Duas vinhetas para um fim de tarde
α. Cinco da Tarde
Há uma varanda branca suspensa nessa tarde azul e taibana. Uma varanda debruçada sobre canteiros de boas-noites, um abacateiro, um oitizeiro, pés de cajarana, jambo, abacate, graviola. Há todo um pomar, as casas somadas. E de manhã os bicos-de-lacre gostam de passar por ele.
Na parede do quarto, que se abre para a varanda, reproduções de Miró, Klee, Cela, Volpi, que são quase extensões do que segue lá fora; e só por isso estão cá dentro. Na varanda, duas redes balançam seu móvel conforto. E a aragem da tarde sacode as varandas das redes.
É possível vislumbrar o quintal, onde, ao fundo, uma goiabeira reponta na luminosidade lavada de maio. Naturalmente é sábado. Mas um canário-da-terra nada sabe de sábados, e desanda a cantar ainda mais que em dia de semana. Faz contraponto a um concerto grosso de Corelli, que a agulha sulca, dentro do quarto, mesclando à música aqueles ruídos de rugas no acetato que acabam incorporando-se, e são esperados com a mesma previsão por pouco imediata de certas passagens mais caras ao ouvido. Na cozinha os panos de prato estão dependurados, como deve ser. As panelas arejadas. Os pratos limpos. Os talheres ainda pingam no escorredor. Há uma ordem nas coisas. No bico, quase ornitológico do bule, e nos sulcos sobre a chapa da caçarola, no vapor resfolegando à boca da chaleira. Uma toalha de renda branca à mesa posta, onde ao centro um vaso de argila sustenta o solitário cactus.
Se a casa foi feita por muitas mãos, também o foi pelas mãos da mulher que ora está deitada na rede, lá, acima. A casa é uma espécie de casca proposta ao ar e mediada apenas pelos alpendres. Casca proposta a esse ar aberto, com grãos de água de mar e de lagoa em cada mínima partícula.
Porém, a casa, embora pareça, não está suspensa no espaço. Não é uma invenção metafísica. Anjo flutuando no ar. Balão de hidrogênio atado à mesa do bolo de aniversário. Tem endereço, código postal: fica na Taíba e de uma de suas faces mira as altas torres da usina eólica. As hélices movendo. Parando. Seus beirais alargados devotam-na a um para-sol aberto sobre a intempérie dos pântanos, lagos, lagoas, dunas, mar e rio. Rio. O mesmo que só uns poucos quilômetros adiante vai dar no Atlântico, muito domado e modesto, como usam ser os antes impetuosos rios brasileiros, pelo maltrato dos homens: tímido à foz. Assoreado por crescentes bancos (os pescadores dizem “parrachos”) de areia.
A meio-caminho do curso, alguém plantou eucaliptos, casuarinas, no baixio que antecede as dunas. Árvores exóticas. Exóticas no sentido de terem vindo de fora. De muito longe. Outras terras. Outro mar. Da Austrália, da Nova Guiné. Mas os coqueiros também vieram da Malásia, segundo alguns; e nem por isso são menos belos. Ou menos “da terra”. E então todas elas estão em casa. Na varanda, vasos de samambaia equilibram a última necessidade de sombra na tarde que morre.
Há um jasmineiro no jardim da casa vizinha. E um renque de papoulas calcadas contra o muro. Crianças jogam um futebol improvisado, utilizando uma dessas bolas grandes, profusamente coloridas. É agradável o ruído da bola chocando-se contra o chapisco cinza do muro. E suas vozes intensas e absorvidas, exaltando-se:
“Passa essa bola, mã'ch!”
