Joris Ivens, Regen (Chuva), 1929
Bonito de Chuva
O dia está bonito de chuva. Bonito de chuva. Nós vivemos na capital do povo que usa esta expressão – e secretamente tenho até receio que, um dia, a percamos, nos meandros da internet. Fortaleza fica linda debaixo de chuva: as pequenas correntes que se formam nas coxias; as biqueiras; o verde mais viçoso dos oitizeiros, mangueiras, pés de jambo; o rumor mais intenso das rodas dos carros no asfalto úmido; as ruas amanhecendo lavadas, ainda mais renovadas que nos dias de sol; e o desolamento dos domingos e feriados, quando todos parecem voltar-se um pouco mais para dentro de si mesmos, como se, de repente, nos tornássemos mais serranos, mais mineiros.
O cearense, por uma questão de excesso de sol, de vida ao ar livre, precisa de sua estação de chuvas. E não só para fins de agricultura. Mas para – em pleno verão no hemisfério sul – chamá-la de inverno, trancar-se em casa e desfrutar de uma sensação de aconchego próxima à do inverno de fato dos climas temperados.
E, então, meio-março corre a mística de S. José e uma mancheia de outras crendices, fórmulas de previsão de inverno. Digo que acredito nelas mais do que na internet. E mesmo me recordo voltando de uma viagem para Jericoacoara em 1984.
O tempo corria chuvoso, nós tínhamos que pernoitar em Gijoca para tomar o ônibus na manhã, e nos arranjamos em redes armadas em um alpendre de casa de farinha. Choveu noite inteira. Era aconchegante sentir que estávamos ali, protegidos da chuva e tão pertos dela. Como se fôssemos velhos conhecidos. E, se ela encorpava, leves respingos chegavam até nós. Mas melhor mesmo era adormecer ao ritmozinho de água martelando as telhas, sem mediação de forro.
De manhã bem cedo, saí para caminhar, e dois agricultores, muito brancos – como é comum naquela região – assuntavam próximos da cerca de um roçado de milho:
--Terreno tá moiado.
O dia está bonito de chuva. Bonito de chuva. Nós vivemos na capital do povo que usa esta expressão – e secretamente tenho até receio que, um dia, a percamos, nos meandros da internet. Fortaleza fica linda debaixo de chuva: as pequenas correntes que se formam nas coxias; as biqueiras; o verde mais viçoso dos oitizeiros, mangueiras, pés de jambo; o rumor mais intenso das rodas dos carros no asfalto úmido; as ruas amanhecendo lavadas, ainda mais renovadas que nos dias de sol; e o desolamento dos domingos e feriados, quando todos parecem voltar-se um pouco mais para dentro de si mesmos, como se, de repente, nos tornássemos mais serranos, mais mineiros.
O cearense, por uma questão de excesso de sol, de vida ao ar livre, precisa de sua estação de chuvas. E não só para fins de agricultura. Mas para – em pleno verão no hemisfério sul – chamá-la de inverno, trancar-se em casa e desfrutar de uma sensação de aconchego próxima à do inverno de fato dos climas temperados.
E, então, meio-março corre a mística de S. José e uma mancheia de outras crendices, fórmulas de previsão de inverno. Digo que acredito nelas mais do que na internet. E mesmo me recordo voltando de uma viagem para Jericoacoara em 1984.
O tempo corria chuvoso, nós tínhamos que pernoitar em Gijoca para tomar o ônibus na manhã, e nos arranjamos em redes armadas em um alpendre de casa de farinha. Choveu noite inteira. Era aconchegante sentir que estávamos ali, protegidos da chuva e tão pertos dela. Como se fôssemos velhos conhecidos. E, se ela encorpava, leves respingos chegavam até nós. Mas melhor mesmo era adormecer ao ritmozinho de água martelando as telhas, sem mediação de forro.
De manhã bem cedo, saí para caminhar, e dois agricultores, muito brancos – como é comum naquela região – assuntavam próximos da cerca de um roçado de milho:
--Terreno tá moiado.
--É, tá moiado.
Era Quarta-feira de Cinzas, e esse ‘moiado’ da forma como só eles pronunciariam, me ocorre ainda hoje. E me parece o adjetivo mais úmido da fala brasileira. Nos seus rostos, brancos e vincados, podia-se adivinhar uma secreta alegria. Um ânimo novo, que ia tão bem com aquela manhã onde tudo era bonito de chuva.
