terça-feira, 3 de abril de 2007

Williams e seu "pé variável"


Dr. Williams: redesenho da medida
buscando sucedâneos em casa para
uma poética, até então, fortemente
europeizada.

© Poetry/Rare BooksCollection, SUNY Buffalo



Poesia Norte-Americana no sec. XX, um folhetim

Cap. II

Williams Leva as Linhas de Volta ao Quintal -- ou Um Imagismo Diz Mais Que Mil Palavras




Seria tolice retomar exatamente de onde paramos no capítulo anterior. Onde foi mesmo? Isto só acontece nas telenovelas. E o nosso é um folhetim. Se vai, se vem. Não há nada rigidamente linear. Mas, pois sim, minha amiga está melhor, e me passou um e-mail hoje. A vida é muito mais importante do que isto aqui de literatura. Então, se você tem coisa melhor a fazer, faça: um passeio de bicicleta; encontrar amigos; chegar no barzinho – seja Arlindo, Jairo, Bebedouro, Fortim; ir ao cinema ou à praia comer caranguejos; andar por aí sem destino feito um flâneur, ou, sobretudo, namorar: o que está esperando? Bom, acho que algumas dessas opções só podem ser realizadas por um fortalezense. Ou um camocinense. Meus pêsames aos demais. Ok. Vamos começar, então, falando de William Carlos Williams (1883-1963). Ele foi um daqueles que não se mostrou tão fascinado assim com a perspectiva de se ir educar na Europa, capítulo passado. Até porque já o tinha feito na infância e adolescência. Ao contrário de Pound, Eliot e Stevens, que vinham de velhas, tradicionais famílias bastante estabelecidas -- digamos, não quatrocentonas, mas ao menos trezentonas -- o Dr. Williams, diante deles, era um “arrivista”. Tinha acabado de chegar. E, além disso, era “mestiço”, pois seu pai era um imigrante inglês e a mãe, de ascendência espanhola, havia nascido em Porto Rico -- de onde o Carlos em seu nome. Pound uma vez lhe escreveu dizendo que essa mistura de sangue tão “liberal”, que deu em Williams, era uma vantagem que ele tinha de levar em conta. Um “‘influxo de sangue novo’ em nossa poesia”, no dizer do incansável Ezra, que tentava animar os outros com tudo que estivesse à mão. Se colasse, e eles escrevessem boa poesia, tanto melhor. Agora, não nos enganemos: a educação de Williams foi esmeradíssima. Na infância, por exemplo, o pequeno William Carlos foi mandado para internatos suíços. Depois estudou dois anos no Liceu Condorcet, em Paris. Quer dizer, toda a aparente espontaneidade que encontramos na poesia do Dr. Williams é muito mais arduamente inventada, cultivada, construída, do que ingênua. Basta lembrar que ele se dava ao luxo de produzir um soneto por dia, durante dois anos, "só para desenferrujar o pulso", antes de se lançar à tarefa de escrever seu primeiro livro [The Tempers, 1913], predominantemente em verso livre - em que não entraram sequer um que fosse dos sonetos de exercício. E, por fim, completando essa educação: faculdade de medicina na Pennsylvania com amizades marcantes. Foi aí, em 1902, que ele conheceu um tipo esquisito, meio avoado, egocêntrico, mandão, solene, metido em trajes extravagantes, de gestos calculados, teatrais e envergando um estranho cavanhaque. O sujeito dizia que estava se preparando para, quando chegar aos 40, conhecer mais sobre poesia que qualquer vivente. Estranho projeto. Quem era o tipo? Quem era? Elementar, meu caro Watson. Ele mesmo em que você está pensando. Outra conhecida de ambos, Williams e Pound, nessa estadia na terra de William Penn [a Pennsylvania] foi a poeta H.D. (Hilda Doolittle). Marquemos o ponto: Williams foi, de fato e de direito, o anti-Eliot. Enquanto Thomas Stearns fez o possível e o impossível para anglicizar [tornar inglesa, britânica] a atmosfera da cultura poética americana, o Dr. Williams tomou a corrente oposta. Não queria soar solene, queria soar simples -- não confundir com fácil. Queria arejar o ambiente para pôr na poesia de seu país uma medida que, entrando em choque como o tal famigerado verso de cinco pés de Eliot, o tal iâmbico pentâmetro da tradição inglesa, pudesse aproximá-la da fala americana [ou “american speech”]. Também desejava pôr mais Estados Unidos na poesia norte-americana: subúrbios, bairros operários, fábricas, slums [favelas], beisebol, highways, árvores e bichos que não existiam na Europa. E ah, o jazz também, por que não? Jazz tem um ritmo danado, e variâncias muito sutis. Diz o autor do poema épico Paterson [que trata da identificação entre