quarta-feira, 15 de julho de 2009

Que faço deste dia, que me adora: Faustino


[s/i/c]




Carpe Diem

Que faço deste dia, que me adora?
Pegá-lo pela cauda, antes da hora
Vermelha de furtar-se ao meu festim?
Ou colocá-lo em música, em palavra,
Ou gravá-lo na pedra, que o sol lavra?
Força é guardá-lo em mim, que um dia assim
Tremenda noite deixa se ela ao leito
Da noite precedente o leva, feito
Escravo dessa fêmea a quem fugira
Por mim, por minha voz e minha lira.

(Mas já de sombras vejo que se cobre
Tão surdo ao sonho de ficar — tão nobre.
Já nele a luz da lua — a morte — mora,
De traição foi feito: vai-se embora.)


Mário Faustino




Nota - alguma conversa em carga-ligeiríssima. Ando relendo artesanias de Mário Faustino. Tanto como crítico quanto como poeta e tradutor. Nas três incumbências revela larga competência. Vou ser polêmico, atrevido até não mais poder, e dizer que, com toda a sapiência heideggeriana de Benedito Nunes - uma das chaves-mestras de leitura do autor de O Homem e Sua Hora - muito ainda resta a ser dito e descoberto em Faustino. Tarefa para novos leitores que reponham a complexidade e o vigor do crítico taquigráfico de Poesia-Experiência - curiosamente ainda tão devotado aos modelos franceses, com se usava ser então, mas já abrindo-se para as diversidades da poesia norte-americana. Hoje se faz necessária uma leitura mais perspectivada que a candente proximidade de Nunes. A perda de Faustino, em tão tenra idade, foi um desastre irreparável dentro do panorama de nossa literatura, pois que ele é o suplemento mais rematado dos dois poetas por onde passa a lufada de renovação da poesia brasileira em meados do século: Cardozo e Cabral. E isso num tempo em que Drummond já não era o mesmo e alguns xaropes da Geração de 45, tipo Ledo Ivo, ameaçavam açambarcar a coisa toda. Além disso, a verdadeira compreensão de um projeto consentâneo de vanguarda, um que melhor derivasse e descontinuasse 22 e Cabral acabou diluindo-se. E ironicamente diluindo-se justamente por quem tanto deplorou a diluição: Haroldo e Décio - quando, do contrário, se encontra em Augusto uma visão mais lúcida de todo o processo. Faustino seria, então, aquele contraponto místico, o da poesia espiritualizada, metafísica, órfica. Soa curiosa sua oscilação entre autores tão díspares quanto Mallarmé e Pound de um lado, e, do outro, alguém como Dylan Thomas. E não deixa de ser estranha a analogia que ele vislumbra entre Hopkins e Thomas. Mas Faustino, em temperamento estava mais próximo de Dylan Thomas que de Hopkins. Apesar de sua poesia buscar cumprir um programa semelhante ao que ele atribui a Hopkins: "um poeta da 'natureza': mas não no sentido Wordsworth; a natureza abordada, a natureza assaltada pelos instrumentos humanos do conhecimento; a natureza vista de dentro da palavra; a natureza finalmente transformada, em ação, em poemas-objetos verdadeiramente recriadores". Nesse sentido de Hopkins, o programa da poesia de Faustino malogrou miseravelmente. Mas mesmo esse malogro não deixa de ser um expoente lúcido muito adiante de seu tempo. Algo que faz dele uma espécie de Hart Crane brasileiro. E, no entanto, menos equivocado que o norte-americano. Quem sabe a maturidade lhe teria confirmado um aporte formal amplo e distanciado do tom, algo, dylanesco de sua poesia. Que a confunde com oração, e onde recorrem os signos cristãos e pagãos reincorporados em densa voltagem, as alusões clássicas e, claro, o homoerotismo. Um desejo de oratória, profecia, síntese cultural ampla e radicada nas fontes clássicas do Ocidente.
Ainda que provavelmente desgostem do paralelo, atualmente dois poetas, por suas posturas, estranhezas, escolhas e opções aproximam-se mais do temperamento de Faustino do que suspeitam. Especialmente das potencialidades futuras que o projeto de Faustino apontava. Por várias razões. Um é Age de Carvalho, que guarda em comum com o piauiense a densa ambiência crítica que atravessou Belém em determinado momento: Max Martins, Paulo Plínio Abreu, Francisco Paulo Mendes, o próprio Benedito Nunes... Ambiência da qual Carvalho, ainda muito jovem, irá tirar dividendos. Age vem muito mais de um verso como "Ou gravá-lo na pedra, que o sol lavra?" do que suspeita. É já a geologia de Celan que aqui se faz presente, ainda que sob outra anamorfose.
O outro é Jorge Lúcio de Campos.


* * *

Um comentário:

  1. Olá, Ruy

    Nota muito pertinente. Li muito Faustino quando estava na universidade. Pela universalidade e, não nego, também pelo bairrismo: me dá muito gosto que ele seja do Piauí. E, sim, foi realmente uma lástima o sujeito ter morrido tão cedo. Duas figuras que lamento muito a perda precoce: Faustino e José Guilherme Merquior. Ando a ler "Formalismo e Tradição Moderna". O livro assusta pela lucidez de Merquior, em plenos anos setenta, combatendo com aparato técnico impressionante a ilusão formalista de separar arte e sociedade - questiona a todos, Derrida, Jackobson, Barthes, e ainda reapresenta um conceito de mímeses pertinentíssimo, lendo Aristóteles a fundo. Merquior, para mim, devia ser leitura obrigatória - todos os livros dele - em todos os cursos de Letras por aqui. O cara é um orgulho nacional: não baixava a crista para teórico europeu algum - analisava sem piedade e, melhor, numa prosa clara e bem-humorada. Enfim, Merquior e Faustino na crítica; Faustino, Gerardo, Cardozo na poesia - esse pessoal todo devia ser bem mais visitado: talvez o Brasil tivesse menos vergonha de si - mostramos a bunda, mas não mostramos a alma. Mas as pessoas que supostamente gostam de literatura no Brasil, em sua esmagadora maioria, não são sérias. Ou estão apenas atrás de um ganha pão e lêem apenas Machado, para dar aula (e isso eu perdôo, afinal é preciso comer) ou envolvem-se apenas por certo ar cult da literatura e da poesia, e metem-se a experimentalismos delirantes, sempre com a agenda oculta de comer garotas deslumbradas, do tipo que trabalha 'com audiovisual', esta terra de ninguém e de todo mundo - desejam, por vaidade apenas, freqüentar o meio, conhecer pessoas, sentir-se bacana. Meeting people is easy. Beauty is hard work.

    Abraço!

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