Há tanta vivacidade nessas vozes, porque sem se dar conta, eles olham o mundo com a força de sementes ainda não germinadas na menina dos olhos. A garotinha menor, que os observa, vez quando, escanchada nos galhos, quase no olho do jasmineiro, trajando uma miniatura de macacão jeans – e aquela naturalidade de gesto em árvore de criança do interior – não tem muito tempo de pensar em táticas de futebol, porque logo seu olhar é fisgado. Ou pela pipa, de longa cauda e altíssimo curso, que oscila lentamente, como uma indicação meteorológica – faz tempo bom na Taíba; tudo vai bem; há muito areia nas dunas; e muita água no mar; e algumas crianças no futebol sob um céu azul e ouro, sem a mínima véspera de nuvem. Ou pela camioneta que passa na estrada e levanta uma pátina de poeira atrás de si, e que se mancha inteira da oblíqua luz do ocaso. Ou então ela olha para baixo e percebe que, de cima, o mundo é visto sob um prisma tão outro. Tão mais preciso, no veio. Mais assemelhado a esboço que a cor, embora a cor também esteja.
Estou em casa. E assim me sinto. O rio chama-se Siupé. Conheço-o melhor que muito geólogo por aí. Suas águas estão tatuadas em meus braços. E entre olhadelas no jornal e nenhuma necessidade de atender telefonemas, me entrego à lassidão contente deste instante. Abro uma cerveja em lata: preta, cremosa; cujo gosto me transporta para outra latitude, temperos e acentos no ar. Do banheiro me chega esse rumor de água vertendo-se para os azulejos depois de amortecido pelo corpo curvilíneo de minha mulher. Posso entrevê-la. O triângulo negro em seu centro. Os seus tendões, nervuras. A sossegada graça de seu mover-se. E grossas nódoas de xampu atingem o piso em úmidas pancadas.
São cinco horas e um quarto.
β. A Noite Completa
Há uma grande placidez nessa tarde que fecha. Uma preguiça fundamental que alastra-se pelas paredes caiadas, antenas parabólicas, telhados vermelhos e o céu acobaltando. Bem-vinda arte de ficar em casa. De acender o fogo para um café. Apreciar, na chama, seus amarelos e azuis. Tirar um ré no violão. E ficar brincando de alternar os baixos.
Que esses amarelos e azuis de ultramar foram captados misticamente por Veemer, todo mundo sabe. E o aroma do café encorpa também por isso. Cada mês tem um cheiro. Porque sabe, à sua vez, dessa exaltação, cerca de espinozista, que mundo é. E bonito demais. Como o aroma do café que se acabou de coar, forte e cheio de cheiros. Depois subir à varanda, e servi-lo. Há algo mais digno que servir nesta vida? Se servir vem do coração mais do que de uma tirania ou capricho?
A rede move brandamente. É a única forma não imóvel neste momento de suspensão. Um friso antepôs-se a tudo. E é como se o tempo estivesse preso por um grampo ou clipe. Como se tudo fosse a blusa branca dela, posta sob o pegador no varal. E que, agora, nesse solene instante sem brisa, nesse instante em que a cortina de um dia de veraneio fecha-se para a limpidez de uma noite com muitas algas e águas ao redor, algo de sol ainda toca coisas. Um resto. Uma inércia. E põe reflexos rubros nos muros caiados; e então o rápido crepúsculo de maio finda nas luzes acesas no topo das torres da usina eólica. Estrelas.
Ao longe, os fachos de luz sobressaindo-se do interior das casas propõe algo de remoto, visceral aconchego. Alguns derramam-se sobre as lagoas e parecem despertar o coaxar monótono dos sapos.
Excessivamente lerdo para escrever cartas. Não movo um só lance de xadrez da sintaxe. Nem mesmo em favor das pretas – uma simpatia que vem da infância, e responde por metade das estratégias em um jogo assim, como é de domínio público. As coisas vão tão estacadas na perspectiva dessa varanda. No alvedrio da pausa de brisas e no travo aromático do café. Há um extenso ético na paisagem. Tudo, até a pequena capela rural, ainda em construção, branca e um pouco acachapada parece dizer, em salmo: “Prove e veja que...”
E provo. E vejo. E que.
