domingo, 1 de julho de 2007

De uma terra salpicada quase do outro lado do Atlântico


Paul Klee, Sacred Islands, 1926




De uma luz em Cabo Verde
-A celebração dos cem anos da geração Claridade pode ser bom prefácio para o conhecimento da cultura caboverdeana. Alguns dentre os escritores que compuseram o movimento atingiriam um século de existência em 2007. Comemorações estão em curso, especialmente em Cabo Verde e Portugal.


Sinal aberto. Em 1936, jovens escritores de Cabo Verde acharam uma forma de essa terra auscultar-se. E publicaram seus desassossegos em uma revista: Claridade. Um dos aportes literários que os auxiliaram nessa tarefa veio do Brasil: a estilística dos regionalistas de 30, com sua ênfase etnográfica, sede de paisagem. Humana, inclusive. No momento em que Cabo Verde e os países de língua portuguesa comemoram os cem anos dos mentores de Claridade: hora de aprender.
Há sempre um travo de banalidade, de rito laico e postiço, um mal-cheiro oficialesco, nisso de efemérides. Os escritores de Claridade já morreram, em datas diversas, ao longo de seu século. Então, melhor efeméride para os “claridosos”: seus livros seguirem vivos, reeditados, vetores de memória e testemunho desse pequeno grande país.
Guardadas as proporções – e a escala é conceito importante, aqui – a geração da revista Claridade está para Cabo Verde como a da Semana de Arte para o Brasil. Mas, melhor é pensar que ambas são para o mundo. Para lugar qualquer e seguir por aí.
A Espanha entrava em noite escura. A Alemanha armava o pior. Os Estados Unidos esperneavam para reemergir de depressão e lama. Um travo de abrasivo ódio rondava o mundo. Brasil, deitado em berço esplêndido, sob o tacão do Estado Novo. Salazar e tantos outros azares em Portugal. 1936.
Numa esquina daquele e deste mundo, jovens escritores sem dinheiro, sonhando um jornal numa colônia remota, onde se falava um português mascavo. Esquina ou dobradiça? Placa giratória? Encruzilhada no meio do Atlântico? Mar que abraça, desterra? Nossa história começa no Mindelo. Estavam em São Vicente. Sabor de vidro e corte. E Mindelo era o centro do mundo.
Jornal não veio. Era caro. Sujeito ao controle da morosa burocracia colonial. Depósitos, licenças. O novo gesto expandiu-se em revista. Mais que esporádica, escassa: nove números no vau de décadas. Claridade. Cabo Verde. Morabeza. Cem e mais anos de clarividente solidão globalizada. E alguma imaginação à barlavento.
Jovens escritores que decidiram: Cabo Verde existiria. Precisava existir. E, então, pisaram o solo gris. Solo de larva de vulcão da Ilha do Fogo. Passo lunar antecipado em três décadas. E, de repente, era possível escrever eximindo-se do bolor da metrópole. De puídas convenções literárias. Era possível imaginar algo além de Lisboa. Algo da planura áspera da Boa Vista, do Maio, do Sal. Das águas de São Nicolau. Da paisagem ocre esculpida à sol e sal. De fomes seculares e paludismos. De mínguas e mortes muitas. Da fantasmática Ribeira Grande – onde, no Quinhentos, fidalgos portugueses amealharam seu cabedal traficando escravos da Guiné e iludindo o cabido. Das estiagens pairando sobre o mundo. Da chuva braba caindo, muito esporádica. Da inevitável diáspora. E tudo era arquipélago. Fragmento. Puzzle. Como caco de quebra-cabeça é cada caboverdeano que migrou para terras outras portando o timbre de uma ilha respectiva, de um acento crioulo. E, reza a estatística, há mais deles fora que em seu próprio país.
Os claridosos buscaram sugestão em escritores de outras terras, mesmo mar. Terras igualmente ásperas. E, prosseguiram, em estado de conversa. Com Nordestinos. Lins do Rego, Graciliano, Manuel Bandeira foram tomados como sugestão. Mote Para Cabo Verde tornar-se também, pelas hábeis mãos desses moços, pequeno pedaço de Brasil atirado ao mar, perto da costa africana.
Outro brasileiro lido foi o poeta paulista Rui Ribeiro Couto. Gilberto Freyre esteve entre eles. Visitou essa esquina do mundo. E houve controvérsia. Não se esperaria menos. Os “claridosos” entendiam mestiça sua cultura, acreditando-a um tanto européia. Freyre achou-a africana. A verdade, ao que parece, estava com ambos. A verdade quase nunca é fácil.
