[s/i/c]
Sobre o Conceito de Identidade
Hoje em dia, vá a um centro de humanidades – tanto faz o departamento: sociologia, educação, comunicação social, letras e até mesmo filosofia ou história – e tudo são identidades. O conceito de identidade virou uma espécie de panacéia. Desaferrolha os fenômenos mais encofrados, explica os mistérios menos manifestos. E – o que de pior – cria situações sociais que nunca existiram e, nesse movimento, a correspondente conduta ética específica e acertada para se postar diante delas. É fato também que o impacto real que tudo isso tem sobre o mundo é tão violento quanto o triscar de uma pena de sibite sobre uma coluna de concreto sem capitéis gregos.
Que tal uma pequena revisão? O conceito de identidade foi tomado das ciências naturais. O problema começa aqui, pois como sabemos: nem tudo que funciona na física e nas matemáticas pode ser transposto para a ética com razoável grau de bom-senso. E esta lição já está disposta (e muito bem disposta) em Vico.
Mas vamos ficar na aritmética, por ora. Dizer que 1=1, é uma das primeiras noções que se aprende na escola. A noção de identidade. Ainda que, para o resto da vida, alguns alunos – entre os menos brilhantes ou esforçados – não se dêem conta jamais de que isso é uma abstração. Ou das implicações dessa abstração. Ou seja, que a matemática pura não existe no mundo real. Esses alunos menos aplicados, em geral, são os que estão votados à política ou a ganhar muito dinheiro. Ou mesmo à chefia de departamento nas universidades. E guardam sérias chances de serem eméritos publicitários, marqueteiros, gestores de igrejas neo-pentecostais ou redatores de livros de auto-ajuda.
Em matemática, 1=1. Correto? Sim. Mas se isso, por ilustração, refere ao reino animal concreto, não podemos dizer – a não ser em condições especiais, abstratas – que um cavalo é igual a um protozoário. Ou que um lêmure é igual a um ornitorrinco. Ou mesmo que um ornitorrinco cinza e saudável é igual a um ornitorrinco albino que nasceu com o bico um pouco deslocado para o lado direito. Embora, no plano da abstração matemática, cada um deles – o protozoário, o cavalo, o lêmure, o ornitorrinco e o ornitorrinco albino com o bico levemente deslocado para a direita – constitua uma unidade. E, portanto, pode ser identificado a partir deste conceito abstrato: 1=1.
Ora, o estado laico moderno cedo percebeu que um das melhores fontes de controle sobre seus súditos era “identificá-los”. Ou seja, torná-los iguais entre si. Pensá-los em termos de unidades genéricas. Isso facilitaria tremendamente a vigilância que se exerce sobre eles. Inclusive na hora que mais interessa ao estado: pagamento de tributos. Daí que o documento-chave que portamos, a carteira de identidade, anda sempre de par com o segundo documento mais chave que portamos: o CPF. Basicamente são esses dois documentos que atestam que você, à luz do estado, é igual àquele seu vizinho metrossexual ou àquela sua vizinha que olha para você como para um leproso, a cada vez que o flagra acendendo um cigarrinho no jardim do condomínio. Bem entendido, vocês três são um tanto diferentes, embora possuam algo em comum: RG e CPF.
No entanto, cada um de nós: o metrossexual, a anti-tabagista, você e eu somos perfeitamente cônscios de que não somos nada iguais. Ou seja, que em determinado plano, o da vida concreta, há só e só uma identidade possível: você é igual a você; o metrossexual é igual ao metrossexual e a antitabagista é igual à ela mesma. O resto são semelhanças, analogias, abstrações. Ou a tal necessidade de controle do estado.
Então, há de se convir: dizer que um sujeito registrado em carteira de identidade como Josias Sepúlveda Gatamanso da Silva é igual a Josias Sepúlveda Gatamanso da Silva é apenas uma tautologia. Logo, o conceito de identidade é tautológico. E, a rigor, seria impossível falar de identidades nacionais, políticas, feministas, pós-coloniais, clubísticas, sexuais, gays, étnicas, ambientalistas, esotéricas, junkies, etc. Embora esteja muito em voga falar dessas identidades. E até de umas tais “próteses identitárias”. Espécies de máscaras assumidas como forma de defesa e ataque estratégico por parte de minorias "estigmatizadas".
