Paula Gavin, 2007
Entre sábado passado e a Praia do Futuro
Pode-se concordar com o Professor Antônio Lemenhe, quanto a vislumbrar o bairro como o núcleo inicial do qual partir para traçar um mínimo de planejamento urbano. Um tal que dê conta das demandas extremas de uma cidade com as dimensões e os problemas de Fortaleza. E, mesmo, num plano mais sutil, essa progressiva despersonalização dos bairros fortalezenses é, de fato, preocupante.
O lugar de um homem é sua cidade. Mas é antes sua rua e seu bairro. Mora-se num bairro, antes de se morar numa cidade. É no bairro onde, efetivamente, se tem vizinhos e amigos. E é lá onde se sai para comprar pão ou jornal. E é lá onde se bate um racha. Ou se tem ilusões amorosas. Onde se corta o cabelo. Ou se toma um trago. Ou se vai à missa. Ou onde se cria uma teia de conversas, afetos, presenças, procuras.
Lembro, que muito do que se produzia na década de oitenta em termos de música, em Fortaleza, era bastante decalcado dessa instância do conviver no bairro. Dessa geografia do bairro. Por exemplo, o Grupo Budega era formado, em predominância, pela turma que cresceu na Nova Aldeota e na Varjota. Enquanto o Latim em Pó era da turma da Aldeota Velha e da Piedade. Daí que o pessoal do Budega tenha se conhecido no Colégio Santo Inácio. Ao passo que a turma do Latim era do Cearense.
Uma cidade é tão mais forte culturalmente quanto ela possibilita essa diversidade entre bairros. Essa especificidade para cada bairro. Afinal, um bairro só se forma pela convivência. E isso leva tempo. Sem história, um bairro é apenas um depósito de gente. E é nisso que os bairros fortalezenses estão se transformando. Grandes empórios de consumo e tédio.
Um bairro é algo mais vivo. Não é só um lugar. Um bairro é um lugar com pessoas. Com pessoas concretas. E, no entanto, não só com as que moram nele atualmente. Mas também todas – indistintamente – que já passaram por ele, com suas angústias e sonhos, contam. Por curto ou longo tempo. E é destes que estamos abrindo mão. Destes que já passaram. E porque o fortalezense não se dá conta de que o presente não é um valor absoluto. O presente em si, de fato, vale bem pouco. É, quando muito, uma estreita faixa espremida entre sábado passado e a Praia do Futuro.
Logo, se o bairro é algo concreto, isso se deve a seu passado – algo que decreta suas possibilidades de futuro. Ao acúmulo de todas histórias que passaram por ele ao longo do tempo. À soma das esperanças e frustrações de todos os que, um dia, o habitaram. E dito, de novo: bairro não é apenas um lugar. É a parte desse lugar que está no primeiro coração das pessoas.
Fortaleza é tanto mais gostável quanto mais possível dimensionar isto. É a maneira como certas pessoas olham e falam de seus locais, de seus espaços, de seus bairros, que acaba por traduzir o que realmente se passa neles. O que eles representam. E o que Fortaleza, de fato, é. É por isso que Fortaleza seria infinitamente mais pobre sem o considerável número de alusões concretas a bairros ou locais da cidade feitas por artistas, historiadores, jornalistas, etc. E essas referências, claro, também se encontram não no ar, mas na impressão que as pessoas colhem, como flores podem ser colhidas. E, de fato, Fortaleza seria bem mais mesquinha sem qualquer pequeno mapa do tempo, de Belchior. Ou sem o Mucuripe, dele e de Fagner. Sem a Maraponga de Ricardo Bezerra. Ou sem a Gentilândia de Airton Monte. Sem a Aldeota, de Ednardo e tantos outros. Ou sem a Praia de Iracema de Luís Assunção, Alano de Freitas, Baleia e toda a melhor boemia. Sem o Bairro de Fátima de Ethel de Paula. Ou sem o antigo Outeiro de Herman Lima. Sem o Pici de Rachel de Queiroz. Ou sem o Sabiaguaba dos irmãos Albano. Sem o Benfica de Adolfo Caminha. Ou sem o colecionismo zeloso de Nirez e Christiano Câmara. Sem a geografia estética de Girão. Ou sem a belle-époque de Rogério da Ponte. É dessa sorte de antologia de olhares, a partir de diversos tempos e propósitos, que se faz uma cidade. E é nela que Fortaleza pulsa seu coração mais secreto.
No momento, é o Mucuripe que está ameaçado. O Mucuripe já foi bem enxovalhado também. Mas trata-se de uma região de grande relevância histórica para Fortaleza. Especialmente por haver sido e, em parte ainda o ser, uma região de pescadores. Uma colônia de pescadores que foi tangida da beira da praia, pela ganância dos especuladores, para as encostas do Castelo Encantado. E, no entanto, os pescadores continuam trabalhando lá, e há uma pequena capela nas redondezas. No dia em que passarem um espigão por cima daquela capela, na verdade o estarão passando por cima dos corpos daqueles pescadores e de suas famílias. E os que já morreram, vão morrer uma segunda vez. E o Mucuripe se povoará de visagens. Pois todos sabemos que foi no Mucuripe – e por causa dos pescadores – que se fez o mais belo ensaio fotográfico jamais realizado no Ceará. E onde também um gringo registrou imagens em filme que só em sonho. O Mucuripe já possuía uma densa carga alegórica no Iracema, de Alencar. É preciso tomar conta do Mucuripe. Discuti-lo. Opinar sobre seu futuro. Saber sobre seu passado. Esculpi-lo. E com paciência. Caso contrário, José de Alencar, Chico Albuquerque, Orson Welles, e tantos outros, mas sobretudo os velhos pescadores não vão descansar em paz.
