John Singer Sargent, The Derelict, c. 1876
um conto
Ensaio Sobre as Águas
Quem os levou foi Leandro. Como piloto da canoa, o filho de Ivan, revelou-se afoito. O inverso do pai, que as fazia; e era de medir palavras. Talvez, ademais, por certa tartamudez não infrequente entre os pescadores de Bitupitá. Mas a leviandade de Leandro andava bem à medida de seus dezessete. Tirou finas em mourões, para exibir o quanto detinha o manejo da embarcação. Porém, ao arriscar uma manobra mais ousada, abalroou a proa contra a tela de um curral. O proprietário, que se encontrava próximo, em outra canoa, bem mais robusta que a guiada por Leandro, esbravejou feio. Mas logo a contrariedade dissipou-se.
E, então, todos foram convocados por ele, aos gritos, largos gestos, para peixe grelhado e cerveja. Logo estavam na água, dando braçadas que suprissem os sessenta ou setenta metros entre as duas embarcações. Joel foi o primeiro a chegar. E soergueu-se sozinho. Flávia veio em seguida. Joel ajudou-a a subir. Milena e Álvaro chegaram na sequência. E, por último, pois haviam mergulhado um tanto depois de seus passageiros, Leandro e outro garoto, que lhe ajudava ao cabo, na condução do barco. Função a que eles chamam de “cabeiro”, e que envolve, entre outras fainas, a de aspergir a vela com água do mar, colhida em uma cabaça.
Todo o time de despesca do curral usava um uniforme laranja, de mangas compridas, chapéus de palha à cabeça, presos ao queixo por cordames de tucum. O proprietário, Antônio José, sentado à popa, era auditor fiscal, e revelou-se bom anfitrião. Sem chapéu, cofiava vasto bigode grisalho; e brincou mais de uma vez com a desastrada manobra de Leandro, a quem se referia como “Ivanzinho”:
–O Ivanzinho ainda não mediu os costados da barca? Se o Ivan soubesse das estrepolias desse menino… sei não…
À certa altura, Leandro sentiu os brios, amuou-se um tanto. Mas logo estavam todos comendo um serra fresquinho, recém retirado do mar e bebendo cerveja. Milena preferiu soda. Também provaram de uma zambaia, que impressionava mais pela extensão esguia do corpo, alvíssima carne, quase azulada, que pelo sabor. Em dado momento, as postas de peixe, depois de fritas, eram largadas sobre as tábuas do banco de popa. E Seu Antônio José não perdia vez:
–Podem comer sem susto. Isso aqui é mais limpo do que os pratos da Toinha!
Ele realmente tirara aquele fim de manhã para ironizar um tanto com o atabalhoado jovem timoneiro. A mãe de Leandro, Toinha, era proprietária de uma pequena barraca na praia, onde preparava algum quitute. Mas, então, ao banco de popa, havia também uma travessa com farofa. E, após fritas, quem o desejasse podia polvilhar as postas na farofa antes de degustá-las. É provável que Joel e os outros jamais houvessem provado peixe mais aprilino.
Joel restou à popa, com Flávia, em alguma conversa com Seu Antônio José. Álvaro e Milena seguiram mais à proa, retrocederam; e, por fim, acabaram de pé, equilibrando-se sobre o banco de vela, agarrando-se de um flanco e de outro, ao mastro bem fincado sobre a carlinga. Foi quando, de fato, começou a “despesca-grande” do curral – como eles chamam – após findarem meticulosa limpeza da extensa rede.
E então a rede, com sua trama de fios azuis, foi sendo alçada à canoa ao empuxo concentrado de quase todo grupo, enquanto três deles faziam lastro, escorados no flanco oposto. Seus pés coincidindo com os ressaltos no cavernamento. E o ritmo do arrasto da rede era ditado por comandos de voz, e roçavam um canto. Dezenas de peixes eram tão pequenos que coavam-se pelo náilon das malhas, e as escamas soltas na água emprestavam-lhes um efeito fosforescente à medida que a pressão sobre os outros peixes, maiores, crescia; e a rede entumescida roçava o verdume da canoa.
E logo que a rede subiu mais à tona, Joel pode divisar que ali vinha um peixe de dimensões excepcionais. Pois, então, toda a rede vibrava em espasmos de uma formidável violência. Verdadeiros trancos. Algo grande debatia-se ali pela própria vida.
