terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Por um poema onde há versos


John Brett, 1871

O funcionário


O tempo não diz tudo.

A História Universal

é apenas um inventário precário,

organizado por um funcionário público.

Pomos nele nossas esperanças,

mas o tempo diz quase nada.

Numa tarde fria de setembro,

sentei para trabalhar e não trabalhei,

mas disso não saberão as gerações futuras.

O tempo precisa de secretários.



Odorico Leal


Nota - com a postagem deste poema, entende-se lembrar de todos os poetas sem-livro, mas que crêem no verso. Em uma poesia feita com versos. Aqueles para quem o verso, como medida, constitui um valor tão precioso que a publicação nos moldes convencionais - com todo seu rito politiqueiro a reboque - estilhaçaria a própria graça da coisa. A vasta maioria dos poetas que publicam pretendem soar obscuros ou herméticos... e acabam não soando (de todo). É impossível ler determinados poemas sem sair deles com aquela sensação de que conseguem ser mais dadaístas que dadá. De que se está mais surdo. De que se ficou mais mudo. Ou cego. E, aqui, o problema é que dadá já vai fazer um século dentro em pouco. Mallarmé já morreu faz muito. Mas o verso, por incrível que pareça, continua vivo da silva. Embora isso não seja do agrado de muitos poetas que não o manejam com razoável perícia. O seja, não juntam o bolso às calças. A forma ao assunto. O eixo às latitudes. E parece razoável que até para se cultivar o hermético, o obscuro, o que tende à parataxe ou sínquise é preciso possuir todos esses valores (hermetismo, obscuridade, serialidade e inconclusão) desde dentro. Mais ou menos como um escritor feito Age de Carvalho o faz. E, no entanto, ouve-se rumor de vozes se atritando por trás da escritura de Carvalho. Recentemente, num artigo [para o JB] de interessante teor, Felipe Fortuna, versou sobre a tal "crise do verso". Em resumo, Fortuna diz algo simples e preciso: a "crise do verso" só existe para quem nunca, de fato, o escreveu. O verso está aí, mais vivo e janota que nunca. Quem não sabe lançar mão dele, briga com ele. Passa longe de ser o caso do poema acima. Poucos poetas que publicam hoje, aqui pelo Brasil, conseguem construir um verso como "sentei para trabalhar e não trabalhei". E, no entanto, é tão simples. [Não está, por exemplo subdividido em gratuidade, tipo: “sentei/ para trabalhar e/ não trabalhei”, que é mais ou menos como um suposto vanguardista brasileiro o fracionaria hoje]. E, logo, passa tão ao largo de qualquer crise de verso. Ou “versitite”. Indago: que mérito há em se fracionar o verso ou em variar a sintaxe quando essas piruetas redundam apenas em cosmeticidade ordinária, em grotescas cambalhotas que se dá para serem sancionadas pelos amigos que lhe enviam livros a serem resenhados? Alguns desses livros saudados com efusão, como os de certo poeta argentino passado pelo Brasil, mal contêm entre capa e contracapa um português legível. Onde há mérito nisso tudo? Aqui, não se quer negar certa vontade de acerto ou empenho por parte de alguns autores. Mas lamentar ao modo Saul Bellow que "A great deal of intelligence can be invested in ignorance when the need for illusion is deep" ["Uma boa porção de inteligência pode ser investida em ignorância quando a necessidade de ilusão é profunda"]. O momento de poesia no Brasil ressuma fisiologismos e parnaso: escrever poemas não com a sinceridade de quem descasca vagens para poder se alimentar; mas compor artefatos ou móbiles bonitinhos, penduricalhos datados para servirem de adorno em apartamentos pós-modernos ou serem sancionados pelos prefaciadores de teus prefácios e os prefácios que antepuseste nos livros dos amigos. Amigos do alheio. Não da poesia. Do contrário, poemas como este dialogam com uma tradição. Com Cesário Verde, por exemplo. Porque há Cesário Verde neste poema. Nada contra quem acha graça em Bill Viola ou mesmo Cage. Mas não parece ser uma contrafação beber em Viola ou Glass sem saber de Verde? Coisas assim, passam o recibo do cosmopolitismo tacanho, profusamente multiplicado pela net. Mas o tempo precisa de secretários, como diz em ironia o último verso. Hoje em dia, já me dá certo alívio ler um poema que conclui. Que termina num prosaico ponto final. Porque quase todos os poemas terminam se pretendendo obra-aberta, ou “despoesia” ou “dobra” ou “vinca” ou “dilatoriedade” ou “ponto furo”. O que diabo mesmo vem a ser tudo isso? O que vem a ser abandonar uma tradição para construir "uma grande linha tensa contemporânea"? Aviso logo que não gosto de linhas tensas por perto. Parece um troço meio fálico, não? Ora, por um dialética simples, a força de pretensão nesses poemas de pulverização ou "atomização do verso" – ou na presumível explicação deles – é muito maior do que a força da linguagem em si. Eis porque soam não só pretensiosos ou pueris, mas mais fechados do que as portas do inferno – que, como sabemos, desde sempre anda abarrotado de boas intenções e presumíveis artefatos de delicada vanguarda.



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