Se hoje o Mucuripe é esse cartão-postal, com sua bela enseada, barcos oscilando leve, e hotéis cinco estrelas farejando em volta, isso se deve à intrepidez desses velhos pescadores, antes de mais ninguém. E seria justo que, depois de tanta violência e destruição, depois de tanta hipocrisia, se preservasse ao máximo os vestígios da cultura daqueles que foram os primeiros habitantes do bairro.
É bem bonito mas meio gratuito que pensadores fortes como Deleuze, Negri ou Andrew Benjamin advoguem desenraizamentos mundo afora. Eles escreveram – ou escrevem – seus ensaios aboletados em prédios de apartamento de duzentos anos. É, no mínimo, reconfortante. Mas o Ceará não tem prédios de duzentos anos. E, difícil, para nós, na mais brutal margem, é entrever vestígios mínimos de passado nos serem surrupiados a todo instante.
Fortaleza não precisa de mais feridas. Ela já vem agonizando faz tempo. Mas essa última medida da Câmara de Vereadores, franqueando o uso e a ocupação do solo – de lambuja – aos especuladores, nos enxovalha a todos. Entre mortos e feridos, nenhum final feliz com a ganância desses edis mal escolhidos. Que se anote e divulgue o nome de todos quantos votaram essa nova lei de uso do solo. E que não sejam reeleitos. Que sua memória seja amaldiçoada e se passe cal por cima de seus nomes.
Pode-se concordar com o Professor Antônio Lemenhe, quanto a vislumbrar o bairro como o núcleo inicial do qual partir para traçar um mínimo de planejamento urbano. Um tal que dê conta das demandas extremas de uma cidade com as dimensões e os problemas de Fortaleza. E, mesmo, num plano mais sutil, essa progressiva despersonalização dos bairros fortalezenses é, de fato, preocupante.
O lugar de um homem é sua cidade. Mas é antes sua rua e seu bairro. Mora-se num bairro, antes de se morar numa cidade. É no bairro onde, efetivamente, se tem vizinhos e amigos. E é lá onde se sai para comprar pão ou jornal. E é lá onde se bate um racha. Ou se tem ilusões amorosas. Onde se corta o cabelo. Ou se toma um trago. Ou se vai à missa. Ou onde se cria uma teia de conversas, afetos, presenças, procuras.
Lembro, que muito do que se produzia na década de oitenta em termos de música, em Fortaleza, era bastante decalcado dessa instância do conviver no bairro. Dessa geografia do bairro. Por exemplo, o Grupo Budega era formado, em predominância, pela turma que cresceu na Nova Aldeota e na Varjota. Enquanto o Latim em Pó era da turma da Aldeota Velha e da Piedade. Daí que o pessoal do Budega tenha se conhecido no Colégio Santo Inácio. Ao passo que a turma do Latim era do Cearense.
Uma cidade é tão mais forte culturalmente quanto ela possibilita essa diversidade entre bairros. Essa especificidade para cada bairro. Afinal, um bairro só se forma pela convivência. E isso leva tempo. Sem história, um bairro é apenas um depósito de gente. E é nisso que os bairros fortalezenses estão se transformando. Grandes empórios de consumo e tédio.
Um bairro é algo mais vivo. Não é só um lugar. Um bairro é um lugar com pessoas. Com pessoas concretas. E, no entanto, não só com as que moram nele atualmente. Mas também todas – indistintamente – que já passaram por ele, com suas angústias e sonhos, contam. Por curto ou longo tempo. E é destes que estamos abrindo mão. Destes que já passaram. E porque o fortalezense não se dá conta de que o presente não é um valor absoluto. O presente em si, de fato, vale bem pouco. É, quando muito, uma estreita faixa espremida entre sábado passado e a Praia do Futuro.
Logo, se o bairro é algo concreto, isso se deve a seu passado – algo que decreta suas possibilidades de futuro. Ao acúmulo de todas histórias que passaram por ele ao longo do tempo. À soma das esperanças e frustrações de todos os que, um dia, o habitaram. E dito, de novo: bairro não é apenas um lugar. É a parte desse lugar que está no primeiro coração das pessoas.