Joel não estava errado. Tratava-se de um enorme cação-lixa de cerca de dois metros e um quarto. Seu Antônio José lhe dissera que, inicialmente, supusera uma aruanã.
Os pequenos peixes prateados continuavam a vazar pelas malhas. E o rastro fosforescente das escamas luzia mais intensamente sobre o verde das águas. Flávia, que estava bem à frente de Joel, este encostado ao banco de popa, escorou-se nele. E ele sentiu um vaga de calor subindo pela coluna. E fortemente excitado pelo volume das formas dela, deslizou a mão pela cintura da mulher. Por ser alvejado, de leve, nas faces, pelos cabelos dela, molhados por aquela água salífera, restos de maresia na alva pele dela, afagada por sua mão, sentiu um imediato, ardente desejo de possuí-la. Ali. Naquele instante. O short branco úmido, colado e translúcido revelando-lhe a minúscula parte de baixo do biquine, o bem torneado das pernas:
–Será que a canoa pode com o peso desse bicho? – ela perguntou – com travo excitado na voz. Não por receio, mas em admiração, porque nunca havia visto peixe maior que aquele, vivo, debatendo-se, bem diante de si.
–Fique tranquila – Joel disse – eles sabem o que fazem.
No meio do cardume, do amontoado de espécimes diversas, o grande tubarão debatia-se com vigor. Foi dificultoso subir com a rede para dentro. A borda da canoa a inclinar-se tão próxima à face da água que eles viam a hora de, em caso de uma onda mais robusta, um jato borrifar-se para o cavername da embarcação. Mas isso não aconteceu. Ainda assim Flávia inclinara-se inteira para o lado contrário, em lastro. E Joel acariciou-lhe o pescoço e os ombros.
O faz por instinto, pensou. Coragem não lhe falta. Nem o dizer a verdade. E nem beleza. Simples exercícios matinais, alguma natação ajudavam a manter o corpo dela em plena forma.
E enquanto o time de despesca desdobrava-se na faina de passar para dentro da canoa a rede com o enorme cação, Joel deu de lembrar de como haviam feito amor, na noite anterior. Ela, então, preferira um modo gentil, lento. Fixando-o nos olhos. Ele adivinhando, podendo ler o prazer dela sobretudo na contração de seus lábios. Tremiam. Repuxavam-se. Convulsionavam-se. Retesavam-se ou distendiam. Como molduras do que sentia. Desenhavam estranhas formas. Mapas. E quando chegavam próximos a mascar uma goma inexistente, enchiam-se de saliva. Era o sinal. Ela iria gozar. Como quase sempre, sem espalhafato ou grandes urros. Mas por um gemido apertado, doce de ouvir.
Porém, então, o sol caía em placa sobre eles. E ele, às costas dela, podia entrever-lhe o perfil iluminado por sucessivos e diferentes matizes de reflexos do sol no lombo das ondas.
Uma vez lançado sobre as cavernas, o enorme cação bufava feito um touro. Emitindo esse estanho ruído pelas brânquias que vibravam intensamente. Até que um dos tripulantes enfiou o dedo em seu minúsculo olho lateral e, com um cacete, encheu-lhe de pauladas na parte de cima da cabeça. E o matou. Nessa hora, Flávia e Milena desviaram o olhar. Álvaro fixava a cena fascinado, desde o banco da vela, do qual Milena havia descido:
–Ah uma máquina! – haviam trazido uma câmera. Uma Cannon de boa resolução. Mas a câmera havia ficado na outra canoa. Teria sido impossível trazê-la a nado.
Morto o bicho, nenhum fio de sangue saía de seu enorme corpo, para onde convergiam todos os olhares. Até um polvo de dimensões razoáveis, ao lado de pequenos cardumes de sardinhas e dos samburás dos pescadores, não parecia mais que um coadjuvante perto daquele Leviatã.
–Vocês me deram sorte – disse seu Antônio José – esse bicho é dos maiores que já caiu na rede nos últimos tempos – tomou um gole de cerveja, ao modo de brinde, em aberta comemoração.
