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Clássico e o reino dos blogues claros
Clássicos são livros que se relêem mais do que se lêem. Podem não estar entre as leituras mais agradáveis, de início. Mas só em circunstância. E nem sempre são o melhor entretenimento. Porém só para quem não descobriu suas riquezas. Ou ainda não chegou a elas. E se, às vezes, surgem áridos e de leitura morosa, desconfie que o problema é mais seu do que deles.
De outro modo, há maus livros em que também se tem de seguir relendo parágrafos, tomando notas, consultando léxicos. O ponto é que, no caso dos clássicos, revisões, consultas, o tempo que se gasta ocupado com eles nunca dá margem para arrependimentos futuros. Eles são difíceis mas compensadores. E tão excelentes que conseguem sobreviver até mesmo ao empenho que certos professores de pós-graduação fazem por reduzi-los a mercê de Derrida, Deleuze ou De Certau.
Na definição irônica de Borges, “clássico é aquele livro que uma nação ou um grupo de nações ou o muito tempo decidiu ler como se em suas páginas tudo fosse deliberado, fatal, profundo como o cosmos, e capaz de interpretações sem término”.
Profundo como o cosmos é um bom modo de defini-los. Assim como essa feição de serem lidos sem fim. Isso também é o que nos assegura esse arremedo de Borges italiano, Calvino, quando diz que “um clássico é um livro que nunca termina de dizer o que tem de dizer”. Estranho pensar que esses livros “que nunca terminam de dizer” sejam justamente aqueles que dizem melhor. Que melhor concluem. Que batem o martelo. E dizem melhor não só o tempo em que foram escritos mas o nosso próprio ou qualquer outro. Também o tempo em que se gasta a lê-los.
Livros que terminam de dizer tem uma maior chance de serem grandes sucessos presentes e futuros esquecimentos. Sabotagens, no fim. Mesmo que se reivindiquem obras-abertas com bateres de bumbo. Mas clássicos são livros que não enrolam o leitor, no sentido de lhe devolver ritmos tão impalpáveis quanto os da vida. E, portanto, concretos, como quando se põe em dúvida entre abrir o pacote de caixa de fósforos pelo lado que mais lhe agrada. Ou seja, aqueles em que elas surgem com as lixas à mostra, no comprido, se você, por sensibilidade gosta mais do desenho, da geometria, da análise, de algo cerebral; ou do contrário, abri-lo na largura, que lhe mostra a cor azul das gavetas, se você tende mais à cor e à emoção. Se por um flanco há nos clássicos um apego aos ritmos da vida e ao sabor das coisas, por outro eles os transcendem. Convertem circunstâncias - às vezes de uma rematada banalidade - em valores eternos. Mais certo é que quase sempre se atém ao senso-comum e não às pirotecnias mentais de iniciados e gnósticos. Dos que se fecham em solipsismos, especialismos reverentes a um sistema anterior. Leituras teóricas de crista de onda. Ou a um desmedida crença no brilho individual: seja de quem os escreve, seja de quem escreve sobre eles.
Pode-se falar em evolução, como transcurso e acúmulo. E é bom saber desse roteiro e desse resíduo. Mas não há progresso em arte, em literatura – na vida também, mas há gente que não intui isto. Que não intui que podemos aprender com qualquer época histórica, porque o que não falta a todas é experiência humana. Um livro publicado em 2009 não é automaticamente melhor do que um publicado em 1922 apenas porque foi publicado “depois” ou está mais rente ao presente. Dificilmente surgirá em 2009 um livro tão inovador e atual quanto o Ulysses de Joyce, que foi publicado oitenta e sete anos atrás. E jamais surgiu, no Ocidente, um livro maior e mais inovador do que a Bíblia ou mesmo do que os poemas Homéricos, que são um tanto anteriores e muito mais importantes que Joyce. Ou das incontáveis páginas escritas - em virtualidade ou não -neste último século, onde tudo foi cinema, onde todos viraram identidades – da Teoria da Relatividade à Teoria Quântica, passando pela ditadura dos relativismos e pelo reino dos blogues claros.
Mas, claro, clássico também se expande para fora do livro. No futebol, um clássico é um embate tão bom, que transcende uma única partida. Que está sempre sendo jogado, pois congrega toda uma antologia de partidas anteriores, lances e gols a cada nova partida. Que, aliás, está sendo jogado mesmo quando não há partida: na memória, intrincando-se pelos meandros dos dias e seus trabalhos. Pelo eloqüente fulgor ou invulgar perícia de certas jogadas. Pelo quotidiano, enfim. A coexistência entre efêmero e eterno está à base do que é clássico.
Enquanto no livro comum o ano passa em Mercúrio, no clássico ele transcorre em Plutão. Com vagar e convites à antologia e à releitura. Mas se a resposta da sabedoria é demandada em urgência, o clássico te dá um raio; o mau livro, uma conexão discada.
Nota - crônica originalmente publicada no jornal O Povo, com pequenas variantes.
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