É pena que a chuva cause tão grandes percalços a muitos desses agricultores, que foram tangidos de suas terras para a humilhação das favelas fortalezenses. Pois chega a ser um crime que algo tão belo quanto essa chuva macia possa significar destruição, dor e vexame. E é por isso que os agricultores precisam de terras: para que a benção das chuvas, renovando-as, possa prenunciar, já no dia de S. José , o começo da ceia de Natal.
Então o ano avança, deixando para trás o inverno. Em junho é mais ameno, por toda parte, e nas serras faz frio de vera. Agosto, sopra uma brisa aprazível sobre Fortaleza. Setembro tem as chuvas do caju. Dezembro é para caminhar sob toldos. Um calor insuportável que segue janeiro adentro. E, assim, o ano passa, com sutis possibilidades de distinguir estações. Tudo é gradação desse verão imenso em que vivemos. E o ano se desdobra até um próximo, com sorte – e longe de El Niño – para ser bonito de chuva outra vez.
Nota -- Crônica publicada no extinto suplemento literário Sábado, O Povo, 21/09/1996. Republiquei-a porque esta semana Fortaleza passou vários dias com céu encoberto. Choveu copiosamente. E a cidade fica, de fato, outra quando isso acontece. E não só pelos transtornos causados por eventuais cheias e alagamentos.
Era Quarta-feira de Cinzas, e esse ‘moiado’ da forma como só eles pronunciariam, me ocorre ainda hoje. E me parece o adjetivo mais úmido da fala brasileira. Nos seus rostos, brancos e vincados, podia-se adivinhar uma secreta alegria. Um ânimo novo, que ia tão bem com aquela manhã onde tudo era bonito de chuva.
É pena que a chuva cause tão grandes percalços a muitos desses agricultores, que foram tangidos de suas terras para a humilhação das favelas fortalezenses. Pois chega a ser um crime que algo tão belo quanto essa chuva macia possa significar destruição, dor e vexame. E é por isso que os agricultores precisam de terras: para que a benção das chuvas, renovando-as, possa prenunciar, já no dia de S. José , o começo da ceia de Natal.
Então o ano avança, deixando para trás o inverno. Em junho é mais ameno, por toda parte, e nas serras faz frio de vera. Agosto, sopra uma brisa aprazível sobre Fortaleza. Setembro tem as chuvas do caju. Dezembro é para caminhar sob toldos. Um calor insuportável que segue janeiro adentro. E, assim, o ano passa, com sutis possibilidades de distinguir estações. Tudo é gradação desse verão imenso em que vivemos. E o ano se desdobra até um próximo, com sorte – e longe de El Niño – para ser bonito de chuva outra vez.
Nota -- Crônica publicada no extinto suplemento literário Sábado, O Povo, 21/09/1996. Republiquei-a porque esta semana Fortaleza passou vários dias com céu encoberto. Choveu copiosamente. E a cidade fica, de fato, outra quando isso acontece. E não só pelos transtornos causados por eventuais cheias e alagamentos.
Olhe, Ruy, tem um comentário pra vc no morenocris, sobre o post anterior. É do Tadeu, que mora em São Paulo.
ResponderExcluirBeijinhos.
*Este seu bau é encantador! Ou será caixa de Pandora? rsrs
Bom final de semana em família.
putz, que saudade! definitivamente não faço parte da turma que fala mal da própria cidade (e teria o que falar, porque ela é infestada de demônios e espíritos obcessores perigosíssimos, principalmente na região da Praia de Iracema, mas isso é outra história). E nem sou de Fortaleza, sou de Picos, minhas Highlands (haha), no interior do Piauí. I've lost two cities, como a Bishop. E foi ruim, sim. Mas dá pra levar. Porque há sempre o retorno. Abração!
ResponderExcluirolá, cris e odorico,
ResponderExcluirtá bonito de chuva em belém e em belô?
de belém tem aquela mística de fazer da chuva um relógio d'água, uma clepsidra. demarcadora de encontros, etc.
belô deve ficar muito charmosa com tantas ladeiras à volta.
abs.
ruy
Ruy, Fortaleza fica muito linda mesmo debaixo de chuva e céu cinzento. Quem mora em clima temperado não entende quando dizemos isso. Mas é que o sol aí vive em excesso, virou hábito já!
ResponderExcluirE aqui em Belo Horizonte, a chuva também faz muito bem a cidade, pois deixa tudo mais verdinho.
beijos,
Marília