sábado, 13 de dezembro de 2008

Flavas flores pendendo de um vaso da memória


[s/i/c]



O BELO PÁSSARO DECIFRANDO O DESCONHECIDO DURANTE O PERCURSO DOS AMANTES



Tenho estas fotos à mão. Tenho estas fotos bem à mão.

Numa delas tem um vaso improvisado de uma panela velha, suspensa num beiral de telhado. Do vaso pendem flores amarelas. Em outra, é só telhado. Os arcos das telhas encaixando pequenas sombras no cromo. Como se pode prender a luz num cartão. A exata luz. Na terceira reponta a proa semi-destruída de um lagosteiro contraposta à duna e a um céu de azulejada manhã -- abaixo à direita, faixa mais escura na areia, atestando a varredura da última maré. Na quarta só tábuas da lateral de uma pequena canoa repintada de verde, vermelho e um azul lavado por cima. Três frisos. Sendo que, no do meio, gravado em baixo relevo, um nome: Saturna. E na quinta, uma mulher jovem no copiar de uma pousada, lendo um paperback de Flannery O’Brien.

Tomo mais um gole de vinho. Um carro da polícia passa com alvoroço. Algo raro em Sabiaguaba.

O farol piscava sobre o serrote diligentemente. Deslizei a mão por baixo da saia, e acariciei seu sexo úmido. Muito leve. Muito lento. E ela comprimindo os olhos, e quase expelindo da boca um dropes de hortelã imaginário. Desenho dos lábios dela. Moldura do que sentia. Contorções e espasmos. E, enfim, bem supremo. Estávamos juntos. A isto se chama amor, presumo. O intercurso. É algo molhado. Um ato. Aquático. Como derramar leite de coco num confeito seco.

Estávamos deitados no convés do barco lagosteiro semi-destruído, com estrelas em riba, rumor de mar, e respirações curtas por todos os lados. Uma aleatoriedade. E consternação era longe da gente. A noite em Jericoacoara pescando quartos-minguantes para melhor nos envolver em mistério e búzios:

Diga algo. Me abrace”, ela disse. Muito sussurrado, muito suplicante. Uma beata. E seu delicado corpo de dezenove estios vibrava inteiro sob o meu.

Se na tarde ela lia Flannery O’Brien deitada na rede de tucum, que importava agora. Agora, estávamos para sempre longe das palavras, perto do decoro. Encerrados no pequeno jardim de um não mais esquecer.

Tomo outro gole de vinho.

Uma conhecida minha, bibliotecária da universidade, puxando água do cacimbão da pousada, a cumprimentou, uma tanto como se ela fosse minha mulher. O que ela era. Sim, felicidade e amor me acompanhavam.

Hoje. Bem, hoje não é mais minha mão que releva umidades sob o algodão daquela saia cinza. A praia não é a mesma, desmancharam o lagosteiro, desmontaram cada um daqueles segundos com a precisão de um ourives. Quietude. Calmaria da noite janeira. Brisa alguma. E vinho chileno ao redor. Desolamentos. Prateleiras de livros. Palavras. A civilização. Flannery O’Brien. Esterilidade. Um pouco de excesso de álcool e desalinho, de vez em quando.

Mas, então eu sentia cada centímetro do corpo dela sob. Seu quadril feito de elásticos. Seu fôlego, a falta dele. E o o beijo era lento, dissolvendo. O beijo dela dissolvendo, dissolvia. Tensão, tensão que ia embora. Forma de ria, revelação, e pequenos truques de nunca mais sempre. Gingas. Forma de camboa, de espumas encardidas, de águas-vivas, rebentação. Quadril feito de elásticos. Cheiro de salsugem e piche. Caravelas. Cairzinho de gota d’água num manguezal sem fim. Tão firmes no presente. Sem sonhar com a vida futura que, bem sabíamos, não seria a nossa. Porque tudo era tão perfeito, amor. E ainda assim os homens escolheram diferente.

A garrafa do Santa Helena está vazia. Madrugada alta.

Sou insistente. Quase perverso. Até não mais poder. Tudo de uma só vez novamente ao mesmo tempo um. Sim, felicidade e amor me acompanhavam.

Reponho as fotos na caixa metálica, de chá. Longe dos círculos de suor da garrafa sobre o tampo do birô. E os pássaros de Miró esvoaçam sobre aquela noite e aquelas frases entrecortadas na Jericoacoara de quatro anos atrás, agora.


[1995]

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