sexta-feira, 18 de maio de 2012

A Pianista


Piano de cauda redesenhado e fabricado pela Audi

- ou Nem Toda Ternura Para Quem Inventou a Vigília

Com uma apruma-se o chapéu. Com a outra - de outra pessoa, aliás - recolhe-se a moeda caída sob o jasmineiro em flor. Simultaneamente. Para ser tocado, o piano demanda uma estranha independência entre as duas metades do cérebro; e, de uma para outra mão, um esquecer do que se faz. O piano é o instrumento mais completo. Seu universalismo pouco gera cepticismo e, assim, aproxima-se do sonho. E logo, sonhar tocando piano, como ela certa vez sonhou, é sonhar à segunda potência. 
*
E se o piano segue no sonho, é por onde ela podia ouvir e refazer não só a toada da orquestra inteira, mas também os cantores. Ou os dedos da mão esquerda assoviando no braço das guitarras. E se duvidar, até os passos do solista para os bastidores. Os aplausos. Ou o eco desses passos no assoalho do corredor, de volta, refeito no pé cravando o pedal. E espichando sons. Ou glissandos executados com mais desenvoltura do que se escorre o dedo no visor do iPhone. Tudo isso no sonho ela dominava com rematada perícia. Na certa havia anos de estudo do instrumento por trás. Mas no sonho ela ficava só com o bem-bom: tocar maravilhosamente bem.
Pelos ouvidos dela os sons penetravam como uma quente e dilatada glande nas suas fendas. E o que vinha depois. Depois da cabeça. E aquele seu sonho estava completo: tocava piano como quem conversa no salão de beleza. E expressar o que não se pode com as limitadas palavras. Exprimia algumas notas na suavidade de sedas. E grunhia como uma porquinha em desenho de Disney. Lipatti e Gould, rá, eram fichinha. Nada de excepcional. Pressionava as teclas certas no tempo certo, e o instrumento tocava-se.
Ressuscitava amigos. Amava todos, todos de direito no filme de sua vida. De direito e de torto. Alternadamente e de uma vez só. Uma suruba violenta e piedosa. Não foram poucos. Ia ter com eles. Com todos. Com um. Com os que a tinham desprezado, guardava um sopro de fôlego para, mais adiante, gastar com aqueles que a tinham refeito de novo e para a vida; mas, diacho, sem menos - como usa ser, como ousa ser - por aquela soma de acasos, erraram-se; e nenhuma pista em Facebooks, nenhuma busca nos Googles da esquina iriam remediar, repor, reparar certas coisas ditas, não ditas. Ineditismos. Fantasia. Falências. E umas poucas de arapucas virtuais.
Em sonhos, é tão bom ter tudo de volta à volta. Até o irrevoltável. Aquele dia em que subiram na caixa d'água e, bem ao amanhecer, atiraram a garrafa de chianti vazia lá de cima. 
Ou a natural plástica de quando se tem dezenove. E é reacomodar as coisas na sua primitiva forma de grandeza. Cheia de devaneios e fibras. Arranhados pelo cimento craquento da caixa d'água. Ou no aconchego do quarto de solteira. E com uma direção de arte tão precisa que é feito seguir por noites de dezenove de novo. E reencontrar aquela briba, branquinha, que ficava ali na parede, atônita, olhando para eles, através dos únicos pontos pretos do corpo, enquanto eles brincavam. Era a Antônia. 
Só que agora, Antônia ficara para trás. E ela já sabia brincar com uma agilidade a mais acumulada no corpo, feito um dínamo. Já podia lançar-se ao impromptu, como no jazz. E com certa, não se diga sabedoria, mas passagens por cascas e alhos dentro da cabeça (em si já mais próxima de uma cabeça de alho, embora não menos oca. Mas isso só por dentro ou alegoricamente). Por fora do papel celofane do sonho, claro, tudo selvageria e dezonove aninhos. Grisalho algum. E aqueles dedos tirando sons lindos como linhas da vida inscritas na mão suada de quem muito se quer.
