quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

E se não for mais ou menos isso, é quase


[s/i/c]

Breve Tratado de Ficção Pós-Moderna em Três Tempos de Futebol


1.

Em geral, o ponto na ficção pós-moderna é que quando o autor deixa de construir personagens densos, factíveis, complexos, não maniqueístas, profundamente humanos – agindo por contradições e dúvidas – o que nos resta é um único personagem: o próprio autor. Ora, ainda por cima, esse autor é daquele tipo que a todo instante adverte o leitor para o fato de que o que ele está lendo é mero faz-de-conta. O problema é que na maioria dos casos o autor, em si, não é uma personagem nada cativante. Eis porque uma vasta porção dos romances experimentais ditos pós-modernos são avassaladoramente chatos de ler. Eles sequer são capazes de fabular um mundo passível de ser acreditado. Sua ocupação é a de "aprofundar" no leitor o seu senso de alienação no mundo e de falta de possibilidades de acesso a esse mesmo mundo. Tente dizer para uma criança que o Gigante do pé de feijão na verdade não era tão grande ou ameaçador. Ou que o próprio pé de feijão é uma “metáfora”, para ver o que acontece. Ler ficção pressupõe uma disponibilidade de criança (embora não pueril) para se crer no que está sendo dito. É essa disponibilidade que tem sido massacrada por escritores que, ao mesmo tempo, são professores de redação criativa em pós-graduações insípidas.

2.

É um tanto o que o crítico James Wood diz quando comenta a relação entre classe e personagem: “Coleridge dizia que os personagens de Shakespeare eram uma 'classe individualizada'”; e ao prosseguir comentando a obra de certa escritora inglesa pós-moderna: “os personagens de [Margaret] Dabble são 'classe classificada'". Quer dizer meras caricaturas, clichês faltos de qualquer humanidade mais funda. Facilmente reduzíveis a simplórios adjetivos. Ora, convenhamos, há uma história cheia de dramas e peripécias por traz de cada ser humano, por mais que ele se esconda numa multidão. Ou se isole na caverna do próprio quarto. Além disso, nenhum ser humano é tão pequeno que possa ser reduzido a adjetivos. A não ser, talvez, os que escrevem sobre outros seres humanos como se fossem meras caricaturas sociais. Nestes casos, por uma divisável dialética, o caricaturado é o próprio autor. O argumento é bom.

3.

É mais ou menos óbvio que desde o nascedouro do romance moderno, seus autores, em maior ou menor grau, com mais sutileza ou mais descaramento, introduzem dispositivos na narração que chamam a atenção do leitor para o que há (também) de faz-de-conta no que ele está lendo. No próprio livro que inaugura o gênero, Cervantes faz questão de indicar como um leitor excessivamente crédulo de velhas gestas de cavalaria acaba dando com os burros n'água. Mas, ainda assim, com que dimensão humana ele realiza esta tarefa. E que grande personagem/leitor ele nos cria. Tão complexo e belo, que está vivo até hoje. Outros tomam a tarefa para si de modo um pouco mais abertamente cômico, como em Sterne, o modelo de Machado de Assis. Porém mesmo o que faz lembrar o leitor do faz-de- conta em autores dessa grandeza, não retira a fé que temos em seus personagens, pela pura complexidade dos mesmos. Eles são grandes. Não meras ilustrações de pontos de vista ideológicos, caricaturas de classe ou teses de Blanchot ou Barthes.

E se não for mais ou menos isso, é quase.




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