sexta-feira, 20 de maio de 2011

La Belle au bois dormant

[s/i/c]


A Bela Adormecida

On ne trouve plus de femelle/ Qui dormît si tranquillement”.
. [Charles Perrault]


Ela agora só podia espiá-lo – entre um e outro control-vcontrol-c – do trabalho. Essa banalização da cópia que converteu o ofício do jornalista em compilações e sinopses. Isso até que rimava com a sordidez geral da coisa. E havia retirado suas micropostagens do ar tão-logo ele assinalou, do seu lado de lá do servidor – das coisas, da vida, da cidade – após meses a fio sem rastro, numa sorte de exílio digital, que estava de novo ciente da presença dela, na rede. E, inclusive, a monitorá-lo em recorrência. E ela então – previsível – retirou fotos, referências, músicas, vídeos, linques. O diabo. Qualquer agitar, pulsar mínimo, que pudesse dar bandeira. Tinha de ser a boa moça, como sempre. Ao menos tão boa que o recém-namorado, a quem cozinhara anos a fio até perceber que ele era um bom sujeito e podia ser de alguma serventia, lhe ajudasse a obter, então, por meio de uma amiga dele, um emprego de redatora auxiliar no maior conglomerado de comunicação do estado. Justo onde fazia essas triagens e pequenas adaptações do que chegava cornucopiosamente pelas agências de notícias ou pelos repórteres de além-redação.
O que ela não queria era ser esquecida. Porque seu maior vexame: sentir-se desimportante. Não só para “x” ou “y”. Mas para o Planeta Terra. Agora, isso não implicava em que operasse algo que redundasse num esforço continuado a merecer reconhecimento. E um dia, quem sabe, um Prêmio Nobel da Adolescência. Ela julgava que o mundo iria curvar-se, um dia. Pelos seus belos olhos. E, assim, ela apenas teria de mostrar-se bela – como se não houvesse trocentos caminhões cheios de beldades japonesas ou não de estonteante beleza congestionando uma reta tão longa quanto a Belém-Brasília. Mas nem tão rodoviariamente comprometida assim ela era. Fora uma única vez ao Tocantins. Sua geografia ainda não era tão longa. E muito menos escrava do passado se percebia. Sentia-se boa simplesmente. Ponto. Sabendo sopesar exatamente a conveniência que lhe proporcionava cada pequena mentira nos modorrentos plantões de suas noites, enquanto a chuva caía lá fora e em sua cabeça latejavam enxaquecas. Sem jamais pensar que mentiras desse gênero, tão ao largo da realidade, encapsulam-se em botões, que lá, mais adiante, vão causar dor a alguém. Ela apenas seguia com as mentiras de praxe, dizendo para si mesma: elas não entram no cômputo, desde que não afetem o modus operandi. No caso, por modus operandi, ela entendia ocupar-se com essas coisas do coração e, quem sabe, um tanto vagamente, com o sentimentos dos outros – se alguma sensibilidade mais madura resguardasse para tanto. E era essa a matriz de seu catolicismo e o modo como esperava que Nossa Senhora de Fátima, de Aparecida, de Guadalupe ou de Lurdes a abençoasse para sempre e de novo, de modo que ela não andasse permanentemente necessitada de um perpétuo socorro. E, logo, pudesse continuar ela mesma. Ter aquele estilo que ninguém mais tinha. E sua auto-estima, em alta, galgasse a muralha da China, apesar das insônias, enxaquecas, Buscopans.
E havia aquela necessidade de não propriamente ser querida – isso seria demais – mas pelo menos lembrada pelo maior número possível de pessoas. (Lembram da teoria da importância?) E, quando possível, desejada. Isso até que não destoava de certos signos femininos, eram apenas superposições enfáticas do seu caráter. Como se essa lembrança desejante, que os outros dela tivessem, fosse, sob o ponto de vista dela, uma modalidade de preocupar-se com eles. De cuidar deles. Lhes fazer companhia. Um tanto assim como se pensa que, no Twitter, Luciano Huck seria mais ou menos uma espécie de santo padroeiro que, à hora de dormir, baixasse numa nuvem, espiritualmente, a cada um se seus seguidores, a trazer um pouco de leite morno, conforto, um bom livro para ler ou algumas palavras de incentivo.