À certa altura, ela puxava C. pelo braço, e ambos caíam no sofá refestelado e macio do sonho, cheio de penumbras e sons. Como nos anúncios. E sentia os volumes do corpo dele e de novo, atrás do jeans. Arestas e ângulos. Mas logo o jeans, junto com a camisa de manga longa e os All-Stars, estavam largados pelo chão. E uma barba malfeita arranhava de leve no rosto dela. E, ao mesmo tempo o piano incessante, a desfolhar estranhas regras de tempo e pingares de líquido na escala. E ele tinha quantos braços? Só dois? Mentira. E, de repente, que coleção de elásticos faziam sua cintura ter mais ginga que a da professora de pilates? 
Agora estava claro. E ficou claro. Ainda mais. Bem claro, Carol. Cristalino. Como numa cantata de Bach. E os contornos do bairro começaram a surgir, de novo, para além da janela. Como o dedo dela obturando fotos em branco e preto na contra-luz de um dia chuvoso. Ou o dedo dele apertando a campainha. E ela a ferver éfes nos lábios. Ou ele de novo enfiando-se, por detrás, nas algas dela. E mais poses. E fotos em que, depois, devidamente photoshopados – e nem precisava - ela assomava radiante, sentada à mesa do café, manhã seguinte. Sorriso de um lado ao outro do hemisfério. Nos sonhos coisas reluzem com brilhos de anúncio de margarina ou sedã.
Mas nada ou ninguém lhe devolvia prazer maior que tocar piano com aquela fluência de virtuose e contornos de gala. E seguir descascando tampos na laranja e tempo nas teclas. Ou comendo-as com a ponta dos dedos. Ou sentindo-se perfurar por mais de uma entrada. E aquele arrepio subindo-lhe ao olho. Ou então, os dedos devidamente esquecidos, permanentemente aquecidos. Fluidos. Como cavalos passando obstáculos. Ou pequenos ginastas de buriti saltando por cima de barras, a transcreverem-se por notas dissonadas, sem prévia adivinhação. Pois finalmente, finalmente, ela tocava piano como quem joga conversa fora no salão de beleza ou a fia no boteco. Ou ainda possui aquele descascar laranjas no piloto automático. Por que demorara tanto para chegar àquele estágio? E até onde a torpe necessidade de fingir não ia vogar mais, se isso não era bom?
E aí, sem perder compasso, desembaraçadamente, o metrônomo marcando nos camarins do cérebro, acocorava, para catar com a mão esquerda a ponta do cigarro que, antes, acomodada na borda do instrumento, caíra no chão. E, então acordava: poçinha de cuspe junto aos lábios, dedilhando teclas invisíveis sobre a colcha de índigo. E num compassar que ainda provinha do último fiapo imaginado antes do plano geral sobre o qual se aplicara o The End do sonho: o indicador a pressionar sucessivamente a dominante, em pedal e ralentamento. Lá fora uma betoneira troava, e bulldozers terraplanavam a rua.
*
Miseravelmente só e ainda um pouco tonta.

E pior, era domingo. Birrenta, uma mosca insistia em voltar ao mesmo ponto na maçã de seu rosto. A dor de cabeça no mundo e súbita lembrança: o disk-água do bairro estava fechado. Será que ainda tinha absorventes no armário? Um cheiro de pizza, cigarro e cerveja ambiente. E maldizendo quem inventou a vigília. O cachorro, um pouco desconsolado, cheirava as pontas de seu sutiã no assoalho gasto.

E para a puta que o pariu essa necessidade cruel de se mudar a programação da TV no domingo. 

3 comentários:

  1. Parece que essa Carol já foi mencionada em outros textos. Gostei por demais, só achei o final um pouco batido, com esses barulhos na rua...

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  2. Caro Ruy, teu blog é ótimo! Está na lista do meu "Arcanso Grávidos" (http://arcanosgravidos.wordpress.com/)

    Abraços!

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  3. impressão, webston. mas vou dar uma passada nos arcanos. obrigado pelo linque.

    *

    impressão, marmanja. é 'carol' porque tem as mesmas letra"s de 'claro', a palavra que é repetida três vezes desde o começo do parágrafo. // logo: "é nada, na(n)da". gostou? quer mais?

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