quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Vai ficar tudo bem, agora

[s/i/c]




Sehr gut, danke!


Wie gehts? – disse ele.
Sehr gut, danke! Und du?– ela retrucou; e abriu uma daquelas gargalhadas, em soluço, onde algo um tanto debochado, uma cifra, parecia vazar mais alto que água vertendo-se pelo sumidouro da caixa d'água em torre, aos fundos do Departamento de Letras Germânicas.
Abraçaram-se. Beijaram-se na face.
Uma coca na cantina? – insinuou.
Por que não? – ela disse.
Adiante de um bosque de mangueiras, a cantina da Casa de Cultura Alemã era povoada por garotas e garotos um tanto andróginos, já àquela altura. Mas eles não se sentiam deslocados ali. Era um recanto agradável, um pouco acanhado talvez. E, ainda assim, tinha seu charme. Uma pequena ilha de sossego de manhã mais cedo, que seguia ganhando gente até a volta do meio-dia. O mesmo acontecia à tarde. Vazia ao começo, mais atropelada à rasura da noite.
Ela tinha algo de traços índios no nariz, e todo o resto era europeu. O cabelo castanho escuro. A compleição frágil. Os olhos castanhos onde nadavam tenras algas de cinza em um vinco de verde. As extremidades quase sempre adoravelmente plissadas, muito de tênue, por um sorriso que também lhe abria na bochecha uma pequena cova. 
Joel sentiu nela uma certa palidez inusual. E seu corpo emitiu um ligeiro tremor quando se abraçaram. Não era comum se encontrarem, porque estudavam em diferentes horários. E ela tão-só viera mais cedo, na manhã, para uma prova de segunda chamada.
Ao passarem pela varanda, defronte a pequena biblioteca, extremamente limpa e bem ordenada, lhe veio a mente a única vez em que, um tanto fortuitamente a beijara. Demoradamente, aquosamente; várias, vezes várias. E restaram para a noite. Como namorados. À margem do riacho sob a meia-lua. Tão jovens e puros. Tão desatadamente em paz. Ela soergueu os cabelos com ambas as mãos. Ele desabotoou com vagar a blusa dela.  E, então, ele desfez o fecho do corpete. E veio o mais.
Depois, ele deslizara o dorso dos dedos pelas maçãs do rosto dela onde a covinha se abria desde o infrequente sorriso. E, com deliberado vagar, escorreu todo o torso dela com a ponta dos dedos. E a viu dormir. E à distância de bem menos de um grito, ouvia-se a água arrebentando-se em respingos sobre pedras limosas. E havia bromélias à volta.
Jovens são inconsequentes. Beijam-se um bocado. Tocam-se muito. Por qualquer dá cá a palha. Talvez por ainda não saberem se vida é para amar ou para tocar. Ou para se gastar.
Que dizer? Para se gastar no toque? Para se desgastar?
Um amigo comum a ambos compusera uma canção cuja letra continha essa indagação, em alguns versos até bem bem medidos; com outra arrumação na sintaxe, que ele não conseguia lembrar. Mas que insinuava a analogia da epiderme, digamos, com a superfície de uma estátua, fosse gesso, cobre, argila, gelo. Qualquer matéria, qualquer tecido que se desgasta ao toque. E, no entanto, a indagação até parecia precoce. Pois se tem muita pressa aos vinte. Muita cegueira aos vinte. Muitos afãs. Muitos morcegos. Muitos modos de radar. Muitos amores cegos. Muita nódoa no sangue. Muita sede. Muito medo. Muita angústia. Muitos muitos. É quando pote é medida pouca para conter o de beber no prazo de um dia. E haja Angst.
Sentaram-se na pequena cantina, semi-deserta, cercada por uma alameda de crótons.
Você foi a Jeri na Semana Santa? – indagou ele.
Que Jeri que nada – disse ela – tive uns compromissos em família: o batizado de minha sobrinha, tão fofa!
Ah, essas coisas de família me deixam meio alérgico – ele disse, mordiscando a empada de azeitonas e carne moída.
Joel, você é um desajustado – ela ripostou – se não está nos barzinhos meio às quedas, vive trancado em casa, lendo. Lá isso é vida!
Ele fixou todos os tons de verdes e grises nos olhos dela, seu nariz comprido e ligeiramente oblongo ao centro, afilando-se na extremidade, o que lhe emprestava a aparência de uma jovem estudante francesa em uma tomada Nouvelle Vague qualquer, e tascou:
Ora, ora, quem fala em desajuste, Flávia Jaguaribe Telles!