Baltazar Lopes aclimatou, filtrou, a seu modo, o que de bom há no lusotropicalismo de Freyre – porque há um mundo de bom em Freyre, alheio às emendas pueris feitas nas apressadas, protocolares teses de pós-graudação dos dias de hoje. Ou ao fato da obra de Freyre haver sido “apropriada” pela ditadura salazarista. Mas a casa é grande, e transcende apropriações espúrias se a senzala é maior.
Jorge Barbosa, o mais ressonante poeta da geração Claridade, diz de seu amor pelo Brasil [ver, abaixo, trecho inicial do poema]. E é perspicaz o suficiente para ir direto a uma questão de escala que chega a ser poética fulcral: “Eu bem sei que você é um mundão/ e que a minha terra são dez ilhas perdidas no Atlântico,/ sem nenhuma importância no mapa”.
Na mosca, o Brasil é majestoso e substantivo (“mundão”). Mas as ilhas de Cabo Verde, ao rimarem com o substantivo Brasil conjugam o verbo mais essencial da língua: ser. E, de mais a mapas, mapas não são mais importantes que o mapeado. Não queriam o mar português. Queriam o mar, que não é de Portugal ou de Espanha ou de Holanda, mas das gaivotas, etc. Mar que não se dobra em mapas. Mar de todo mundo.
E Baltasar Lopes escreveu Chiquinho. Manuel Lopes ouviu O Galo que Cantou na Baía. Jorge Barbosa decidiu que “nessa hora inicial/ começou a cumprir-se/ esse destino ainda de todos nós”. É bom ouvir este ‘ainda’. É uma senha. Habitamos a mesma diversa língua. Grito e alarme nesses tempos de espaços sonegados em que vivemos. Ou vice-versa: nesses espaços de tempos sonegados. Desmapas.
Parte importante do que temos de aprender com Cabo Verde vem da geração de Claridade. É como se eles nos devolvessem nossos escritores recém-desembarcados. Ou seus temas transfigurados, deslocados. Ou a língua portuguesa posta entre parênteses de hastes feitas por uma fibra que desconhecemos. Algo de maresias, enjôos. Mas só de leve. Pois tudo volta para nos encontrar em semi-espelho. Revigorado de alguma forma. Ondas batendo em cascos.
Pensar nesses caras dá um entorce na alma. Algumas pequenas ilhas a mais no próprio corpo. Insulados numa esquina do mundo. Que fazer quando o barco-de-papel é, na verdade, a terra em que se pisa? Essa fragilidade forte, badio. E tornar essas esquinas o centro do mundo. E navegar esses barcos.
Qual a sua ilha? Há sobras de tragédia na Ribeira Grande entre as histórias muitas de Santiago. Há um pelourinho e fantasmas rondando campas de velhas famílias brasoadas. Há os vizinhos, suas “encomendas”. O fantasma de Eugênio Tavares regendo uma banda na Brava. E as crioulas do Maio. Mas, depois de um gole de grogue, sigo para Santo Antão. Em boa hora.



Você, Brasil

Eu gosto de você, Brasil,
porque você é parecido com a minha terra.
Eu bem sei que você é um mundão
e que a minha terra são
dez ilhas perdidas no Atlântico,
sem nenhuma importância no mapa.

E o seu povo parece com o meu,
que todos eles vieram de escravos
com o cruzamento depois de lusitanos e estrangeiros.
E o seu falar português que se parece com o nosso falar,
ambos cheios de um sotaque vagaroso,
de sílabas pisadas na ponta da língua,
de alongamentos timbrados nos lábios
e de expressões terníssimas e desconcertantes.
É a alma de nossa gente humilde que reflete
a alma de sua gente simples.

Nós também temos a nossa cachaça,
o grog de cana que é bebida rija.
Temos também o nosso café da Ilha do Fogo
que é pena se pouco,
mas - você não fica zangado -
é melhor que o seu.

Você, Brasil, é parecido com a minha terra,
as secas do Ceará são as nossas estiagens,
com a mesma intensidade de dramas e renúncias.
mas há no entanto uma diferença: é que os seus retirantes
têm léguas sem conta para fugir dos flagelos,
ao passo que aqui nem chega a haver os que fogem
porque seria para se afogarem no mar. [...]

Jorge Barbosa

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