Pode-se contrargumentar: "identidade, aqui, ô ilustre, é tomada metaforicamente", diriam seus defensores da hora. Porém eles esquecem que as metáforas não são ilhas no oceano não pacífico da linguagem, de um idioma. Elas radicam em algo. E, logo, o conceito de identidade, justo um dos cavalos-de-batalha das teorias pós-modernas, tem fundas raízes numa apara epistemológica que o pós-estruturalismo tanto se esforça por conjurar: o positivismo.
Muito mais do que a deliberada vontade de pertencer a um grupo – nem sempre satisfeita – o que existe, antes de se falar em identidade, é um certo passado comum de experiências, que aproxima esse grupo, não por identificação – o que recairia na tautologia – mas por empatias, experiências comuns, afinidades de matizes diversos e também – isto é importante – conflitos de ressonâncias as mais distintas e imprevisíveis (quem poderia, por exemplo, prever o ataque de 11 de setembro de 2001?). Por semelhanças. Ora, semelhanças nunca são identidades.
O problema é que se deixou de sondar as radicações históricas dessas empatias, dessas semelhanças, desses conflitos. Afinal, a origem das coisas não interessa mais, desde que a própria história é, hoje, entrevista como uma espécie de ficção roteirizada. O presente é que determina o passado, e não o contrário, como querem algumas teorias. Os escritores do presente é que “influenciam” os do passado, segundo reza o catecismo de certos críticos. Original e tradução são indiferentes quanto à anterioridade, relevância, autoridade, temporalidade, espacialidade.
Mas o mundo não deixou de girar. Ou trocou o eixo de seu giro e agora segue para direção contrária. Então, quem sabe, num tempo mais justo, onde todos vivam em casas espaciais e usem carros com jatos propulsores, como nos Jetsons, todo esse pesadelo do discurso identitário seja lembrado apenas como um palpite infeliz. Um palpite, de resto, bem menos luminoso que o samba de Noel Rosa, que diz:
Fazer poema lá na Vila é um brinquedo
Ao som do samba dança até o arvoredo
Eu já chamei você pra ver
Você não viu porque não quis
Quem é você que não sabe o que diz?
O que Noel Rosa diz aqui, senão que há uma diferença entre os que fazem poema lá em Vila Isabel, com a facilidade e naturalidade de quem brinca, e os demais? Embora, claro isso não possa ser rotulado de “identidade”. Ele aponta, mais propriamente, para certo caráter coletivo forjado por anos de contigüidade, de criação de formas comuns de expressões baseadas em experiências que se perdem nos desvãos do tempo. Em trocas culturais. Em mesclas étnicas e de classes sociais, etc. Mas, a lição vai mais adiante, pois, longe de estigmatizar aquele que não é da Vila, existe até a gentileza de um convite para tomar parte no brinquedo: “Eu já chamei você pra ver/ você não viu porque não quis” […], etc.
Não fomos, não somos, nunca seremos idênticos. Somos únicos. A rigor, assumindo o solipsismo no grau último: impossível identificar-se, a não ser consigo mesmo. Identidade é tautologia. É por isso que se tem a impressão: ler a história dos filhos de Isaac, no Gênesis, ou o Esaú e Jacó de Machado de Assis, nos ensina mais sobre estar neste mundo do que todo esse magma de teorias da identidade. Não se pode ir à esquina comprar uma caixa de fósforos munido de um conceito assim.
Hoje em dia, vá a um centro de humanidades – tanto faz o departamento: sociologia, educação, comunicação social, letras e até mesmo filosofia ou história – e tudo são identidades. O conceito de identidade virou uma espécie de panacéia. Desaferrolha os fenômenos mais encofrados, explica os mistérios menos manifestos. E – o que de pior – cria situações sociais que nunca existiram e, nesse movimento, a correspondente conduta ética específica e acertada para se postar diante delas. É fato também que o impacto real que tudo isso tem sobre o mundo é tão violento quanto o triscar de uma pena de sibite sobre uma coluna de concreto sem capitéis gregos.
Que tal uma pequena revisão? O conceito de identidade foi tomado das ciências naturais. O problema começa aqui, pois como sabemos: nem tudo que funciona na física e nas matemáticas pode ser transposto para a ética com razoável grau de bom-senso. E esta lição já está disposta (e muito bem disposta) em Vico.