No fim, o importante, avaliou, era prosseguir a mesma boa moça de sempre. De família – embora uma vez tenha achado tentadora a carreira de acompanhante, ofertada, muito em discreto e raro tino profissional, por um colega da faculdade. Boa filha. Boa amiga. Boa irmã. Boa amante. Boa namorada. Boa nadadora dos duzentos metros borboleta. Futura boa mãe. Jovem. Bonita. Ainda a mesma fedelha, morena, esbelta, que corria para se olhar ao primeiro espelho, ao primeiro toalete, e daí aproveitava para conferir se havia alguma mensagem, em desoras, no celular. Em caso afirmativo, após uma mentira menos volumosa aos circunstantes, disparava ao apartamento do fotógrafo que mal pingava na cidade de suas viagens em torno da Terra, e ela o encontrava esporadicamente e nem tanto em segredo quanto pensava. Ou então, para o condomínio do namorado, se é que algum coelho – em termos de carreira, migalha ou dividendo – podia sair mesmo da cartola do namorado àquelas alturas do campeonato. Por essa época, a coisa ainda seguia em suposições. Só depois veio esse empreguinho reles. Mas, de qualquer forma, garantindo os trocos.
Ela, agora, já não era exatamente a que costumava ser só uns anos atrás. A que ansiava ir em busca de aventuras adolescentes na micareta. E chorava ao ler o Meu Michael, de Oz. Embora a adolescência nunca tenha ficado totalmente de escanteio. A adolescência nela continuou sob duas formas: mofo e metafísica. Por mofo, ela podia apenas ser irritantemente teimosa, mesmo quando sabia que operacionalmente estava errada. E por isso era advertida. E isso era mesmo que nada. Metafísica, porque algo nela ainda não chegava a funcionar no registro da mulher, tendendo sempre à espessa volubilidade da adolescente. Ou da criança e seus mimos. E essa metafísica da micareta – da festa patrocinada, plástica, cosmética, do kit com os brindes, do abadá, do gosto do acidulante na bebida energética – ainda prevalecia junto com a pulsão para gastar sua hora à beira de uma sociabilidade furiosamente virtual, feito uma modalidade de masturbação em que os dedos tem de ser hábeis o suficiente para simultaneamente manejar dois aparatos, em pólos opostos. E é preciso saber regulá-los, com mais firmeza ou suavidade, como quando se toca um velho órgão Moog com a destra e um moderno sintetizador Yamaha com a sestra.
Aliás, dessa metafísica da micareta reflui, em linha reta, seu acentuado gosto por brindes. Tudo que ela tinha a mínima possibilidade de ganhar – nem que fosse um simples kit da Avon ou um par de ingressos para a Noite da Lambada no Mucuripe Clube, sorteados via Twitter – lhe parecia uma dádiva celeste. Ouro, incenso, mirra. Minas de Salomão. Baús da Felicidade. Delíquios megasênicos. Seus olhos densamente negros brilhavam intensos. E esse mesmo espírito de abnegação e brindes era o que lhe comandava toda uma ética. Uma ética, no fundo, católica e carismática, voltada para orações à Virgem. E porque era assim que ela dizia a si:
Se eu ganhar o tônico facial para peles sensíveis, vou ficar tão feliz, que todos à minha volta também vão – era uma sua suposição. Mas não mera. Ela punha fé nisso.
E, logo, ganhar o tônico facial para peles sensíveis convertia-se em algo importante, de fato, para ela; e, sem embargo, segundo ela, ainda mais crucial para o mundo, que ficaria um lugar melhor por conta de sua radiante felicidade. E, portanto, o tônico facial para peles sensíveis, deveria ser ardorosamente reivindicado em suas preces. Em especial, as dirigidas à Virgem que, como mulher, devia entender melhor que a Santíssima Trindade a importância que um creme facial para peles sensíveis tem na vida de uma jovem mulher.
Às vezes, hesitava diante dessa ética da prece, é verdade. Mas logo esquecia as hesitações. Como podia estar errada? E sua volubilidade impunha-se como a fragrância do Chanel Nº5. Era espontânea. "Pensar demais faz mal à cabeça" – despensava, enquanto machucava a banana no garfo, que depois seria polvilhada de leite em pó. Isso, no entanto, não a poupava das terríveis enxaquecas. E, sem dúvida, um entranhado senso de negócios pairava sobre seu espírito, como fosse coisa de família, ainda que ela se considerasse um temperamento artístico. E, logo, longe da ética protestante, embora com algum espírito do capitalismo. 
