terça-feira, 8 de julho de 2008

Fios de Ariadne contra as Dalilas do tempo

Léopold Survage, Study for the Film, 1913

Antes que eles se mandem para Não-Me-Toque
"Nenhum peixe que se preze gostaria de ser embrulhado num de nossos jornais".
[Mark Royko]   
                                                                                                                                       
A história se torna mais volumosa quando se aproxima dos tempos recentes. Fazer jornalismo é, de certa forma, contar histórias. Mas é preciso saber filtrá-las. E esse filtro passa pela perspicácia de cada um. O dom de escolher o que vai contado. 
Há uma cidade gaúcha chamada Não-Me-Toque. Falo dela, porque alguns assuntos, quando tocados com certa falta de manejo em nossa resenha cultural, nas páginas de nossos briosos diários, parecem dizer aos seus autores que nasceram por lá. Lá por Não-Me-Toque. 
Quem não toca, toca-se. Ou seja, só tocar o mesmo disco não vale. Masturbação. É gostoso tocar as pessoas do afeto. Ou então, alguns instrumentos. Tocar a tela com o pincel. Saber manejar um teclado – de computador ou de piano. Roçar os dedos sobre ébano e marfim. Manejar para melodia. Manejar como uma música que vem do pensamento quase sem passar por ele.  Ou aquelas palavras que se vão arrumando à revelia de quem as digita.

Uma canção (de Etelvino Abreu), indagava de cara, desafiadoramente, no início da década de 90: “Cê toca o quê?” Acho que quem vive de escrever - seja jornalista, historiador, letrista, redator publicitário, tradutor, estudante, roteirista, anotador de atas, ghost-writer, professor, palavra-cruzadista profissional, missivista, eterno doutorando, pintor de paredes ou crítico literário - deve se perguntar, ao menos duas horas a cada segundo: será que meu assunto me diz que é de Não-Me-Toque? Se disser, melhor deixar quieto. Deixar o assunto voltar pros pampas sozinho até segundo flerte. E, na seqüência, partir para outras praias. Outros sertões. Quem sabe, para o Paraguai. Flanar por aí, sem muita pretensão. Ao menos até o dia em que você perceba, de volta à prosa, que já mora no assunto, na filosofia. Será que a isso se chama critério? 

Esse parece ser o caso de Dalwton Moura, que escreve regularmente para o Caderno 3, do Diário do Nordeste. O cara tem bom faro para assuntos. Quer dizer, Dalwton é daqueles que parecem desconfiar que só triscar no assunto não vale. É necessário descobri-lo; se apossar dele, no bom sentido.
Triscar é o caminho mais fácil, verdade. Mas a satisfação tirada, como o arroubo do ato, é perfeitamente vicária. E cedo se percebe que viver só disso não é lá muito saudável. Assim também, repetir, à papagaio-louro-do-bico-dourado, as pautas e resenhas das forças do Eixo Rio-São Paulo é triste sina para um jornalista. Para um comentador. E o torna mais provinciano. Confina com aquelas satisfações vicárias e emergenciais, que a maior parte de nós passa a manejar desde a tenra adolescência. E, assim, essa copiosa algaravia manchando os segundos cadernos parece não ter fim. Ela está a serviço de vender, não de fazer pensar. A serviço da gelatina, não do tutano. A serviço de fazer resenhas como se faz lasanhas pré-cozidas no microondasO cosmopolitismo só é real quando também engancha na circunstância local.  

Em geral, tenho sido muito ranzinza com quem escreve em jornal aqui pelo Afetivagem, mas devo reconhecer os méritos a quem os tem. E, assim, dizer que leio com prazer a coluna do Jocélio Leal n'O Povo, por exemplo. Ou volta meia, me divirto com a crônica do Airton Monte. Que sinto falta dos textos do Lira Neto e da Ethel de Paula, cujos compromissos profissionais levaram-nos para outras páginas, menos diárias. Que entre a turma mais nova, temos boas promessas em ambos os jornais (Amanda Queirós, Júlia Lopes...). Era já para eu ter feito essas e outras ressalvas, numa esfera em que seguimos particularmente carentes de pautas que contam, pedras que rolam, bichos que falam. Gente que segue atrás do que se encontra longe de estar na vitrine

Quer dizer, falar de profissionais que não se deixam levar pela limitadora régua riscada nas redações dos jornais ao sul de Minas, ao norte do Paraná. Ou então, dos assuntos de momento: eleições, instalações multimídia, campeonatos, lançamentos, escândalos políticos, efemérides, carestia, assassinatos em favelas, mostras de cinema, novos impostos. Gente que se pauta por autonomia de pensamento ao transcender esses assuntos. E, mais, sem aquele travo amargo, repleto de queixumes dilacerados, de certos subliteratos que devem ser fãs mesmo é de si próprios. E tome norma e nenhum senso de humor.  Os editoriais tanto de O Povo quanto do Diário são, aliás, de um pobreza de mavé-de-si. Há muito que passam completamente batidos. Ninguém os lê. Eu certamente não. E perceber que o Vida & Arte, que já foi um dos melhores cadernos de variedades do país, anda mal das pernas faz pelo menos um lustro não é tarefa para nenhum Mandrake ou detector de verdades. 

