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Digressão Sobre Bibliotecas e Espirais
Hoje, a noção de livro vai muito além daquela que só alguns poucos anos atrás tínhamos. Assim, o livro está pairando por aí. Está na rede, nos computadores. Podemos recebê-lo via imeio ou visitá-lo numa miríade de blogues. Até por razões ambientais, a noção de biblioteca virtual é apaixonante. E implica um alto grau de portabilidade e acesso. Mas também de apagamento. A cada nova edição de software, milhões de documentos são perdidos para sempre ao redor do planeta. A cada suporte substituído – vinil, disco flácido, disquete – que é cambiado por outros meios ainda mais compactos, ainda mais digitalizados, quantos Dom Quixotes não vão para o limbo? É certo, ao lado de uma infinidade de porcarias.
E há essas ruínas de bibliotecas passadas que são os sebos. Os sebos estão para as bibliotecas, assim como as colchas de retalhos para a tapeçaria. São inesgotáveis fontes de acesso a um passado quase perdido. E os melhores são deliciosamente caóticos.
Pode-se acumular muitos dissabores com livros e bibliotecas. E, ainda assim, não desistir da presença deles. Sentir-se mais seguro com eles por perto. É fácil, no entanto, perceber que nem sempre o acúmulo de livros segue na mesma proporção de uma voracidade de leitura ou consulta. E conheço todo um repertório de histórias envolvendo acervos e seus donos. Desde gente que doou livros a instituições e depois se arrependeu até bibliômanos que tem um ou outro toque fantástico em relação à biblioteca pessoal.
O caso mais interessante que já ouvi me foi contado por um amigo, leitor voraz de ficção e poesia em idiomas sortidos. No caso dele, a biblioteca era sempre sitiada pela água. Como mudava-se com freqüência de casa e cidade, habitou em lugares os menos recomendados para bibliotecas. Desde um porão no bairro paulistano da Pompéia até uma casa de praia em Florianópolis, passando por um estranho sótão de sacristia em Perdizes, de novo São Paulo. Ou o último andar habitável do Edifício San Pedro, na Praia de Iracema.
Em todos os lugares, invariavelmente, teve problemas com água. Papel e água não sintonizam. E suas perdas não foram pequenas. Mas, ainda hoje, ele mantém sua biblioteca com brio e quase mesmo entusiasmo adolescente de quando a começou.
De resto, toda biblioteca é em espiral. Não vemos isto porque a ótica ilude. E somos míopes em graus diversos. E, então, essa espiralidade das bibliotecas nos escapa como nos escapa o planeta Vênus quando o sol surge. Como a biblioteca, cada som que chega à mente humana, chega em espiral. E tem de atravessar um labirinto. E, a exemplo, dos que lêem mas não aprendem, quem ouve e não sente sofre de labirintite. Ou seja, fica tonto de tanto buscar saídas. Quando a saída é aprender a conviver com a condição de espiral, de labirinto, que é a própria condição borgiana da biblioteca.
Claro, as melhores bibliotecas estão dentro de nós. E também são labirínticas e sem emprego imediato. Nenhuma pronta serventia. Nenhuma operação ou cálculo - que isso não é matéria de livros de verdade. Nenhuma serventia, a não ser a mais radical das serventias: auto-conhecimento. Espiral que não tem fim.
Não creio que todos gostem de livros o suficiente para compor uma biblioteca. Há pessoas que nunca leram e tem mais de biblioteca do que muitos doutores. Estas entenderam a espiral da vida. E da morte. O que está escrito na Bíblia ou na Ilíada, sabem de cor sem precisar ler. para elas o mundo é o livro. E o moinho. Porém, como árvores, estão em extinção, porque no suposto mundo globalizado em que vivemos, é necessário que todos leiam. Ao menos para as estatísticas do Estado. Mesmo aqueles que, com o calcanhar quebrado, sozinhos, sem televisor, sem telefone, sem internet por perto, não tem a menor vocação para sentar-se, calmamente, diante de um livro numa noite de chuva.
Nota – esta crônica foi originalmente publicada no Diário do Nordeste, em 2007.
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