um homem e uma cidade, cidade industrial em New Jersey que dá tíltulo ao poema]: 'Devemos seguir em frente inseguros como de uso, mas corajosamente como deve ser. Certos de que medida em matemática como em poesia é inescapável, assim, em reposta ao pé fixo da linha antiga, incluindo os elizabetanos, é preciso ter uma resposta: o pé variável, que estamos começando a delinear depois do advento de Whitman.' Williams queria esse ritmo novo, improvisado, negro e mestiço, ainda em construção, no âmago de sua poesia. Um ritmo apenas "esboçado" por Whitman. Portanto, nada de só repetir ao martelo a medida inglesa. E essa sábia busca por uma coloquialidade estilizada -- algo que Guimarães Rosa fez, de forma soberba e bastante elaborada, em relação ao falar dos sertanejos mineiros -- está presente, de forma outra, em Williams. Inclusive em livros que não são de poesia, porque o Doutor era um copioso polígrafo. Livros que são um deleite, pois que revisam a história dos Estados Unidos sob um ponto de vista literário, ensaístico, com sobretons coloquiais --- sublinhe este coloquial na sua tela. É o caso de In the American Grain [No Grão Americano], 1925. Antes, em 1922, ele havia lançado um importantíssimo livro de poemas Spring and All [A Primavera e Tudo], onde já se encontra amplamente delineado as idiossincrasias de seu estilo [a linguagem de um coloquialismo estilizado e imagens de alto poder plástico focando, em geral, sobre temas de uma "banalidade" impensada até então]. Também do quarteto mágico do modernismo clássico americano, a poesia de Williams é, à primeira vista ao menos, a mais fácil de entender. Talvez, daí, venha o fato de ele haver sido tão prontamente descartado pelos sofisticados críticos que canonizaram Eliot na década de 20. Alguém que escrevia sobre carrinhos-de-mão vermelhos esmaltados com água de chuva perto de galinhas brancas em quintais proletários parecia mesmo não ter muito futuro se comparado ao solene poeta que, em “The Waste Land”, ruminava sobre os desenganos éticos da humanidade após uma guerra monstruosamente sangrenta. Então o projeto de Williams, no fundo, era este: sem deixar de ser cosmopolita, saber divisar melhor o próprio quintal. E ele atirou-se com grande energia a ele. Seu lema, hoje célebre, era 'no ideas but in things' ['não nas idéias mas nas coisas']. Com isto, mais uma vez, perspicaz como era, Williams buscava deslocar o eixo do pensamento da Europa para a América. É como se ele disesse: "se querem, de fato, conhecer a realidade do país em que vivem, não se prendam a idéias, mas vejam os objetos, detenham-se sobre eles, reconheçam-nos. Eles, que são feitos por nós, tem mais a ensinar sobre nós mesmos que um amontoado de conceitos gestados em uma terra distante e nem sempre adequados para a análise de nossa realidade". Ora, à primeira vista isso pode soar até um pouco xenófobo. Nada mais distante de xenofobia, na verdade. Mesmo obcecado pela questão do "local", Williams possuía uma densa vertente cosmopolita e esteve sempre atento aos desenvolvimentos da arte na Europa que pudessem -- isto é importante -- ser apropriados como instrumentos adequados para a investigação e a representação da realidade americana. Assim que seu cosmopolitismo nunca murchou. E até mesmo os cromos de referências extremamente locais, os recortes foto-poéticos que lhe são tão característicos, estão impregnados pela fertilidade de sua erudição e abertura para culturas outras. O caminho de casa estava, então, apontado pelo doutor. Mas, para além disso, Williams também notabilizou-se por sua grande generosidade em relação a poetas mais jovens. Certamente à época, Eliot e Pound eram mais ressonantes que ele. Mas Pound e Eliot eram figuras solenes, distantes, consagradas, que se encontravam na Europa e a quem, quando muito, os jovens poetas tinham acesso por carta. Williams, não. Abriu uma zona de conversa bastante franca. Muitos foram visitá-lo em Rutherford, conheceram sua mulher, Flossie, e dormiram no sofá ou na garagem de sua casa. Houve maior interpessoalidade. Tratamento entre iguais. E, de fato, ele se tornou uma referência para muitos que participaram de correntes e tendências posteriores, nem sempre afins. E não poucos reconhecem seu débito para com ele: os Objetivistas [Louis Zukofsky, George Oppen, Charles Resnikoff e Lorine Niedecker], nos anos 30; os