Mas vamos ficar na aritmética, por ora. Dizer que 1=1, é uma das primeiras noções que se aprende na escola. A noção de identidade. Ainda que, para o resto da vida, alguns alunos – entre os menos brilhantes ou esforçados – não se dêem conta jamais de que isso é uma abstração. Ou das implicações dessa abstração. Ou seja, que a matemática pura não existe no mundo real. Esses alunos menos aplicados, em geral, são os que estão votados à política ou a ganhar muito dinheiro. Ou mesmo à chefia de departamento nas universidades. E guardam sérias chances de serem eméritos publicitários, marqueteiros, gestores de igrejas neo-pentecostais ou redatores de livros de auto-ajuda.
Em matemática, 1=1. Correto? Sim. Mas se isso, por ilustração, refere ao reino animal concreto, não podemos dizer – a não ser em condições especiais, abstratas – que um cavalo é igual a um protozoário. Ou que um lêmure é igual a um ornitorrinco. Ou mesmo que um ornitorrinco cinza e saudável é igual a um ornitorrinco albino que nasceu com o bico um pouco deslocado para o lado direito. Embora, no plano da abstração matemática, cada um deles – o protozoário, o cavalo, o lêmure, o ornitorrinco e o ornitorrinco albino com o bico levemente deslocado para a direita – constitua uma unidade. E, portanto, pode ser identificado a partir deste conceito abstrato: 1=1.
Ora, o estado laico moderno cedo percebeu que um das melhores fontes de controle sobre seus súditos era “identificá-los”. Ou seja, torná-los iguais entre si. Pensá-los em termos de unidades genéricas. Isso facilitaria tremendamente a vigilância que se exerce sobre eles. Inclusive na hora que mais interessa ao estado: pagamento de tributos. Daí que o documento-chave que portamos, a carteira de identidade, anda sempre de par com o segundo documento mais chave que portamos: o CPF. Basicamente são esses dois documentos que atestam que você, à luz do estado, é igual àquele seu vizinho metrossexual ou àquela sua vizinha que olha para você como para um leproso, a cada vez que o flagra acendendo um cigarrinho no jardim do condomínio. Bem entendido, vocês três são um tanto diferentes, embora possuam algo em comum: RG e CPF.
No entanto, cada um de nós: o metrossexual, a anti-tabagista, você e eu somos perfeitamente cônscios de que não somos nada iguais. Ou seja, que em determinado plano, o da vida concreta, há só e só uma identidade possível: você é igual a você; o metrossexual é igual ao metrossexual e a antitabagista é igual à ela mesma. O resto são semelhanças, analogias, abstrações. Ou a tal necessidade de controle do estado.
Então, há de se convir: dizer que um sujeito registrado em carteira de identidade como Josias Sepúlveda Gatamanso da Silva é igual a Josias Sepúlveda Gatamanso da Silva é apenas uma tautologia. Logo, o conceito de identidade é tautológico. E, a rigor, seria impossível falar de identidades nacionais, políticas, feministas, pós-coloniais, clubísticas, sexuais, gays, étnicas, ambientalistas, esotéricas, junkies, etc. Embora esteja muito em voga falar dessas identidades. E até de umas tais “próteses identitárias”. Espécies de máscaras assumidas como forma de defesa e ataque estratégico por parte de minorias "estigmatizadas".
Pode-se contrargumentar: "identidade, aqui, ô ilustre, é tomada metaforicamente", diriam seus defensores da hora. Porém eles esquecem que as metáforas não são ilhas no oceano não pacífico da linguagem, de um idioma. Elas radicam em algo. E, logo, o conceito de identidade, justo um dos cavalos-de-batalha das teorias pós-modernas, tem fundas raízes numa apara epistemológica que o pós-estruturalismo tanto se esforça por conjurar: o positivismo.
Muito mais do que a deliberada vontade de pertencer a um grupo – nem sempre satisfeita – o que existe, antes de se falar em identidade, é um certo passado comum de experiências, que aproxima esse grupo, não por identificação – o que recairia na tautologia – mas por empatias, experiências comuns, afinidades de matizes diversos e também – isto é importante – conflitos de ressonâncias as mais distintas e imprevisíveis (quem poderia, por exemplo, prever o ataque de 11 de setembro de 2001?). Por semelhanças. Ora, semelhanças nunca são identidades.
