Fátima Santos em foto de Augusto Cesar Costa, c. 2007
Para quem ela não é nada cenário
Outra noite, passei no Bebedouro para uma conversa, uma cerva e uma sinuca. Quem estava lá era Fátima Santos. Sozinha, no intervalo do set, sentada numa mesa à varanda, ela folheava um grande álbum com dezenas de letras de canções. Até então conhecia Fátima só de vista. De voz, seria melhor dizer.
Na noite quente de dezembro, decidi quebrar o gelo, e me apresentar. E ficamos proseando e bebendo cerveja. Ela fumava cigarros extra-longos com dedos extra-longos e unhas extra-longas repintadas de vermelho. Envergava uma blusa branca de estampas pretas, uma saia jeans e pingentes. Calçava sandálias leves, de couro. Sou um fã de carteirinha de Fátima. E a custo consegui dissimular minha admiração por esta que é uma de nossas melhores cantoras.
Fátima me disse que é de Áries. Mas, tenho para mim, que ela vem mesmo é da constelação de Áries. Ou seja, que é literalmente d’outro planeta. Ela porta uma expressão forte. De gente que bota banca. E que bem tem lá seu direito de botar banca. Acho Fátima o oposto do maneirismo que encontramos entre muito artista com nome por aí. E é um atraso que ela ainda não tenha tido a ocasião de entrar em estúdio e registrar seu timbre raro, de contralto.
Falamos a respeito. E ela me disse de seu apreço pelo trabalho de Fausto Nilo. Falamos de amigos comuns. E lembro-me de haver comentado algo sobre exposição. Sobre a desnudez de quem canta. Claro, nas brigas de saloon a cantora está muito mais exposta que o sujeito ao piano. E fiquei surpreso, de ouvir daquela mulher de traços fortes algo sobre ansiedades, medos, tensões. Mas logo Carlinhos Patriolino reassumiu o violão, e puxou na cravelha a afinação do ré. Hora de cantar. E fiz menção de me retirar.
Porém Fátima insistiu para que eu ficasse. E seguiu cantando, sentada na cadeira, do lado de lá da mesa, com a naturalidade de quem conversa o jogo. E pude presenciar, ao alcance de um toque, toda sua técnica. O modo como ela maneja o microfone, meio como se o microfone fosse um instrumento musical, sempre graduando a distância exata para a emissão de sua voz, acobreada, de contralto. O microfone como calibração de fluxo:
─“Olha, esta mulata quando dança é luxo só...”
Também ouvi outras coisas que ela não cantou nem disse. Mas estavam ali. Anos e anos de noite. Apresentando-se para gente que, em geral, não tem a menor dimensão de sua arte. Para quem ela é tão cenário quanto uma palmeira-anã num vaso, a um canto da varanda. Ou o aprendizado intuitivo que, ao longo de anos, transformou essa menina do subúrbio em nossa grande dama da canção. E que todos esses anos para Fátima não foram mais do que um piscar de olhos. Porque, claro, nela o talento está tão evidente.
Hoje em dia, se tem o costume de pensar arte como uma espécie de terapia ocupacional. Algo ao alcance de todos e para a felicidade geral da nação. E, em geral, se esquece que além de paciência, técnica, e um coração que chega ser quase tão grande quanto o mundo, é preciso talento.
A noite refrescou um tanto. A agradável atmosfera de dezembro parecia girar em espiral sobre a Norvinda Pires. Um meia-lua firmou-se acima de uma cumeeira, do outro lado da rua. Entre uma canção e outra ouvia-se o entrechoque de bolas de sinuca.
E Fátima seguiu cantando.
Na noite quente de dezembro, decidi quebrar o gelo, e me apresentar. E ficamos proseando e bebendo cerveja. Ela fumava cigarros extra-longos com dedos extra-longos e unhas extra-longas repintadas de vermelho. Envergava uma blusa branca de estampas pretas, uma saia jeans e pingentes. Calçava sandálias leves, de couro. Sou um fã de carteirinha de Fátima. E a custo consegui dissimular minha admiração por esta que é uma de nossas melhores cantoras.
Fátima me disse que é de Áries. Mas, tenho para mim, que ela vem mesmo é da constelação de Áries. Ou seja, que é literalmente d’outro planeta. Ela porta uma expressão forte. De gente que bota banca. E que bem tem lá seu direito de botar banca. Acho Fátima o oposto do maneirismo que encontramos entre muito artista com nome por aí. E é um atraso que ela ainda não tenha tido a ocasião de entrar em estúdio e registrar seu timbre raro, de contralto.
Falamos a respeito. E ela me disse de seu apreço pelo trabalho de Fausto Nilo. Falamos de amigos comuns. E lembro-me de haver comentado algo sobre exposição. Sobre a desnudez de quem canta. Claro, nas brigas de saloon a cantora está muito mais exposta que o sujeito ao piano. E fiquei surpreso, de ouvir daquela mulher de traços fortes algo sobre ansiedades, medos, tensões. Mas logo Carlinhos Patriolino reassumiu o violão, e puxou na cravelha a afinação do ré. Hora de cantar. E fiz menção de me retirar.
Porém Fátima insistiu para que eu ficasse. E seguiu cantando, sentada na cadeira, do lado de lá da mesa, com a naturalidade de quem conversa o jogo. E pude presenciar, ao alcance de um toque, toda sua técnica. O modo como ela maneja o microfone, meio como se o microfone fosse um instrumento musical, sempre graduando a distância exata para a emissão de sua voz, acobreada, de contralto. O microfone como calibração de fluxo:
─“Olha, esta mulata quando dança é luxo só...”
Também ouvi outras coisas que ela não cantou nem disse. Mas estavam ali. Anos e anos de noite. Apresentando-se para gente que, em geral, não tem a menor dimensão de sua arte. Para quem ela é tão cenário quanto uma palmeira-anã num vaso, a um canto da varanda. Ou o aprendizado intuitivo que, ao longo de anos, transformou essa menina do subúrbio em nossa grande dama da canção. E que todos esses anos para Fátima não foram mais do que um piscar de olhos. Porque, claro, nela o talento está tão evidente.
Hoje em dia, se tem o costume de pensar arte como uma espécie de terapia ocupacional. Algo ao alcance de todos e para a felicidade geral da nação. E, em geral, se esquece que além de paciência, técnica, e um coração que chega ser quase tão grande quanto o mundo, é preciso talento.
A noite refrescou um tanto. A agradável atmosfera de dezembro parecia girar em espiral sobre a Norvinda Pires. Um meia-lua firmou-se acima de uma cumeeira, do outro lado da rua. Entre uma canção e outra ouvia-se o entrechoque de bolas de sinuca.
E Fátima seguiu cantando.
Nota - esta crônica foi originalmente publicada em Nariz de Cera, 2006. Da época que este texto foi escrito para cá, Fátima, não sei se pela mesma numerologia esotérica que fez com que Jorge Ben incorporasse o "Jor" ao nome, agregou um "h" a seu pré-nome: Fhátima.
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