.
São elaboradas para suprir uma demanda constante da academia. Uma espécie de sistema de moda do tipo que se retroalimenta cada vez mais em doses cavalares, já que as universidades mais e mais se assemelham a grandes empresas que se regem pela lógica do lucro – da usura, se diria no Medievo. O certo é que não retêm nenhum compromisso mais cerrado com a realidade e com a história. Com a verdade. Com sua busca.
Aqui no Brasil isso é ainda mais caricato, porque, claro, vivemos de macaquear os modelos teóricos europeus. Lévi-Strauss, discorrendo sobre o esquema mental dos alunos da USP de seu tempo, em certas páginas lapidares de Tristes Trópicos, nos dá testemunho disso já àquela altura, quando nos assegura que eles se compraziam em ostentar novas teorias como roupas novas. Ou declinar o nome de um novo teórico, desconhecido pelos demais colegas, com um gozo todo próprio. Como se possuíssem a receita de um novo prato. Uma guloseima que os outros ainda desconheciam, não haviam degustado.
E, no entanto, o conhecimento que tinham dos clássicos, da tradição e de uma formulação menos empacotilhada de pensar era sofrível. Ou seja, esse zelo cosmopolita pela teoria nova os tornava ainda mais provincianos. Coisa que, aliás, num certo sentido, São Paulo prossegue sendo. O próprio Lévi-Strauss aponta para o fato de seus estudantes paulistas estarem pelo menos seis meses mais “adiantados” que ele próprio na recepção de novas teorias. Mas serem inteiramente incapazes de se dedicar a um assunto com um mínimo de zelo monográfico ou por meio de um recorte mais profundo, menos refém desse sistema de modas acadêmicas e dessa erudição de pacotilha.
Há, de outro modo, aqui, uma distância abissal entre os teóricos europeus que experimentaram as agruras das guerras mundiais e os que vieram depois. Os primeiros, por viverem em tempos sombrios e de escassez, eram forçados a produzir um conhecimento muito mais refinado – no sentido de também muito mais urgente. Ou seja, é como se tivessem de sumarizar algo a cada página, a cada linha, a cada vírgula, pois eles próprios não tinham a certeza de amanhecer vivos no dia seguinte.
Muito diversa é a atitude dos que ainda não eram maduros nessa situação-limite. Ou dos que nasceram e cresceram sem tê-la vivido na carne: a fome, a pobreza, a falta de agasalho e esperança, as violências e incertezas da guerra, os invernos mais rigorosos, o medo. Tudo tão ao largo do virtual ou da "dobra". Do preciosismo rococó do pensamento ensimesmado e, no fundo, narcisista de nossos dias. Esse mesmo - que é produzido pelos que foram, enfim, pouco ou nada afetados por essas urgências - não confere também urgência ao pensamento. Pouco se empenha em pregueá-lo em torno de essências. Costuma, do contrário, ser mais cínico, prolixo. Abertamente sem compassividade, como um coração se encontra até num cínico daqueles tempos [penso, aqui, em Bataille, por ilustração].
Obviamente esses pensadores do depois se envergonham dos crimes praticados durante as guerras. Mas, em geral, como não é tão improvável presumir, envergonham-se do modo equívoco. Não tomam esse opróbrio como fator de sincera releitura daquele momento histórico de vexame. Preferem, de algum modo, mascarar esse vexame de formas diversas. E não permitir, assim, que ele seja a chave inarredável para a abertura de novos limiares de entendimento do passado. O que é essencial para a saúde do presente. A leitura que fazem está muito mais a serviço de legitimar uma pan-Europa oca, que se compraz ainda mais em consumir bens que os norte-americanos. Que dá voltas em torno do próprio umbigo. Que segue vampirizando as delicadas especificidades de cada cultura nacional (no que esse conceito tem de menos obtuso, de menos patriotada, etc.) em prol de uma unificação econômica que sufoca a diferença e padroniza. Sobretudo a vida dos países menores ou menos centrais.
Quase por toda parte na Europa Continental houve essa conspurcação dos Lager nazistas de um lado e dos Gulags de Stálin (ou algo que o valha) do outro. Esbirros do nacional socialismo e do comunismo de estado grassavam por toda parte. Ambos são sintomas também do paroxismo a que chegou a adoração cega do Estado laico. E também não se deve olvidar que uma considerável fração dos crimes de guerra foram praticados pelos próprios aliados. Monstruosidades que passam pelo bombardeio de Dresden. Ou por varrer do mapa por bombas atômicas duas cidades japonesas.
Em países como a França o fantasma do colaboracionismo, da traição – que passa longe de ser uma prerrogativa de um punhado de intelectuais sequiosos por não se verem desvestidos de seus privilégios - deixou fundas marcas, porque foi abraçado por considerável parcela da população. E nem por sombras tudo isso foi plenamente dimensionado. Daí que seja justamente a França o centro irradiador máximo dessa perspectiva inflacionária do discurso do pós-guerra.
Isso, apesar de haver produzido, só uma geração antes, autores fundamentais para a compreensão de nosso tempo (e dentro dessa perspectiva da urgência). Entre outros, o historiador Marc Bloch, o poeta Paul Valéry, a filósofa Simone Weil, o escritor Albert Camus, o cineasta Robert Bresson, o romancista George Bernanos.
Impressiona a ênfase que todos esses escritores ou artistas depõe sobre a necessidade da pobreza. Da pobreza de meios. Dos perigos do número. Da necessidade de construir uma mundividência não enciclopédica mas recortada sobre umas poucas, parcas referências. E também de não tomar arte e cultura como sucedâneas de um ímpeto espiritual análogo ao religioso. Uma espécie de fetiche tão presente nos dias de hoje, em que a figura do curador, do professor de pós-graduação, do artista multimídia (que mais discorre sobre seu trabalho que o realiza) parece cristalizar a presença do sacerdote ou do xamã. Ao menos aos olhos de uma classe-média ávida por demonstrar sua recém-adquirida “erudição”. Mas uma erudição de consumidores. Que se pode tomar prêt-a-porter. Eventos como bienais de arte, feiras do livro, mostras de pintura, encontros e simpósios acadêmicos, oficinas (sic) de arte, cursos de redação criativa ou instalações de arte visual ganham uma dimensão sacra. Análoga à dos sínodos católicos.
A internet ampliou desmesuradamente essa inflação de discurso ao tornar o que já vinha sendo arrasado pelos pós-estruturalistas franceses – com sua lassidão de discurso – num vastíssimo empório de platitudes. Hoje todos somos eruditos. Mas não há mais eruditos.
Pode-se ter no clique do mouse a notícia instantânea sobre um escritor pré-modernista armênio. Mas não se pode ter muito mais do que isso. Ou seja, haverá sempre uma informação "nova"– e rasa – que nos impedirá de realmente possuir, em toda sua inteireza e dignidade, a obra desse escritor.
E viva a perfumaria!
ResponderExcluirtemos vivido mais ou menos isto, maria. muita perfumaria para poucos odores.
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