Sem embargo, surge como estimulante alguma voz menos tutelada pelos estigmas da vez. O mapeamento musical que um Dalwton Moura empreende é um exemplo disso. Dessa recusa à preguiça. E entre outras, no caso dele, pela lembrança de nomes tais como Petrúcio Maia, Brandão, Etelvino Abreu e Tazo Costa. Ou seja, de um de nossos maiores compositores, mas que anda um tanto à sombra; do pouco conhecido letrista do Pessoal do Ceará; do talentosíssimo e irrequieto vocalista e compositor, que morreu jovem e nunca chegou a gravar; e do menino prodígio da Cidade 2000, cuja carreira terminou antes de alçar vôo.  Nomes que se encontram muito distantes de vir em releases de lançamentos. E, no entanto, pedem conversa. E tiveram a sorte, os quatro, de haver sido memorados pela criteriosa atenção de um jornalista que tem a intuição histórica da área que aborda. A eleição de prioridades é um dado elementar quando se pensa em jornalismo. Naturalmente, há pautas marcadas, inescapáveis, que se tem de fazer por dever de ofício e sede de sangue dos leitores. Ossos do ofício. Mas há também uma imensa liberdade de escolha só muito parcialmente aproveitada.  

Bem, tudo devidamente filigranado, na edição de hoje, Moura nos surge com mais bons panos para as mangas: matéria e entrevista com Tiago Araripe, compositor vinculado, no início dos 90, à galera da Lira Paulistana. Araripe, que é do Crato, teve seu vinil de 26 anos atrás, Cabelos de Sansão, recentemente passado para CD. Pautas assim dão conta de uma sede muito mais saudável que a média. E da necessidade de tocar nos assuntos antes que eles se mandem para Não-Me-Toque.

6 comentários:

  1. Ruy, meu caro Ruy.

    Sempre passo por aqui.
    Seus comentários sobre o jornalismo cultural que se pratica nesta taba de Iracema são agudos e pertinentes.

    Gostaria muito de saber sua opinião sobre um texto, publicado esta semana em um diário local, que a propósito de descrever o amanhecer em uma rave inicia assim:

    "Como crianças a alimentar as lombrigas, vários jovens amanhecem de pirulito na boca, numa noite que não se encerra com os primeiros rabiscos do sol."

    Deus do céu. Tem um poeta novo na praça. Daqui a pouco ele estará lançando livro no Ideal Clube, imagino. Aquele "como crianças a alimentar as lombrigas", convenhamos, nem a Ana Mary Cavalcante ousaria.

    Digam pro rapaz, escrevinhador da pérola, que ele merece constar na antologia dos lides mais belos da história do jornalismo mundial.

    Que Gay Talese que nada. Tom Wolf uma chulipa. Te cuida Truman Capote. Novo Jornalismo é isso aí.

    Abraços parangabenses.

    Setembrino de Carvalho.

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  2. de fato, meu caro setembra, a metáfora do rapaz é ousada. de denúncia social, percebe. quase tão amarga quanto óleo de rícino.

    abraços massapeenses,

    ruy

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  3. Ruy,

    Tenho aprendido muito por aqui. Nunca quis invadir os comentários, mas tem ficado cada vez mais difícil não dizer alguma coisa. Leio seu blog há um bom tempo e só tenho a agradecer pelo conhecimento tão bem exposto e pelas poesias que ficariam distantes de mim, se não fosse o Afetivagem.
    Obrigada pelo post, vou seguir as dicas dos links. E desculpe qualquer intromissão, eu não resisti.
    Da sua mais jovem leitora(será?),

    Anna

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  4. olá, anna,

    grato pelas palavras. muito gentil de sua parte. escreva quando quiser. acho um estímulo fantástico saber q. tenho uma leitora tão jovem. e que há essa possibilidade de conversarmos.

    meu abraço,

    ruy

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  5. É bom demais quando existe interação! A blogosfera cumpre o seu papel.

    Beijos.

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