Depois, Flávia fez questão de tocar a pele áspera do cação. E foi hora de Joel pensar:
–Ah, uma máquina!
Mas quando Flávia brincou de arremessar uma pequena sardinha para dentro da boca do bicho, quase pondo os dedos ao alcance da mandíbula do tubarão, um pescador a advertiu que nisso algum risco havia:
–Pruquê pode inda tê um ‘restim’, um fiapo de vida nele, né, dona? A ‘rente’ nunca sabe…
Num gesto brusco e automático Flávia afastou a mão. O sol do meio-dia lacerava. E não é preciso dizer com que destreza eles voltaram nadando para a outra canoa, após despedirem-se. A imaginar imensos cações-lixa como aquele, nadando sob seus corpos. Porém Joel e Flávia nadavam em reguladas, bem ritmadas braçadas. E, quando o amigo de Leandro tratava de soerguer Álvaro, desta feita o último a chegar, utilizando-se do cabo de vela, ainda teve tempo de gracejar:
—Mas que merozinho mais pesado! – em referência ao porte físico um tanto rotundo do outro.
Na volta, Leandro ainda cometeu segunda imprudência. Ao tentar costear de fininho a amurada de um curral, acabou involuntariamente fisgando, com o leme, o cabo de âncora de uma outra canoa e rebocando-a a toda velocidade. Seu amigo, arriscadamente, pulou n’água para desenredar o cabo do timão, no que a proa da outra canoa achegava-se perigosamente, não só pela tração da canoa em que eles estavam, como também movida aos insultos de seu ocupante, que, até então, pescava tranquilamente, de linha, acompanhado de uma filha pequena.
Desfeito o bizarro enleio, o outro falou com Leandro como se nada houvesse acontecido. E até lhe perguntou se certa partida de madeira já havia chegado ao barracão de Ivan. O mar é um afrodisíaco para perdões imediatos.
Logo estavam na praia. Sentados em rústicas cadeiras de armar, na barraca de Toinha, tomando água de côco:
–Ah, ainda bem que eles vão trazer o cação para praia – disse Milena, que estava ansiosa pelas fotos.
Mas Joel não a escutava. Apenas fixava o reflexo do sol no lombo das ondas.
O vento tépido vergava as palmas do vasto coqueiral. Todos os trapiches, barracas e o precário casario que fronteava o mar assemelhava uma pauapiqueira que não tinha mais fim: a linha branca dos currais a seguir até o perder de vista, ao longo do mar. As densas marés que lambiam a praia antecipavam um mar alto revolto, traiçoeiro. Uma costa que desde os tempos da colonização tantos naufrágios acumulara. Especialmente quando se demandavam as enseadas cearenses provindo do Maranhão, do Grão-Pará. E era mais fácil, pelas correntes marinhas ser tranpolinado para o Caribe, ir até a Europa e retornar. Além disso, a cabotagem ao largo da costa maranhense seguia desviando-se de arrecifes. Em um desses naufrágios, aos 41 anos, morrera Gonçalves Dias. Uma ironia, que um poeta que haja falado em terras e palmeiras, haja morrido no mar.
Ao fim da tarde, a espessura do enorme tubarão descansava sobre a areia da praia.
Mas Joel não a escutava. Apenas fixava o reflexo do sol no lombo das ondas.
O vento tépido vergava as palmas do vasto coqueiral. Todos os trapiches, barracas e o precário casario que fronteava o mar assemelhava uma pauapiqueira que não tinha mais fim: a linha branca dos currais a seguir até o perder de vista, ao longo do mar. As densas marés que lambiam a praia antecipavam um mar alto revolto, traiçoeiro. Uma costa que desde os tempos da colonização tantos naufrágios acumulara. Especialmente quando se demandavam as enseadas cearenses provindo do Maranhão, do Grão-Pará. E era mais fácil, pelas correntes marinhas ser tranpolinado para o Caribe, ir até a Europa e retornar. Além disso, a cabotagem ao largo da costa maranhense seguia desviando-se de arrecifes. Em um desses naufrágios, aos 41 anos, morrera Gonçalves Dias. Uma ironia, que um poeta que haja falado em terras e palmeiras, haja morrido no mar.
Ao fim da tarde, a espessura do enorme tubarão descansava sobre a areia da praia.
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