Black Mountain Poets [Charles Olson, Robert Creeley, Robert Duncan, Denise Levertov] -- estes, aliás, de modo muito especial; além do pessoal da Escola de Nova York -- que dividia com ele seu entusiamo pela pintura [Frank O'Hara, John Ashbery, Ted Berrigan, Barbara Guest]; e, de lambuja, até os Beats [Gary Snyder, Allen Ginsberg, Lawrence Ferlingetthi, Gregory Corso, Michael McClure]; estes três últimos grupos nos anos 50. Williams chegou mesmo a escrever o prefácio -- por sinal, muito bem humorado -- ao primeiro livro de Ginsberg. Certo, além de possuir um ouvido musical [jazzístico?] excepcionalmente atento e afinado para a fala de comunidades urbanas proletárias, seus pacientes por excelência, em Rutherford, New Jersey -- um local bastante antipoético se comparado à sala de Eliot na Faber & Faber em Londres ou ao castelo de Pound em Rapallo -- outro sentido salta à cena na poesia de Williams. Este, ainda mais determinante: O OLHAR. E será que existe outro poeta que tanto nos faz ver coisas com a nitidez e os recortes do Dr. Williams? Improvável. Basta lembrar que um de seus últimos livros se chama Quadros de Brueghel [Pictures of Brueghel], e que consiste tão só numa acuidada descrição de quadros do famoso pintor flamengo. Esse obstetra que trouxe ao mundo mais de 3.000 crianças era um perito em poesia visual. No que se encontra banhado pela luz. Mas, além de contato com artistas de vanguarda europeus exilados em Nova York após a I Guerra Mundial, como Marcel Duchamps, Man Ray e Francis Picabia, aqui, também para Williams entra a importância de um movimento iniciático. Um dos muitos “ismos” do início do século. O Imagismo. Vamos a ele. Sabemos que Pound e Eliot, as mais ressonantes vozes do modernismo americano trabalharam a quatro mãos no que seria um dos retratos mais acabados do desencanto legado pela I Guerra Mundial, o épico "The Waste Land". Sabemos também que Pound a partir de 1922 e para o resto da vida, dedicar-se-á quase que exclusivamente a escritura de um épico, The Cantos, cujas primeiras versões vêm a público em 1925. Não menos é conhecida de todos a visão ético-política de cunho conservador, quando não abertamente fascista, de ambos os épicos – especialmente dos Cantos. Entrar por esse atalho, e ele, por si só, a modo de esfinge, nos demandaria uma tese aparte. Qual seja, o de como peças poéticas tão bem acabadas e formalmente revolucionárias podem conter idéias eticamente nefastas. Mas chegar agora a este ponto ainda seria precipitar-se. Para tanto, necessário retroceder até a ebulição das vanguardas artísticas dos anos 10. Para um certo gosto pela especulação estética que precede a catástrofe de 1914. Para Londres. Para Pound e T.E. Hulme. Para um círculo de intelectuais interessados em extrair algo da imediaticidade da poesia-caligráfica chinesa. Para as chaves de tradução dessa estética do Extremo-Oriente, da condensação pictórica do ideograma, propostas pelo sinólogo americano Ernst Fenollosa em nível teórico – no seu ensaio “The Chinese Written Characters as a Medium for Poetry” (“Dos caracteres chineses escritos como um meio para a poesia”). E levados à própria poesia com vigor, em 1915, no volume Cathay, de Pound, onde ele empreendeu uma tradução bastante original e criativa de peças clássicas da poesia chinesa. Este grupo de intelectuais, não tão distante assim do legendário Círculo de Bloomsbury, autodenominou-se imagista e teve ampla ressonância nos Estados Unidos mais que na Inglaterra. Seus mentores eram Pound e F.S. Flint. E seu propósito central o de buscar um certo “tratamento direto da ‘coisa’, não importa se subjetiva ou objetiva” e o “ não uso de qualquer termo que não contribua para a apresentação no que diz respeito ao ritmo, seguindo na esteira da frase musical”. Em outras palavras, o ideal de condensação da poesia chinesa transposto do ideograma para o alfabeto – assunto que, de resto, iria interessar de perto a Derrida, Paz e Haroldo de Campos, entre outros e tempos depois. Alguns desses pressupostos do imagismo não foram mais que derivações das atividades de um grupo de poetas que reunia-se em torno de T. E. Hulme, por volta de 1909, no restaurante londrino Eiffel Tower. Os empréstimos do simbolismo francês também vêm à tona. E o imagismo é definido em verbetes de dicionários de idéias e manuais literários das seguintes formas:

