[s/i/c]
A Certidão
Eu já vi. E quem inda não viu, levante a mão. Quem já não teve aquela sensação de ver uma mulher pela primeira vez numa fotografia? Não uma menina. Aquela adolescente exangue, cheia de melindre, jogando charminhos, que você encontrava nas fotos como no mundo tridimensional. A mesma que se desmontava toda ao ouvir uma frase. Não lhe era estranho que varasse a noite diante do espelho – caras, bocas – no afã de conseguir um novo gesto. E ao pensar sempre com pés alheios, ia com as outras Marias. E seu destino era tão-só até onde se tece o pano, enquanto os pretendentes dilapidavam o patrimônio do ardiloso Ulisses. E seguindo o argumento, Princesa, por um naufrágio qualquer, desses que só o capitão sobrevive – por que será que, pronto, abandonou o barco? – torpe e exausto, refugo de vida na praia, ele se deixa cuidar por Nausícaa. Uma Nausícaa que você cansou de ver. E, ao vê-la, pensava e meio, que pensava zero vírgula vinte e cinco, que pensava em dízima, sem se dar conta: não vai mudar. E, de repente: zás! O mundo está de ponta à cabeça. E você diz, com algumas fraturas e equimoses metafísicas a mais: o número da placa, por favor? A altivez, o esplendor incomparável de uma mulher na plena posse de seus argumentos de mulher surge lá, na fotografia, com a leveza das patas de um jaguar. Com aquela gota de sangue na íris, que é já uma só com o faro de anteceder o movimento da presa. De escolhê-la entre a manada. Não após longo escrutínio. Mas num correr de vista. Para a hora, a hora, a onça, a água. E a clarineta sola. Nostalgias do que nem se sabe gotejam em velhíssimas grutas subterrâneas jamais pisadas por espeleólogos. E o chorinho segue conduzindo a harmonia até intervalos insuspeitados. E, no entanto, a melodia é de tal modo distinta como gota de oliva dropejando em água. Beber. E, sem mais nem menos, tantas cartas já estão na manga, pois o peso de mágoas passadas já não aleijam, não se fazem sentir tão inconscientes. Não mais deixam corcundos os ombros da jovem nadadora. As duras chagas do tempo em que em vez de caçadora ela foi asperamente caçada: como ser humano e mulher. Um passado que inclui o neanderthalismo de motéis suburbanos. Ou a troglodícia daqueles clubes de se dançar ao som de sanfonas, zabumbas; à sombra de dançarinas que convocam o olho mais que a música o ouvido. E a exceção súbita está na prontidão zen com que ela seduz sem sequer piscar. E, logo, a fotografia vira um atestado. Algo que está a meio caminho do não metafísico sem necessariamente ser lúbrico. Um estrado, que o maestro galga para de lá divisar melhor os naipes e impor sua tirania. E, pela primeira vez, ela só está lá. E que primeira vez. É como uma estátua equestre ou as estrias de um grande búzio, que traz na translação de seus circuitos, melhor medida que em réguas, o bramido do mar. A cor indizível do sol, da manhã e da água. A fonte dos leões na Alhambra. Os azulejos. O que de esguio, mas cento e vinte e quatro colunas de mármore sustendo um sonho. Ou tão sólida, talvez, quanto a arquitetura de adobe do Sahel. Lama que, no secar ao sol, atravessa séculos na monotonia solene de sua adustez. A imobilidade das salamandras. Algo de recurvo. Buque e canhoneira no bico do gavião. E, então, tudo que estava petrificado em geleiras, onde pinguins-de-magalhães chocavam seus ovos, saltita à calçada com pernas de Cyd Charisse. E traduz estado, condição. Um oásis. A confiança dos ritmos. Ah, como é possível transpor uma vida no exílio sem tornar às costas do Jônico, fixadas na foto, que não irá encardir. A oliveira. A vinha. E ela, enfim, se encontra naquele círculo que Cassavetes dizia possuir demasiado ardil, porque ao contrário de velhos e crianças, desperta um excedente de interesses. De desejo. Uma certidão de mulher.
É.
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