terça-feira, 15 de maio de 2012

Didascália, desde um tema de Fito Páez


Felix Hess


Dejarlas Partir


Ouvia vozes. A moeda e a vida de João. Chico Buarque, os óculos, a estátua de sal. O suicida e seu gato irreal. O que foi feito, o que é feito, o que não mais será.

Noite. Verão. Um sótão. Quarto de Solteira.
Aquela foto recorrente. E viver extasiada pela autonomia do detalhe. Separada dos outros por estranheza, pudor. Fisgada por e para dentro. Ilhada na toca de si. Pulverizada em arquipélagos de um mar interior. Chupada. Assungada. Aspirada como um filete de massa untado no pesto, roçando lábios no breve itinerário. Pela incapacidade de funcionar em grupo. Mais de um. Borbulha. Confusão. E ter de nomear um a um os amigos que se foram, no morgue. E ter de tomar aquelas cápsulas estranhas, que a deixavam meio grogue. E ter de tomar decisões irrelevantes a caminho de Roma, quando não se tem mais boca. E quando se tem de tomar decisões irrelevantes sob a ameaça de olhares réprobos a caminho de Roma. E ter de ver rompida de novo a membrana. E roída a roupa. A dela ficara para trás, oscilando, pendurada em algum painel de cortiça e passagem. E vão-se vinte anos. O ornamento, a pressa. Os vidrilhos estilhaçados. O relento e a curva. A chuva escassa. Os andares percorridos sem vagar. O ruído dos pneus numa derrapagem sem fim. E a noite embreando marchas só para arrebentar-se de vez ladeira abaixo.
Nenhuma vergonha. Nenhuma prece.

(Foi? Lembro dela, gentil, esguia, escorada ao balcão, conversando com C. E tudo em volta espargia indescritível luz. Uma luz de beleza e poucos anos. Pareciam entretidos. E, algo, unidos por um vínculo impreciso. Não viam muita coisa ao redor. Ou compartiam de nosso tédio-ambiente. Uma estranha membrana os recobria de gentileza e silêncio. Na conversa deles daria para ouvir dedo passando na borda da taça. Isso? Foi aí por 1990. Naquele tempo de possibilidades.)

Fiz apenas para quebrar. E se pudesse explicar. Se eu pudesse. Fiz só para quebrar. Apenas para quebrar. Só para quebrar-me.

A mim.

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Ouça, se o caso for: http://bit.ly/9GoBVJ
Há quem duvide que o castelhano é belo enquanto pura sonoridade. Pense sobre isso escutando essa canção. Pode-se suspeitar da extrema superficialidade e aleatoriedade das letras de certas canções. Ou o quanto elas foram escritas às pressas em estúdios, foras de hora, estados alterados. E essas letras devem mesmo portar esses selos. Mas isso não as torna menos belas. 

2 comentários:

  1. Lindo. Por um nadinha pensei conhecer a suicida e seu gato irreal. Mas você pôs no masculino outra vez: o suicida.

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  2. rs, não, nanda. ela não existe.

    mas quem existe?

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