Imagism A brief, central episode in the development of English-language poetry that represented the latter’s clearest point of transition into modernism. As a movement it dates from 1912, when Ezra Pound collaborated with F.S. Flint on a manifesto and a list of poetic prescriptions printed in Poetry (Chicago) and reprinted in English New Freewoman (later The Egoist). In 1914 the first imagist anthology, Des Imagistes, containing H.D., Richard Aldington, William Carlos Williams, Ford Madox Ford, James Joyce and Amy Lowell, who was to take over the anthology side of the movement.”
(The Fontana Dictionary of Modern Thought, p.407)


(...)Imagism, initiated by Pound in 1912 as an alternative to symbolism, signaled the countertendency to fix consciousness in its encounter with the phenomenal world. Both symbolism and imagism are modernist rather than romantic because modernism validates subject (symbolism) and object (imagism) in the authority of the art-work rather than of Spirit. But symbolism seeks the multivalent suggestiveness of metaphor and the rich imprecision of music, where imagism seeks a clean-edged delineation of image and a painterly disposition of elements.
(The Princeton Handbook of Multicultural Poetries, p. 30)


Imagism A poetical movement instigated by American poets in London, roughly coterminous with the First World War. There were four numbers of an annual anthology.(...) T.E. Hulme was a seminal figure. Flint describes meetings in 1909, where Hulme, he, and some others discussed how contemporary poetry might be revivified by vers libre, by the influence of the Symbolistes, and by forms derived from Japanese tanka and haiku. Among Hume circle was Pound newly arrived from America. (...) The word Imagiste first occurred in print in Pound’s prefatory note to poems of Hulme; and the first statements of an evolving programme appeared in Poetry for March 1913.
(The Oxford Companion to Twentieth-Century Poetry, p.247)

Imagists The name applied to a group of poets active in England and America between 1909 and 1918. Their name came from the French title Des Imagistes, given to the first anthology of their work (1914), this, in turn, having being borrowed from a critical term applied to some French precursors of the movement. The most conspicuous figures of the movement were Ezra Pound, Hilda Doolittle (“H.D.”), and F. S. Flint, who collectively formulated a set of principles as to treatment, diction, and rhyme. The image, according to Pound, presented “an intellectual and emotional complex in an instant of time” – with the intellectual component borne by visual images, the emotional by auditory.
(A Handbook to Literature, p. 242)

imagists A group of poets who were prominent immediately before the First World War. The best known were Ezra Pound, Amy Lowell, T.E. Hulme, Richard Aldington and H.D. (Hilda Doolittle). They believed that a hard, clear image was essential to verse. They also believe that poetry should use the language of everyday speech and have complete freedom in subject matter. Pound published the first anthology Des Imagiste (1914), and in 1915 Amy Lowell published some Imagist poets (...). T. E. Hulme’s Above the Dock is a good example of a poem in the imagist manner:

Above the quiet dock in midnight,
Tangled in the tall master’s corded height,
Hangs the moon. What seemed so far away
Is but a child’s baloon, forgotten after play.