Como neta preferida da avó, havia, ao seu turno, faturado no espólio um apartamento com vista para o mar. E seguindo costumes locais em relação a imóveis – tão dados à não ecológica prática de sucessivas, vertiginosas, dispensáveis reformas – logo mandara destruir as paredes de um dos quartos contíguos à sala, para aumentá-la, e nela instalar um balanço, onde, noite após noite oscilasse seu capricho, bipolarmente, entre seguir o curso de certos inconfessáveis desejos ou optar pela segurança financeira e masculina que só um marido e uma família poderiam lhe dar – a despeito do pouco verniz e do excesso de contabilidades do principal pretendente.
Era isso. Essas duas opções. Mas era só isso? Isso era tudo na vida? E sempre buscava dizer para si mesma:
Embora não lhe pareça tanto, quem pode ter tudo neste mundo?
Às vezes sentia que o que lhe restava era antes esse morrer de vez e para sempre ainda antes dos trinta. Não fisicamente. Mas num acomodar-se. Anular-se. Deixar de flertar com os devaneios juvenis. Mesmo que ela se defendesse. E aí apelasse para outras vidas. Para vidas exemplares. Para modelos que decalva das novelas. Ou gente bem sucedida, que via na vida real: suas mentoras, por exemplo.
Porém, quando ela própria olhava à lupa as mentoras, um frio lhe percorria a medula. Para cada uma delas – e eram três – havia terríveis impasses. A infelicidade no casamento às custas da conta bancária do marido – a manter certo padrão de vida elevado e alguma futilidade em forma de umas poucas peças a mais na cristaleira ou milhagens ao redor do mundo no cartão de crédito – era o apanágio da que ela mais admirava.
Um duplo divórcio; certo exotismo antropológico na escolha dos parceiros; uma noção vulgar de sexualidade provinda de uma família excessivamente tradicional, rígida por contraposição a amigos tresloucadamente liberais nos anos de faculdade; a insegurança quanto aos próprios dotes de mulher (que, de resto, não tinham sido pequenos embora já se encontrassem um pouco puídos); o total pânico de chegar à meia-idade sozinha; marcavam os dias da segunda das mentoras, que ela à admiração jogava também por sobre uma pitada de calculado humor.
E, por fim, havia a terceira, que era o paroxismo de seus receios. E da qual sentia  verdadeiro pavor. Não da figura em si. Mas sobretudo de um dia, quiçá, tornar-se como ela. E então, esse último caso, ela o temia com todas as forças. Seria uma hecatombe. Largar às traças as páginas de um livro bom, fino leque chinês de bela estampa. Um desastre completo: já estar para lá da capital da meia-idade e a passear, celibatária, pelas ruas dessa pré-velhice com ares de operosa chefe de departamento, a esgrimir poses de gestora rigorosa sob taieullers de uma austeridade militar. Sabe-se que o que mais se teme – ou comisera – é aquilo onde mora perigo de a gente se converter, por uma bizarra analogia.
E então lhe vinha à mente os impulsos dessa terceira mentora. Dessa matrona sem filhos, de grandes olhos duros, fixos, que parira seu próprio sucesso profissional a qualquer custo. De rosto em forma de maçã e um sorriso semelhante ao daquelas caveiras mexicanas da Fiesta de los Muertos. De demonstrar certo gozo, sincero e perverso, em reprovar quase toda uma turma de graduandos. E não exatamente por méritos, deméritos; porém para compensar-se de frustrações – que ela punha no cômputo das vantagens: ser mulher, liberada, autônoma, sem filhos, livre, a pagar seus próprios impostos. E, no fim de tudo, isso somado dava em quê? Apenas em algumas carapuças. Carapuças e fealdades e futilidades e temores. Os mesmos que se encontra em algumas mulheres por essa vida a meio. Não nas realmente mais libertas, cuidadosas, felizes, abertas à conversa e nem por isso menos autônomas; mas, em especial, naquelas ditas: poderosas. Ou seja, naquelas que, ao modo de homens, fizeram do acúmulo de poder o próprio centro, a periferia e as estações de metrô de suas vidas. Seja por serem belas – e explorarem isso à migalha, objetualizando-se e aos demais em torno –, seja por operarem no mesmo registro do machismo e da mesquinhez daqueles homens, os que querem transformar em coisa tudo que lhes está sob, sujeito, à responsabilidade.
