quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Saindo do sagrado dos corpos para o profano das palavras


[s/i/c] A Catedral de Duhram


Dois Relatos do Inverno Inglês

1.A Chave

Oclusão de um porão em Durham, no que ela saíra com a mãe: visitar uma entrevada. O sentido paroquial da vida no Norte da Inglaterra. Rotinas de família. Profissionalismo social. O aquecedor portátil ardia junto à parede. E quando eu vergava os pés rente ao aparelho, os dedos formigavam.
Lá fora era ladeira e manhã. Pessoas passavam ao longo do quarteirão de casas eduardianas, onde árvores de natal piscavam nos parlours debruçados sobre as calçadas estreitas.
Eu me sentindo aliviado, por um comenos. O quarto branco. O dia cinza. A jornada ferroviária do dia anterior, desde Manchester Piccadilly. Os ombros doíam. E a mochila forrada de livros repontava, escorada no armário como um emblema.
Fiz a barba e o sangue brotou no rosto. Era sempre assim com lâminas novas. Mesmo se com maior cautela. Com o corpo querendo ficar eternamente sob a ducha quente, sobreveio o banho. E, por um estreito corredor, jamais praticável no Brasil, voltei ao quarto que me fora reservado, no porão.
Quarto branco, asséptico, vazio.
Reacendi o aquecedor. Liguei o toca-fitas, e deu num Schumann dos mais tristes. A toalha floral derramava-se, da mesa de mogno para o carpete creme. Tinha um serviço de chá sobre o balcão. E uma servidão de anos pairando no fino ar de inverno.
As notas percutiam na brancura daquela quase sala. Vez por outra, as pernas dos transeuntes assomavam à janela, por baixo dos sobretudos: jeans, brins, veludos.
Tomei uma caneca de chá e fingi que estava tudo bem. Vesti uma camiseta limpa, um pulôver, o sobretudo de botões de madeira, e saí. Ela tinha me dado a chave da casa. Faltava fecharmos uma porta.
A porta verde fechou atrás de mim piano, árvore de Natal, cortinas, cabides, livros, tacos de hóquei, deploráveis quadros expressionistas. E o dia de inverno sombrio e úmido desceu pela ladeira até bater nos velhos arcos ferroviários do Centro.
E, em cima, a catedral estava. E ao mesmo tempo, e em todos os lugares. Uma vertigem. Como negar que Durham seja sua catedral? No fim de tudo ela não é apenas um ponto de referência, uma perspectiva, uma aquarela, marco. Aquela milenar catedral fortificada, guardava a Inglaterra no limiar da Inglaterra, próxima da fronteira escocesa. Aquela milenar catedral de Durham, reproduzida em mil telas de mil diferentes paisagistas, e que para mim não vogava.
O dia era de um branco leitoso. A idéia dos objetos se dissipava ao frio. Com a mão enluvada, apertei a chave no bolso do sobretudo.


2. A Catedral

Diante de meu rosto crispado, ela apontou para o baluarte. Acima na colina, resplandecia a magnífica catedral. Mal cabia na tarde, com sua normanidade excedida. O castro dos bispos-príncipes.
Abaixo da ponte, o Wear corria manso e poluído. O dedo indicador dela nomeando paisagem em ambas as margens. A friagem do dia sob aquela luz oblíqua. As dobras do pescoço dela, que meus dedos agora tocavam, sob o cachecol. E porque ela usava um inusual jeans parecia mais alta. Um bando de gaivotas entre as pontes, e era o Boxing Day.
“Este é um lugar perfeito para um suicídio em grande estilo”, ela disse, a meio, na ponte.
“Não existem suicídios em grande estilo”, retruquei.
A ponte só era aberta aos pedestres. Na outra, os habitantes de Durham passavam de carro do centro comercial para a península.
Na margem de lá, sopé da colina, tinha um conjunto de esculturas em madeira. A cavidade de uma delas, ao centro, sugeria um assento. Ela sentou:
“Aqui dá pra ver os discípulos como se fosse na ceia o lugar do Cristo.”
As gaivotas planavam sobre o Wear. De câmera em punho, enquadrei-a. E ela rapidamente enrijeceu. Mudou para uma outra, afetada, tranqüilidade. Não era aquela que eu queria. Não era a que eu costumava fotografar. Fazia algum tempo que não éramos aqueles que queríamos, que fotografávamos.
Desisti da foto. Atravessei o conjunto de esculturas, transpus a picada, e, pisando sobre urtigas, olhei o rio: árvores que não sabia chamar pelo nome, lá na outra margem. Desconhecer tanto! Então ela me tocou no ombro. Fez como que fosse dizer outra, mas voltou atrás:
“Você é um homem estranho!".
Subimos de mãos dadas a encosta, derrapando nas pedras do pavimento antigo que conduzia às imediações da universidade. O frio sitiou-nos ainda mais e calçamos luvas. As dela só livravam os polegares.
Então, iniciei uma revisão. Uma ladainha de cenas picantes e elogios das partes íntimas dela.
Ela fez silêncio. Ouviu tudo em silêncio. Quando muito um pequeno riso nasal. E enfim, quando já não havia o que escutar, disse:
“Por favor”, disse baixinho, “estamos entrando num templo, num sítio sagrado.” Disse por protocolo e tradição, porque eu sabia que não era religiosa. Muito ao contrário.
Mas meu ponto de vista, era o inverso: saíamos do sítio sagrado dos corpos para o profano das palavras. Embora nada houvesse a ser salvo. Nenhum vestígio.
Atravessamos o claustro sombrio.
Depois entramos na catedral. E foi tudo muito solene. Um sedimento de séculos e séculos. Muito, muito neutro, bonito e solene.
[1994]


Nota - "Dois Relatos do Inverno Inglês" faz parte do livro O Bumerangue -- de crônicas-conto, escrito em 1994.

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