Sobre a doca quieta à meia-noite,
Atada à altura encordoada do velame
Pende a lua. O que parecia tão distante
é só mais uma bola esquecida após o chute.
(A Dictionary of Literary Terms, p.324)

A insistência com os verbetes dá uma idéia da importância do imagismo no entrecho histórico da literatura em língua inglesa. E, especialmente o primeiro, que o define como “episódio breve e central”, parece situá-lo a contento. Entre os poetas editados nas diversas antologias imagistas – das quais a primeira assoma como, de fato, a mais relevante – encontram-se nomes como os de Ezra Pound, William Carlos Williams e até mesmo James Joyce. Nomes que são, hoje, instituições per se. Mas há também casos como os de H. D. (Hilda Doolittle) que, embora vinculada de forma mais estrita ao imagismo, vêm recebendo novas e instigantes releituras. O certo é que o imagismo não foi tão-só mais um numa época de muitos “ismos”. E, simultaneamente, se contraposto às respostas “éticas” que se poderiam esperar de artistas – entrevistos por seu próprio mentor, Pound, como “antenas da raça” – o programa imagista, às vésperas de uma catástrofe das dimensões da Primeira Guerra Mundial, bem pode soar constrangedoramente tímido ou, no mínimo, excessivamente desgrudado da realidade – no que pese a pequena revolução que as tentativas de inscrever o ideograma por meio de um alfabeto fonético irá desencadear: parataxe e fragmentação extremas. Dois anos depois, o imagismo será relegado a segundo plano pelo próprio Pound em favor do “vorticismo”. Este, sim, entrevisto por ele como um desdobramento mais dinâmico. Espécie de “imagismo cinético”. Já que, pelo menos no plano das antologias, o controle saíra das mãos de Pound para recair nas de Amy Lowell. E, de pronto, a anedótica pecha de que o imagismo (imagism) na verdade se convertera em “amygismo” (“amygism”). Embutido no trocadilho, além de uma querela pessoal e política, também a consciência de uma certa emasculação teórica do movimento. Algo como se o que começara como um pensamento avant-gard, envolvendo pesquisa, especulação, exegese, e uma preocupação devocional com a forma, houvesse se convertido em mera retórica rala, decorativa e amaneirada. Era um tanto como pesquisar novas técnicas e soluções pictóricas e, depois de um tempo, estar mais preocupado em combinar os quadros com o sofá da sala e a cor das cortinas. Há um fundo de verdade a suportar o trocadilho. E, por volta de 1920, nenhum escritor de vanguarda apreciava ser vinculado ao imagismo strictu-sensu, a não ser que por menção a sua fase heróica, de gestação, quando a ubíqua e dinâmica presença de Pound ainda ditava as linhas mestras do movimento. Mas passeemos ainda pelo terreno minado das vanguardas do início do século. Com seus manifestos inflamados, seu partisanismo, suas revistas pontuadas por experimentos gráficos ousados, e uma certa preeminência das artes plásticas. Uma fase, enfim, de intenso comércio entre linguagens e do advento, ainda tímido, do filho mais dileto desse comércio interdisciplinar: o cinema – o qual o vorticismo parece saudar sem nomear. Uma certa suspeita de se estar reinaugurando o mundo pela raiz pairava sobre tudo. Nunca o lema poundiano do “make-it-new” valeu tanto quanto para essa época. Reconhecidamente no universo de língua inglesa, pelo menos em nível de manifestos e articulações coletivas, o modernismo é entrevisto como um fenômeno não britânico mas de americanos radicados na Europa. A rigor, o termo “modernismo” não possui para britânicos e americanos o mesmo peso que para nós ibero-americanos ou para franceses, italianos e espanhóis. O modernismo, para britânicos e americanos, tende a ser visto como um fenômeno “continental” por contraposição às Ilhas Britânicas. Tende a ser visto como algo especialmente de radicação francesa, via simbolismo, Laforgue e a aglutinação, em Paris, de artistas plásticos, intelectuais e escritores de diversas nacionalidades ao final do sec. XIX e inícios do XX. No universo de língua inglesa, uma revista americana teve um papel determinante na divulgação desse impulso ao lado das britânicas Blast (1914-1915), The Egoist (1917-1919), Art and Letters (1917-1920) e The Criterion (1922-1939) – que de outro modo sofreram forte intervenção de intelectuais expatriados americanos, caso do próprio Eliot. A revista em foco trata-se da Poetry, de Chicago – fundada em 1909 e editada até hoje – que desempenhou com brio, ao lado da Little Review (1914-1929), o papel de catalisar os mais importantes textos dos principais expoentes da primeira geração de modernistas americanos: Ezra Pound, T.S. Eliot, William Carlos Williams, Wallace Stevens, Marianne Moore, ao lado de nomes já mais estabelecidos ou mais vinculados à cena local, do Northwest americano [cujo epicentro é Chicago, onde se editava a revista] ou à Nova Inglaterra, como Carl Sandburg, Edgar Lee Masters, Edna St. Vincent Millay e, claro, Robert Frost. Embora nunca editada diretamente por Pound, foi a Poetry o veículo que deu esteio inicial a toda produção literária vinculada ao autor dos Cantos. Aliás, encontrar um veículo mais estável, uma editora, que pudesse dar cabo desta empresa de forma menos mediada, foi uma das preocupações recorrentes de Pound ao longo de toda década de vinte. E, não por acaso, um fator que veio a aproximar Pound do jovem Oppen, como ainda veremos. Posteriormente, Pound encontraria em James Laughlin seu editor. Um poeta iniciante, de fôlego apenas mediano mas um largo capital para investir. Pound logo convenceu o jovem e afluente Laughlin que sua intervenção na cena literária seria mais decisiva como editor que como poeta. Deve-se a Laughlin a fundação da New Directions, em 1936. Enfim, a editora criada para dar vazão ao paideuma poundiano. Ok, por ora podemos encerrar. Aliás, preciso cear alguma coisa. E hoje eu comi as ameixas que estavam na geladeira e minha mulher provavelmente guardava para depois do almoço. Pedi-lhe desculpas, estavam uma delícia, tão doces e tenras. Até a próxima.