Fez isso a depor um acento proposital no Jaguaribe, escandindo-o em sílabas frouxas, porque sabia o quanto esses sobrenomes tomados de empréstimo aos indígenas por enfatuados patriotas no final do sec. XIX soavam tão expressamente kitsch. E ele queria feri-la um pouco. Em ironia.
Talvez por uma certa, avulsa, noite. Noite não continuada em outras noites, no ano anterior, em uma cidadezinha qualquer do interior, onde um bando de amigos mochileiros se atacara atrás de uma queda d'água. Os violões. A roda. O pequeno acampamento. Alguém cantando: “Feira moderna/ O convite sensual/ Ah, telefonista, a palavra já morreu/ Meu coração é novo/ Meu coração é novo/ E eu nem li o jornal...”. E os outros em coro, imitando em voz grave e um pouco desentoada o belo rife do contrabaixo, enquanto o fogo crepitava sobre a lenha espanado por um vento que avermelhava os feixes já encarvoados...
De repente, um estrondo se fez ouvir para as bandas do pátio das Letras Vernáculas. E, em impulso, ele desviou o olhar às costas.
E então, em seguida ao estampido, que lhe prendera os olhos, ouviu outro: o de soluços altos, fundos. De se perderem em resfôlegos. Chorava tão compulsivamente que ele, até então sentado à sua frente, tomou a cadeira do lado e a abraçou.
Ela reclinou sua cabeça sobre seu ombro, depois sobre seu peito. Ergueu os pés e pôs a ponta dos calcanhares à beira do assento, quase em posição fetal. E assim se foi um lastro de minutos. Até ela recompor-se.
E já refeita, sobre o silêncio dele, disse:
Lembra aquela noite?
Eu nunca esqueci aquela noite.
Senti como se você estivesse dentro. Aqui dentro. Inteiro. Não apenas, você sabe... Você inteiro, dentro de mim. Era forte demais. E eu precisava viver. Mais leve.
Ora, vamos, Flávia, eu sei. Foi só uma noite – ele disse, em sussurro, por contraposição ao tom dela. E também em oblíqua indicação. Pois ouvira a proprietária da cantina retornando aos resmungos:
Outra vez esse problema com o transformador da rede elétrica. Eles nunca que consertam essa porra direito. Tá faltando energia. Por que isso só tem de acontecer aqui na Letras! Minha Nossa Senhora! – e parecia tão contrariada que sequer notou a comoção de Flávia. E Flávia prosseguiu:
E agora você fica de piada com meu nome – disse ainda de lábios franzidos e umidade nos olhos. Você não sabe de nada. Não sabe o qu'eu tenho passado.
Tenha calma, Flávia. Passou. Vai ficar tudo bem, agora.
Não, Joel, não está nada bem. Não vai ficar nada bem. Você não sabe porque eu não fui a Jeri. Não foi por nenhum compromisso de família. Houve um batizado, sim. Mas foi até antes da Quaresma.
O vento passou pela fieira de crótons. Gotas esparsas de água caiam do sumidouro, na pequena torre da caixa d'água. Ele acendeu um cigarro, que depois passou a ela. E depois de alguns minutos, medindo palavras, disse:
Repare, você não precisa se justificar. Saiba...
Eu fiz um aborto – ela disse.
Ele abraçou-a mais forte e rente. E quedaram assim por um não sei quanto tempo. Até ela repôr os pés ao chão. E, depois, de afastar-se lentamente dele jogar o cabelo longo, solto para trás e, após, para um dos lados do pescoço:
O pai era o Cláudio.
Sei, o Cláudio Jorge Garcia. Vocês estavam juntos faz uns meses, não?
É. Mas acabou.
Os dedos dela se contraíram sobre a ardósia do piso. Ela toda parecia crispada. Enrolada sobre si. Como um passarinho após uma borrasca. Como alguém que havia passado três dias no ventre do Leviatã. Ao menos tão contraída e tensa quanto seus dedos próximos ao par das sandálias descalçadas. Seu corpo todo contraído no empuxo daquela crispação de dedos do pé. Ele encheu o copo de soda. Ela apenas encostou os lábios à borda em gole raso.
E então levou a mão em punho cerrado à boca. Pigarreou. E comprimiu os olhos num último esforço para reaprumar-se de vez. Houve um fundo suspiro.
Porra. Nunca, nunca que dão um jeito nessa merda. Só quando privatizar – resmungou a dona da cantina enquanto esfregava um trapo úmido sobre o pequeno balcão simples, de azulejos.
As gotas d'água prosseguiam resvalando pelo limoso sumidouro na torre da caixa d'água, que semelhava um pombal. E onde da argamassa, á direita de uma janelinha em arco, sob o beiral, havia aflorado um pequeno mamoneiro.

* * * 

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