Vejo o manguezal, e o jardim vizinho, vazio de futebol. Sob o pé de jambo, o tapete púrpura. Lá, ao longe, ondas que não se cansam nunca de rebentar e refluir sobre a arenosa praia.
Pela porta, dentro da casca, no bolso da noitinha, vejo a mesa, na penumbra do quarto, perto do miúdo cactus, onde há já uma luminária acesa, uma leitora sob ela, além de espalhadas em espaçada, graciosa desordenada ordem: palavras cruzadas, revistas em quadrinhos, velhos exemplares do Asterix, anuários de fotografia, livros de Bioy-Casares com diferentes marcações de leitura, o croqui de uma mulher deitada, cartas que de longe vieram com belos selos coloridos e variados carimbos sobrepostos. Coisas se acumulam. A felicidade é o contrário disso. É essa desacumulação de tudo, mesmo ao crepúsculo, pois tão melhor surte à luz, inaugural de um amanhecer. Mas coisas se acumulam, eu dizia. Tenho meu próprio ritmo de resolvê-las. E hoje não quero pôr olho em papel.
Abençoada seja esta noite em que não preciso de meus óculos de presbiope. Em que não preciso ler outra coisa senão o mundo. E, por breves lapsos, nem isso. Sono. Há uma grande completude em minha vida.
Agora não existe saudade. Ou então, a ansiedade de que coisas se resolvam. Tudo apaziguou-se. Os amigos que já não estão comigo, estão comigo. Outros lugares a conhecer. Há tempo. Vários sotaques, com certeza. E a beleza das diferenças. Talvez não mais saia de casa hoje à noite. Pelo menos não sem antes tomar uns tragos a mais dessa cerveja preta e cremosa. Mas do que adianta falar sobre o que se planeja. Não é muito proveito. Nada há de perfeitamente simétrico, de verdadeiramente analisável no futuro, para além de uma boa temperança que brota do coração. Uma experiência indizível que, ao fim, dá em coisas boas, em coisas ruins, em coisas mais ou menos; em coisas boas, em coisas ruins, em coisas mais ou menos boas; em coisas. E as pétalas à volta do estame parecem firmes não ter fins.
Ora me basta esta varanda taibana e nenhum silogismo. Há um sumo favor de silêncio provindo do lago, formado pelas águas de muitas chuvas, que tecem veios, que ressuscitam nascentes, que se ajuntam por pequenos fiapos de água, caminhos de rato úmidos, até irem fechando a teia, o tecido, o pano de água, ao longo dos meses. E suscitando essas belas lagoas sazonais que brotam da terra para secarem no estio, de julho a dezembro. É perto delas que os gaviões da praia nidificam. E sobrevoam suas margens, demarcando território com guinchos audazes.
E há essa suspeição que acabei de morar em uns versos de hai-kai. Acho que não se escreve mais assim. Porque neles há demasiado consórcio com paisagem. Deve soar tão simples. Como a lógica líquida e certa das intuições e formas de sentir que só crianças. O olhar delas não teme paisagens, em certo sentido. E é esse destemor uma das coisas que o mundo adulto mais teme, mais sente pavor quando examinado à lupa. Porque as crianças o desmontam. O deixam completamente desarmado. Quem, em seu ciúme, dor, constrangimento, solidão, desamor, frustração, ódio, pode, no fundo, desejar mal a alguém?
Sol-posto.
Esta rede de fibra branca, pristina, que acolhe a pele como uma carícia, um cafuné de corpo inteiro, é o que me faz digredir. E já nem sei se essa brisa vem de sueste. Ela move as varandas. E às vezes quer morar nelas. Mas são apenas brisas. Passam. Ou no vaso, perto da luminária abaixo da qual a atenta leitora acabou de passar a página; compensam-se um pouco nos ramos da samambaia-cabelo-de-moça, mexendo folhas miúdas, plenas de uma cerrada, misteriosa simetria.
Hoje é lua nova.
Há uma grande completude em minha vida.
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