Um comentário:

  1. É, o tom das referências a Eliot não sugere exatamente um leitor apaixonado
    dos "Quatro Quartetos". Suponho que seja natural, já que você, pelo que que
    já pude perceber, aprecia bastante essas correntes mais recentes da poesia
    norte-americanas, que, em geral, devem bem mais a Stevens e Williams do que
    a Eliot - basta pensar no caso do Robert Creeley (de quem li recentemente
    mais alguns poemas, postados no blog do Rodrigo García Lopes) ou mesmo de
    alguns poetas brasileiros e, acho, do Edwin Morgan (li pouco dele por hora,
    mas há Stevens ali). Eu mesmo, lendo Stevens, percebo que a poética dele
    parece mais pertinente para nós do que a de Eliot. Me refiro,
    particularmente, à forma e, de modo mais subjetivo, a certos esquemas
    mentais que conduzem a um certo tipo de humor refinado, irônico - basta ler
    um poema como "Worms at Heaven's Gate"para ter uma idéia clara do que estou
    falando. Entretanto Stevens também escreveu algo como "The Man with the blue
    guitar" ou "Notes Towards a Supreme Fiction". Como todo poeta moderno,
    Stevens tinha muitas facetas. Acredito que a faceta que as gerações
    seguintes acabaram por adotar foi justamente a de menor força dentro da obra
    de Stevens. Mas não vou me demorar muito nessa sugestão - meu conhecimento
    de poesia ainda é bastante reduzido e eu poderia ser facilmente contradito.
    Mas são impressões que tenho. Claro, impressões não são nada até que
    encontrem fundamentos graves. E tenho tantas impressõe sobre tantas coisas.
    Fico pensando se terei tempo de encontrar tantos fundamentos. Às vezes me
    canso disso tudo e sinto vontade de "dar uma volta" - and write a poem.

    Anyways. I guess it's that perfume from that particular dress, that makes me
    so disgress again.

