segunda-feira, 14 de maio de 2012

Na comunidade dos infiéis líricos


Gerhard Richter

Desde pixota, como se diz, veio o fascínio por letras sob infedelidade, traição. Verdadeira obsessão. E, assim, ouvia direto canções que fariam muito sucesso nas famílias Iscariotes, Calabar e Silvério dos Reis. De Lou Reed a Patti Smith. De Morrisey a Dylan. Porque buscava deliberadamente os triângulos e poliângulos amorosos como quem busca o pote de ouro no pé do arco-íris. Em especial, depois que levou seu primeiro pé na bunda. Mas só teoreticamente. Ou na reles aparência da prática. E, logo, no fundo, era mais virgem como Santa Teresa d'Ávila do que como Santa Maria Egipcíaca. As letras formavam um ingrediente necessário à felicidade dela tanto quanto um modo de evitar qualquer possibilidade de envolvimento. Os envolvimentos e movimentos do amor. Ou seja, daquele movimento friccional de ir e vir que caracteriza um projetor de movies. Essas letras descreviam toda uma ética. Isso foi no fimzinho da era em que os analistas, que passavam aval de comportamentos como sacerdotes, julgavam que certas sublimações fossem uma forma de benção. E prescreviam comportamentos com ainda mais cinismo que padres, por se escorarem na autoridade lógica da ciência. Isso começou a afetá-la no plano psicossomático, junto com anfetaminas. Desque o grilhão pesava tanto, que ela, no esforço de rebocá-lo, estava ficando um pouco corcunda. Alguns atribuíam a gibosidade à natação. Nada mais injusto. Esqueciam do grilhão. E era assim que seguia, manhã após manhã, para a sala de aula, rebocando o imenso grilhão. Porque podia pendurar o grilhão na altura da carteira vizinha até a aula passar, ficava mais cômodo quando ninguém a ocupava. 

E certo lirismo fusco acendia na luz da manhã.

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