domingo, 28 de dezembro de 2008

Herdeiros da razão, da ciência do rap e do Programa do Faustão


Paul Graham, Retrato da Televisão, 1991



De uma conversa sobre religião


Uma leitora de Afetivagem me propôs, por imeio, a seguinte questão:
"Ao que tudo indica, não se pode levar a sério a religião depois que a razão provou que a Terra é redonda, não é o centro do Universo e que nenhum monoteísmo detém o monopólio da verdade. Depois que a Revolução Francesa acabou com o direito divino dos soberanos e instaurou a perspectiva da liberdade, da igualdade e da fraternidade, como se pode entrever a religião como um valor para os próximos séculos?"

Minha resposta:

Hoje em dia todos os que professam, propagam ou versam sobre um valor religioso sério parecem fazê-lo iniciando seu discurso com um perorado pedido de desculpas, ou com cautela tal por não ferir suscetibilidades, que a desconfiança que nos passa: seu pai, se cristão, deve ter condenado centenas às fogueiras da Inquisição e infernizado a vida de albigenses e cripto-judeus, e passado sífilis para toda uma tribo no Peru; se judeu, deve ter matado três mil filisteus com uma queixada de jumento ou solicitado aos romanos a crucifixão de centenas de heréticos cristãos, ou os apedrejado fora dos muros da cidade, ou ainda mandado erguer um muro que confina os palestinos ao lado de lá.

E, no entanto, o quanto tudo isso - à exceção do último item - soa café pequeno diante dos crimes monstruosos praticados pelos estados modernos laicos. A diferença é que um cientista político – seja de direita, seja de esquerda – nunca começa seu discurso pedindo desculpas. Ele avança pelas fronteiras da linguagem tão absoluto e ímpar quanto os Luíses franceses palmilhavam os jardins de Versalhes, com suas fontes e faisões. La Raison? C'est Moi. Ele é o herdeiro do grande Iluminismo. Da ciência; da razão; da bomba; dos campos de extermínio e do rap; do consumo e do Programa do Faustão.

Perguntar se a religião estará em falta nos próximos séculos já é, em si, um sintoma da escassez dela no presente. A religião era antigamente chamada de “lei”. Os mandamentos eram um código moral, de conduta. A serem levados a sério. Como hoje pretendemos levar a sério não fumar dentro do avião ou não dirigir alcoolizado. É claro que esta norma ainda não está no Levítico, ou nos livros sapienciais bíblicos: “não dirigireis sob o efeito da ebriedade!”. Ou quem sabe: “se mais de um cântaro pequeno de vinho tomardes, não tomeis por igual as rédeas de vossas carroças". Ou ainda: "Lembra-te de teu próximo nas longas horas em que a cabine seguir pressurizada, pois estarás mais próximo do Reino dos Céus".

Mas, voltando à pergunta, a primeira coisa a se questionar nela é seu centro tonal: que religião, em termos concretos? Se for a judaico-cristã, sem dúvida. Mas esta já vem murchando há cinco séculos. Tanto que, ao que tudo indica, a pergunta refere-se a ela sem nomeá-la. Se for a islâmica, do contrário: pode ser que o final mesmo deste século se depare com um antigo sonho muçulmano: unificar a Europa sob Alá. Como, de resto, já há povos não árabes – iranianos, paquistaneses, hindus, malaios, indonésios, turcos, albaneses, africanos de diversas etnias sub-saarianas, entre outros – que têm como sagrados os livros árabes e seus sítios de peregrinação: Meca, Medina e Jerusalém. Ou seja, pelo andar do Volkswagen, não é de espantar se daqui a uns cem anos catedrais góticas, como, digamos, as de Colônia ou de São Tiago de Compostela, se hajam convertido em mesquitas. E, dessa vez, sem ser pela via das armas. Nunca foi tão fácil propagar-se. Os povos islâmicos, afinal, têm um valor. Crêem nele. Coisa que os judeus e principalmente os cristãos perderam ou se confundiram a respeito, não é de hoje.


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