    O que, naturalmente, é defender o meu querido Eliot de tantas repreensões
    brandas. Acredito que, para além de qualquer função social prática, a razão
    para a poesia, nos seus momentos mais altos, é nos trazer para a vida de
    novo - como se estivéssemos boiando alguns centímetros abaixo do nível da
    água e alguém viesse e nos erguesse e pudéssemos respirar imensamente - e um
    dos modos pelos quais ela opera nesse sentido é justamente nos retirando de
    dentro da nossa carapaça embotada e nos lançando, por vezes, num sonho
    hiperealista, onde todos os nossos fantasmas nos chegam de uma vez para nos
    assombrar, e nos acordar, e pôr a mão nas nossas testas para medir a febre,
    que é sempre alta. Shakespeare faz isso em "Hamlet", peça pela qual Eliot,
    embora tenha criticado em seus aspectos formais, nutria fascinação.
    Baudelaire faz isso em "A Viagem". Rimbaud na "Uma estação no Inferno".
    Fernando Pessoa, pungentemente, o faz no jogo de heterônimos - Álvaro de
    Campos andando desnorteado por Lisboa, feito um Raskolnicov envelhecido e
    cansado, esbarrando em Bernado Soares, o maior dos sonhadores. E Eliot faz
    isso, de modo terrível e exuberante, em "Love Song of J. Alfred Prufrock",
    "The Waste Land" e "Four Quartets". Sem falar em Yeats e Rilke. O que me
    parece é que as gerações seguintes não tinham outra escolha a não ser optar
    por projetos menores, porque o início do século vinte tinha sido intenso
    demais. No entanto, a impossibilidade dos poetas das gerações seguintes de
    alcançarem a mesma elevação dos poetas do modernismo obviamente não quer
    dizer que estes tenham sido infrutíferos. E é natural que, enquanto uma
    espécie de poesia, de tom elevado, alcançava seu auge, outra estivesse se
    iniciando - em certos aspectos de Williams, por exemplo, em outros aspectos
    de Stevens, e em e.e.cummings. E é natural também, que esta poética
    seguinte, não fosse tão poderosa quanto a anterior. É quase como se a
    cultura precisasse respirar um pouco e tratar de assuntos menos exaustivos.
    Isso é bom - o oposto, no entanto, não é de modo algum ruim. Mas páro por
    aqui minha análise da poesia no século XX, porque o caráter amadorístico
    dela já começa a me enojar. Detesto falar sobre o que ainda não encontrei
    soluções exatamente. Não tenho o gosto francês de pensar enquanto falo.
    Prefiro pensar, pensar, pensar. Então concluir. Então falar. Para evitar de
    falar nada com nada. Que é o modo natural de conversação dos franceses. Vide
    Foucault ou Barthes.

    Só queria fazer mais algumas observações. Embora seja comum associar Eliot
    ao New Criticism e mesmo o lançar como um dos pontos altos dessa corrente,
    basta ler os ensaios de Eliot para perceber o quanto ele se afastava dos
    postulados clássicos dessa nova crítica - como na idéia de ater-se
    exclusivamente ao texto. Em "The Use of Poetry and The Use of Criticism",
    por exemplo, Eliot escreve: "I only affirm that all human affairs are
    involved with each other, that consequently all history involves
    abstraction, and that in attempting to win a full understanding of poetry of
    a period you are led to consideration of subjects which at first sight
    appear to have little bearing upon poetry." Isso num ensaio em que tenta
    esclarecer que certas inovações formais da poesia de Wordsworth estão
    inevitavelmente relacionadas a certas posturas ideológicas pessoais de
    Wordsworth dentro da sociedade inglesa do período. A contradição com o New
    Criticism é bastante clara.

    Quanto aos poetas confessionais, não sei que outro poeta poderia desgostar
    mais de tal aglomeração do que Eliot, que, em "Tradition and The Individual
    Talent" afirma que a poesia não é uma expressão da personalidade, mas, muito
    pelo contrário, uma fuga dela. É difícil imaginar esses poetas como
    herdeiros de Eliot, que provavelmente preferiria deixar todo seu legado para
    o primeiro mendigo que encontrasse na rua do que para esses supostos
    afilhados.

    Por fim, apenas uma nota: Harold Bloom costuma referir-se ao autor de
    "Portrait of a Lady" como "o abominável Eliot", e vem, desde de "Anxiety of
    Influence", nos anos setenta, propondo uma leitura da tradição poética
    anglo-americana como o desenvolvimento de uma série de embates entre poetas
    calcada nessa ansiedade da influência, que faz com que a poesia avance
    através de desleituras dos precursores. Em alguns pontos, assemelha-se a
    Eliot, mas, em outros aspectos cruciais, é rigorosamente oposto - Bloom, por
    exemplo, é Whitmaniano; Eliot, como Pound, tinha muitas restrições em
    relação ao bardo americano.

    Enfim. Por hora é só. O seu texto me fez pensar bastante. É sempre bom ler
    algo que tem pressupostos bastante diferentes dos seus, para agitar nossos
    pensamentos. Releve qualquer absurdo ou imaturidade de raciocínio aqui nos
    meus comentários - tanto pela pressa quanto pela simples falta de
    conhecimento de causa mais aprofundado.

    Em outro momento tento fazer uma defesa de Eliot mais eficaz.

    Abraço,

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