O problema é que se deixou de sondar as radicações históricas dessas empatias, dessas semelhanças, desses conflitos. Afinal, a origem das coisas não interessa mais, desde que a própria história é, hoje, entrevista como uma espécie de ficção roteirizada. O presente é que determina o passado, e não o contrário, como querem algumas teorias. Os escritores do presente é que “influenciam” os do passado, segundo reza o catecismo de certos críticos. Original e tradução são indiferentes quanto à anterioridade, relevância, autoridade, temporalidade, espacialidade.
Mas o mundo não deixou de girar. Ou trocou o eixo de seu giro e agora segue para direção contrária. Então, quem sabe, num tempo mais justo, onde todos vivam em casas espaciais e usem carros com jatos propulsores, como nos Jetsons, todo esse pesadelo do discurso identitário seja lembrado apenas como um palpite infeliz. Um palpite, de resto, bem menos luminoso que o samba de Noel Rosa, que diz:
Fazer poema lá na Vila é um brinquedo
Ao som do samba dança até o arvoredo
Eu já chamei você pra ver
Você não viu porque não quis
Quem é você que não sabe o que diz?
O que Noel Rosa diz aqui, senão que há uma diferença entre os que fazem poema lá em Vila Isabel, com a facilidade e naturalidade de quem brinca, e os demais? Embora, claro isso não possa ser rotulado de “identidade”. Ele aponta, mais propriamente, para certo caráter coletivo forjado por anos de contigüidade, de criação de formas comuns de expressões baseadas em experiências que se perdem nos desvãos do tempo. Em trocas culturais. Em mesclas étnicas e de classes sociais, etc. Mas, a lição vai mais adiante, pois, longe de estigmatizar aquele que não é da Vila, existe até a gentileza de um convite para tomar parte no brinquedo: “Eu já chamei você pra ver/ você não viu porque não quis” […], etc.
Não fomos, não somos, nunca seremos idênticos. Somos únicos. A rigor, assumindo o solipsismo no grau último: impossível identificar-se, a não ser consigo mesmo. Identidade é tautologia. É por isso que se tem a impressão: ler a história dos filhos de Isaac, no Gênesis, ou o Esaú e Jacó de Machado de Assis, nos ensina mais sobre estar neste mundo do que todo esse magma de teorias da identidade. Não se pode ir à esquina comprar uma caixa de fósforos munido de um conceito assim.
P.S. --- Por fim, para estilhaçar de vez essa panacéia da identidade, bastaria pensar nos termos de certo pensador grego anterior a Sócrates. O que ele nos dizia mesmo? Acho que nos falava de se banhar mais de uma vez em um rio... Era um negócio vago assim. Mas até que fazia sentido.
Ruy,
ResponderExcluirMeu blog perdeu função Você diz tudo o que eu queria dizer, mas dito de modo muito mais exato. Assim vou começar a simplesmente repostar seus posts por lá, hehe.
Abraço,
Olá, líder celta das highlands,
ResponderExcluirhá muita coisa no 'dessincronizado' q. eu gostaria de haver escrito. é por isso q., como dizia oppen, "somos numerosos". aliás, sendo "ligeiramente pedante" (como me define o velho aldir [rsss]) oppen argumenta mto. bem sobre isto em um poema longo chamado 'of being numerous' ['de sermos numerosos'].
privilégio, como de uso, contar com sua leitura.
abs.
Brilhante como sempre Grande Ruy Vasconcelos. Dispensável o (res) sentimento acerca daquilo que desejou por um tempo ou num momento da vida o escriba.
ResponderExcluirSó a título de curiosidade: como é mesmo que a crença no princípio da identidade de Aristoteles onde A = A ( 1=1) faz com que o crente nessa abstração se torne um "ganhador de dinheiro " e não o contrário?
Quem sabe talvez, pouco talvez, a resposta esteja no terço excluído ?
um grande e saudoso abraço do seu amigo bissexto,
Fernando
Augusto Fernando,
ResponderExcluirsou e sempre serei eternamente grato a certo amigo que me estendeu a mão num momento de urgência. Abrindo oportunidades, possibilidades. Um ofício.
de resto, porque há diferenças, também há publicitários e publicitários. assim como há letristas e há fausto nilo. ou há trumpetistas e há chet baker. como v. bem sabe.
saudades daqueles ilimitados tempos da criação!
forte abraço,
Ruy