E, porém, todos sabiam o quanto um dos esportes diletos dessa terceira mentora passava por denunciar colegas junto ao colegiado. Para bajular pro-reitores e, em nível puramente teórico mas nem sempre, tentar a reciclagem dos surrados dogmas marxistas, de quando ela era jovem, até bonita, e o desespero pelo acúmulo de poder e um câncer ainda não lhe tinham roído um dos seios.
Sim, especialmente enquanto o corpo fenece ou equilibra-se inseguro, como o funâmbulo na corda bamba, ainda se vê a vida com os olhos apreensivos de quem aspira consertá-la. De alguma forma. Sob algum lance de dados. Se alguma gota de melancolia ainda varre a tepidez dos dias. E como um raio pode explodir a pasmaceira dessa virulenta fome de mando. Depois, quando esse estágio fica para trás, e o frio do risco e das apostas já estão devidamente postos no freezer, como aquelas polpas de fruta que a gente acaba esquecendo, é necessário apenas acumular poder. No fim de tudo, talvez, para acabar com algumas plásticas a mais nas maçãs do rosto, no sorriso de caveira do Dia de los Muertos, e desesperadamente no encalço daquela migalha de celebridade que só a província confere. Tão peculiar formato: tornar-se, diga-se, uma Heloísa Juaçaba, benemérita das artes plásticas. Uma Adísia Sá, decana das jornalistas, embora sem verve ou nenhuma imaginação. Era isso, atingir o patamar de uma Adísia Sá dessas qualquer, no jogo do bicho. Que, antes de morrer, fornece assunto para um TCC ou, no máximo, uma monografiazinha de mestrado meio chinfrim, decalcada de teorias surradas e fora do lugar. Aquelas mesmas que, depois de solenemente defendidas, têm a impressão custeada do próprio bolso do autor, por editoras do Sul, especializadas em publicar monografias e teses que ninguém lê. Edições primeiras e únicas, que mofam nas prateleiras das bibliotecas e depois dos sebos e depois da usina de reciclagem, junto com as rebuscadas dedicatórias que o tempo trata como a flores.
E, então, no meio da noite, a saber que amanhã bem cedo tinha de estar na redação ela pensou vários diferentes rumos para si, que não passavam pelas três mentoras. Pensou que possuía uma distinção: ainda era jovem, o tempo tardaria. Até pensou num famoso quadro dos Trapalhões em que Didi, parodiando Maria Bethânia, cantava uma música de Chico Buarque baseada em uma ciranda de roda que fazia referência aos três amores de Terezinha de Jesus, a tal que deu a queda e foi ao chão. E mais devaneios pensou, refluindo, quase sempre, às três mentoras. Para depois delas afastar-se de novo. E de novo voltar. Como o latejar da dor em sua cabeça. Mas, com um pouco de sorte, o tempo lhe seria lento.
Porém, não. Quão zás o tempo passou e lhe deu a manhã áquela noite. E o tempo sem mão para ninguém, estendia-se em contramão por uma longa e sinuosa estrada, como nos Beatles. E nós vamos colhendo beijos, como diz outra canção. Melhor nem pensar nisso por ora, ponderou. Melhor ralar. Ralar e ralar e ralar. E aí deixar boa parte das coisas simplesmente acontecer. Como se fez na faculdade. Quatro anos de sofrimento. Com aquelas terríveis aulas de Teorias da Comunicação e, contrariedade suprema: Economia Política.
Tudo isso pesado, e a madrugada já apagara-se atrás da curva do dia aceso e pleno, sobre seus quartzos, cristais, areias e águas. Fumegando desde o limiar. O despertador a postos, no criado mudo, à luz da janela, dissolvendo-se em fade.
E, súbito, ela percorria a Alhambra. Saía da esplanada do Palácio de Carlos V na direção da Puerta de la Justicia. Tocando com os olhos as filigranas. Quase com dó de pisar nos mosaicos que inspiraram as artes gráficas de Escher. Banhando-se na piscina de Comares. E, refeita, envolta numa abaya e envergando um hijab, mirando paisagens que muito mais tenras tornavam-se pela moldura das janelas e seus arabescos e entalhes. E, com uma moldura dessas, o vale, lá, abaixo, com sua paisagem ordenada pela mão humana, e as três culturas que quase se fundem para dar paga daquela maravilha assentada sobre o rochedo, ainda assomava mais belo, com suas oliveiras e carvalhos. Sua cabeça errara a almofada, por pouco e repousava diretamente sobre a colcha, com uma pequena poça de cuspe ao lado da mão em concha, pousada sobre a barra do lençol.

E ela, como quase sempre, bela-adormecia de cansaço.


* * *

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