sexta-feira, 27 de maio de 2011

A quinta coisa mais importante da vida

[s/i/c]

Colágeno

Fortaleza, Ceará, Sexta-Feira, 27 de Maio de 1991


Querida A.,

Não julgue que eu precise de suas proteínas para me manter de pé e funcionando ao longo da semana. Mas se me emprestasse algumas, não reclamaria, pois é certo que tenho me sentido cansado. E, às vezes, ao fim do dia, muito antes de dormir, deito-me à cama para ver TV ou datilografar algo na briosa Remington portátil. Coisas que fazia, antes, ou na espreguiçadeira ou na escrivaninha. E se subo rampas com muita pressa, o pulso acelera, doi, e o fôlego encurta, mesmo que tenha deixado de fumar há seis meses. Minha dieta não vai mal. A não ser pelo excesso de chocolates e doces em geral. Há coisas irresistíveis. Como quase todos os derivados de goiaba: da geleia ao sorvete passando pela cascão, as compotas, o recheio dos biscoitos e os dindins.

Um antidepressivo natural, à base de passiflora me tem provocado erupções cutâneas. Coisa que não tive sequer na adolescência.


De resto, tudo vai bem. Voltei a usar algarismos romanos para demarcar os meses na abreviação das datas, quando datilografo meus contos. E tenho experimentado bater com todos os dedos, como mandam os manuais. Passo dias a fio sem tomar banho, trancado em meu quarto. Meu corpo é uma pequena coleção de mugre, remelas, viscosidades, ceroto e sebos em geral. Ainda bem que não cruzo com viv'alma nesse meio tempo, pois devo assemelhar-me, em espírito, ao Duque de Alba, tal como descrito em uma poesia de Virgilio Piñera:


Por mais de vinte anos
um duque de Alba
permaneceu encerrado em sua cama.
Entre o sebo de seus detritos
e a lepra de um amor infeliz,
via o sol sair, se pôr,
via, como uma tumba a mais, a noite.
O ar mefítico que respirava
chegava mesclado à fragrância
das flores-cítricas de sua amada.

A esse duque de Alba, tão feliz,
invejamos nobremente,
nós, em época assolada
pela tecnocracia e a desconfiança.
Esse duque de Alba, tinha um só
pensamento, uma ideia, mas sua.
Lha ia gastando,
e ao mesmo tempo enriquecia.
Mas, nós, em várias camas,
com sebos e milhões de lepras,
entre planos e simulações,
já não sofremos nada.
Nos permitem tomar drágeas,
e calar.

Isso é bonito, mas me remete para algo que não é tanto. Uma viagem a Almofala, feita há uns três anos atrás. A viagem foi excelente. Mas quando eu ia comprar o bilhete de volta para Fortaleza, não havia propriamente agência. As passagens eram vendidas na casa de um velho comerciante aposentado. E, então, você tinha de esperar algum tempo, sentado em um pequeno banco de cimento debaixo de um ficcus até que ele se dignasse a te receber. E havia aquela atmosfera feérica de que tudo em torno estava há vinte anos atrás. 


Pela janela de seu quarto de trabalho, à frente da casa, havia uma cadeira de rodas suspensa, quase à altura do teto. Havia também uma profusão desagradável de coisas inúteis. Não velhas ou obsoletas, A., mas apenas acumuladamente e, de fato, inúteis. E você olhava para o homem, sentado no couro daquela cadeira tosca e podia sentir que há décadas ele não saía daquele quarto. Que anos se passaram e ele não se distanciara mais que dez metros daquele espaço. Dissolvera-se nele. O quarto estava impregnado dele. Um presença tão pétrea, que ele parecia surgir em diversos cantos do aposento simultaneamente. Ou assombrá-lo ainda antes de morrer. 


Foi talvez o homem mais imóvel que vi na vida. Uma presença ubíqua, concomitante. Um calafrio me percorreu os ossos. Mas não havia nada que eu pudesse fazer. Tudo que a gente teme com demasiado rigor, com aquela seriedade quase indecente, é justo aquilo que se tem mais probabilidade de a gente virar. Não esqueça disso, querida A. E por favor, diga a I. que preciso falar com ela, a respeito de supostas insinuações racistas que eu haveria escrito veladamente e que conjecturalmente se dirigiam à pessoa dela. E isso é infame. Uma calúnia.

No mais, nada de tão negro. Bebo um pouco de água de passarinho, de vez em quando. E me vem a ideia aprazível de caminhar, aquele remoto exercício de pôr um pé após o outro pelas esquinas do equinócio, e que tanto me divertia só até um tempo atrás. Vejo-me mesmo fazendo isso. Em sonhos.

Em sonhos perfaço todas as peregrinações deste mundo: de Compostela a Fátima; de Lourdes a Canterbury; de Aparecida a Canindé. Não vou ao Juazeiro, porque não tenho devoção ao Padre Cícero. E o Cariri é quente como o diabo – embora o Crato, ali do lado do Horto, até seja uma terra agradável de se passar feriado. E isso de não poder caminhar, A., não é tudo na vida. Tenho cultivado um bigode à Groucho Marx, que aparo diariamente, e abandonei definitivamente a leitura do primeiro volume do Capital. Entendo que, apesar de seus méritos, há mais sanidade no Dom Quixote.

Amanhã tem a tal Marcha da Maconha, na Praça da Bandeira, não é? Estou em dúvida entre ir ou não, pois haverá uma ala de cadeirantes. Agora, parece-me mais irritantes nessas manifestações são três aspectos. O primeiro, é que só existem se antes existirem no Rio ou em São Paulo: há uma total falta de imaginação do resto do país – Fortaleza incluída – para manifestações públicas.

Segundo, é uma espécie de inversão. Os policiais, que lá estão para vigiar a coisa, como esbirros do capiroto, é que semelham ser os verdadeiros subversivos, os maconheiros – é notório que não poucos policiais e gente do exército faz uso da erva. Do contrário, os maconheiros, aqueles seres estúpidos, sujos, mal vestidos e barbeados, que financiam os traficantes que compram rifles mais modernos que os dos policiais que os revistam, prendem e constrangem, assomam tão incivilizados, sujando ruas, gritando refrões esfarrapados e assoando o nariz com o punho da manga da camisa, que dá vontade de desistir. Jogar no time dos homi. E nunca mais fumar um baseado na vida.

O terceiro é uma questão que envolve prioridades. Aquele tal “primeiro as prioridades”, dos velhos ingleses (esqueci como diz em inglês). A saúde pública vai mal das pernas. A educação nesse país é um descalabro. A inflação escorre pelo ladrão. E eleições diretas só ocorreram há dois anos. Mas se faz uma manifestação pública para legalizar a porra da maconha, que é apenas a quinta coisa mais importante dessa vida. Depois do futebol, claro.

É isso.

Seu para sempre,

C.

P.S. – e acho que preciso de um pouco mais de colágeno.

* * *

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