Fortaleza é tanto mais gostável quanto mais possível dimensionar isto. É a maneira como certas pessoas olham e falam de seus locais, de seus espaços, de seus bairros, que acaba por traduzir o que realmente se passa neles. O que eles representam. E o que Fortaleza, de fato, é. É por isso que Fortaleza seria infinitamente mais pobre sem o considerável número de alusões concretas a bairros ou locais da cidade feitas por artistas, historiadores, jornalistas, etc. E essas referências, claro, também se encontram não no ar, mas na impressão que as pessoas colhem, como flores podem ser colhidas. E, de fato, Fortaleza seria bem mais mesquinha sem qualquer pequeno mapa do tempo, de Belchior. Ou sem o Mucuripe, dele e de Fagner. Sem a Maraponga de Ricardo Bezerra. Ou sem a Gentilândia de Airton Monte. Sem a Aldeota, de Ednardo e tantos outros. Ou sem a Praia de Iracema de Luís Assunção, Alano de Freitas, Baleia e toda a melhor boemia. Sem o Bairro de Fátima de Ethel de Paula. Ou sem o antigo Outeiro de Herman Lima. Sem o Pici de Rachel de Queiroz. Ou sem o Sabiaguaba dos irmãos Albano. Sem o Benfica de Adolfo Caminha. Ou sem o colecionismo zeloso de Nirez e Christiano Câmara. Sem a geografia estética de Girão. Ou sem a belle-époque de Rogério da Ponte. É dessa sorte de antologia de olhares, a partir de diversos tempos e propósitos, que se faz uma cidade. E é nela que Fortaleza pulsa seu coração mais secreto.
No momento, é o Mucuripe que está ameaçado. O Mucuripe já foi bem enxovalhado também. Mas trata-se de uma região de grande relevância histórica para Fortaleza. Especialmente por haver sido e, em parte ainda o ser, uma região de pescadores. Uma colônia de pescadores que foi tangida da beira da praia, pela ganância dos especuladores, para as encostas do Castelo Encantado. E, no entanto, os pescadores continuam trabalhando lá, e há uma pequena capela nas redondezas. No dia em que passarem um espigão por cima daquela capela, na verdade o estarão passando por cima dos corpos daqueles pescadores e de suas famílias. E os que já morreram, vão morrer uma segunda vez. E o Mucuripe se povoará de visagens. Pois todos sabemos que foi no Mucuripe – e por causa dos pescadores – que se fez o mais belo ensaio fotográfico jamais realizado no Ceará. E onde também um gringo registrou imagens em filme que só em sonho. O Mucuripe já possuía uma densa carga alegórica no Iracema, de Alencar. É preciso tomar conta do Mucuripe. Discuti-lo. Opinar sobre seu futuro. Saber sobre seu passado. Esculpi-lo. E com paciência. Caso contrário, José de Alencar, Chico Albuquerque, Orson Welles, e tantos outros, mas sobretudo os velhos pescadores não vão descansar em paz.
Se hoje o Mucuripe é esse cartão-postal, com sua bela enseada, barcos oscilando leve, e hotéis cinco estrelas farejando em volta, isso se deve à intrepidez desses velhos pescadores, antes de mais ninguém. E seria justo que, depois de tanta violência e destruição, depois de tanta hipocrisia, se preservasse ao máximo os vestígios da cultura daqueles que foram os primeiros habitantes do bairro.
É bem bonito mas meio gratuito que pensadores fortes como Deleuze, Negri ou Andrew Benjamin advoguem desenraizamentos mundo afora. Eles escreveram – ou escrevem – seus ensaios aboletados em prédios de apartamento de duzentos anos. É, no mínimo, reconfortante. Mas o Ceará não tem prédios de duzentos anos. E, difícil, para nós, na mais brutal margem, é entrever vestígios mínimos de passado nos serem surrupiados a todo instante.
Fortaleza não precisa de mais feridas. Ela já vem agonizando faz tempo. Mas essa última medida da Câmara de Vereadores, franqueando o uso e a ocupação do solo – de lambuja – aos especuladores, nos enxovalha a todos. Entre mortos e feridos, nenhum final feliz com a ganância desses edis mal escolhidos. Que se anote e divulgue o nome de todos quantos votaram essa nova lei de uso do solo. E que não sejam reeleitos. Que sua memória seja amaldiçoada e se passe cal por cima de seus nomes.
Está mais do que na hora de tentar salvar o que ainda pode ser salvo dentro de nosso escasso patrimônio histórico. E o Mucuripe, farol da cidade, já esteve conosco tempo demais para que, de repente, sem qualquer forma de resistência, o entreguemos de mão beijada a um punhado de lobistas ávidos.
É desesperador pensar que apenas na imaginação - que só entre sábado passado e a Praia do Futuro - temos espaço para estar e lembrar de Fortaleza, ainda quando passamos por ela. Para apreciá-la do mirante da memória, dos lugares da reminiscência, se faz necessário algo menos abstrato, porque a beleza também habita a matéria. E há muito pouco de paisagem e história para se deixar aos que ainda virão. Ou, como quer Creeley, "o local não é um lugar. Mas um lugar em uma determinada pessoa. A parte desse lugar para onde se é impelido ou trazido pelo amor. Pare dele dar testemunho."
Nota - artigo originalmente publicado no jornal O Povo.
Nota - artigo originalmente publicado no jornal O Povo.
belo texto! foi um prazer encontrá-lo!
ResponderExcluiropa, claudia, o prazer é da gente.
ResponderExcluir