terça-feira, 18 de novembro de 2008

O Borges dos quadrinhos


Carl Barks, 1972

Um Encômio a Barks no Dia do Aniversário do Mickey

Hoje Mickey Mouse faz oitenta anos. Quando nasci, ele tinha trinta e cinco e já era lido nos quatro cantos do planeta. Uma das primeiras coisas que li foi uma revista Mickey, editada pela Abril.

A Editora Abril foi fundada em 1950. Sou treze anos mais novo. A primeira revista lançada pela Abril não foi, no entanto, a Mickey mas O Pato Donald.

O pato, que nem sempre vem cantando alegremente, é um personagem menos unilateral que o rato. Ao menos nas revistas em quadrinho. Mickey é um personagem certinho, um bom-moço. O pato é humano demasiado. Quando desenhado pela imaginação fértil de Carl Barks, o pato e seus coadjuvantes - os sobrinhos e o tio muquirana - dão de lavada no Mickey.

Barks não criou propriamente o Pato Donald, mas lhe emprestou alma ao cercá-lo de uma de suas criações mais fantásticas: o Tio Patinhas. Mickey é um persongem para se ter entre os seis e os doze anos. O pato revela, quando se tem mais de doze, doses muito mais aparentes de neurose, humor, ironia, ressentimento, irritação, tão típicas da condição humana.

Nas mãos de Barks há sobretudo a imensa distância entre as aspirações do pato e suas realizações. O pato é gauche. E tem até um rival que revela-se bem mais apolíneo e bafejado pela sorte. E o que é pior, às vezes o rival assoma como mais sedutor para sua namorada. Há grande diferença entre o pato das revistas - e, em especial, o de Barks - e o dos desenhos animados. Este aparece plano diante daquele. Aquele assoma pleno diante deste.

Escrevi um artigo sobre Barks em 1996, cinco anos antes de sua morte. Mas, como moro num país distante e exótico - parecido com aqueles que ele fabulou sem jamais ter saído da Califórnia e do Oregon - ele não deve ter lido esse artigo, porque sequer soube dele. Em 1996 a internet ainda engatinhava. De resto, calculo, deve-se ter escrito dezenas de dissertações de mestrado sobre Barks com sofisticados arsenais semióticos, etc.

Agora, mesmo que soubesse do artigo, ele não poderia tê-lo lido, porque certamente tinha outras prioridades na vida, aos 95 anos, do que aprender português. De certa forma, o artigo era só uma sorte de homenagem. Sobretudo ao apontar para a sagacidade de suas histórias e para as linhas clássicas de seus desenhos.

Fecharei esta postagem com um extrato daquele artigo:

As histórias de Barks fazem supor um autor viajado e cosmopolita. Ou, no mínimo, alguém com uma sólida formação acadêmica. Elas se passam em diferentes pontos do globo, em meio a tradições exóticas e certo comércio com mitologia e história.

Nem uma coisa ou outra. Barks nunca pôs o pé fora dos Estados Unidos, via poucos filmes ou peças de teatro. Era, no entanto, um leitor voraz. E um leitor que soube transmitir sua voracidade, de forma sedutora, para milhões de outros leitores no mundo inteiro. Uma espécie de Borges dos quadrinhos.

Em uma de suas história, faz mesmo uma pequena síntese da mecânica do capitalismo. Isso se dá, ao enviar o Tio Patinhas a um remoto vale tibetano. Nesse vale, todos os habitantes vivem de forma comunal e fraterna. Demonstram inclusive, para padrões ocidentais, um prudente desapego pela riqueza material; apesar de viverem sobre extensas jazidas de ouro. Ou por isso mesmo.

Por indicação de seu psiquiatra, o velho milionário, curando-se de uma estafa, segue para o vale. Naturalmente não há aeroportos. E, antes de saltar de pára-quedas, junto com Donald e os sobrinhos, o pato mais rico do mundo abre uma garrafa de refrigerante - aqui, subentenda-se uma Coca-Cola - e atira a tampa pela porta do avião.

Adotando os usos e costumes do utópico vale, Tio Patinhas não só se refaz fisicamente como também chega a curar parte de sua auri sacri fames. Isso, ao aparentemente deixar para trás a empedernida formação calvinista, típica de yankee self-made-man, na linha de um Benjamin Franklin (alguém ainda duvida que Tio Patinhas é a melhor ilustração do calvinista em Weber?). E, então, por algum tempo, ele abraça, com todo o entusiasmo do neófito, a conduta budista de frugalidade e partição dos bens. Uma espécie de proto-comunismo.

Contudo, nesse vale ermo, no teto do mundo, um material inusitado como uma tampinha de refrigerante - ao contrário do abundante ouro que eles utilizavam até para tijolos na construção civil - é de uma raridade. Algo único. Uma espécie de ouro às avessas. Descoberta por um lavrador local, o reles objeto suscita todo um processo de trocas e disputas. Essas disputas, que por vezes são acerbas, é que seguem, em cadeia, dando origem ao capitalismo no paradisíaco vale. Consciente do que estava se passando, o velho pato, embora hesitante de início, fará de tudo no sentido de capitalizar para si a melhor fatia do bolo. No que obviamente é muito bem sucedido, ao fretar um avião cargueiro abarrotado de tampinhas. Um negócio do Tibete. Ou da China.

A ironia final dessa história, seu inteligente realismo são uma constante em Barks. Eis porque mesmo lendo-o em adulto, ele nos remete para o que há de melhor na literatura picaresca em inglês: Defoe, Swift, Fielding, Stern. Naturalmente, entre nós, para Manuel Antônio de Almeida, Machado de Assis, Lima Barreto.

Carl Barks foi mais importante para mim do que Patativa do Assaré.



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