Distorção e Ponto de Vista
Na
imprensa do Sudeste e do Sul, o Ceará Sporting, a exemplo de
qualquer outro clube do Nordeste, nunca vence. Os times do Sul é que
são vencidos. Mesmo um time relativamente modesto, como é o
América-MG. E ainda que por 3x1. E em Belo Horizonte. Como terça passada.
É
improvável, é excepção, que apareça na imprensa do Sul algo como: “O Ceará derrotou a domicílio o América-MG”.
Na equação da manchete, um time do Nordeste jamais é sujeito. Não pode ser sujeito. É sempre objeto.
É passivo na equação. E isso não reflete uma predisposição, um estado mental?
Não
foge à regra a manchete do Uol Esporte sobre o jogo em questão: “América-MG
inicia returno com derrota, em casa, para Ceará e continua má fase
na Série B”. Ora, a torcida do Ceará é um bocado maior que a do
América-MG. Consome mais. Tem mais projeção. E, inclusive, deve
ler mais o próprio Uol. O mesmo se pode dizer de qualquer dos
clubes mais populares do Nordeste: Sport, Bahia, Vitória, Santa
Cruz, Fortaleza, Náutico, etc. Mas eles são tratados, em manchetes e
textos, sempre do ponto de vista do objeto. Será que essa imprensa,
que referenda acriticamente e até a medula o politicamente correto –
que não foi criado num tête-à-tête com as realidades locais – não percebe a
comicidade investida nesse modo centralista de noticiar? A ironia mesma?
Pode-se
contrargumentar que o Ceará é visitante contra o América. E que
Belo Horizonte está no Sudeste. E os grandes conglomerados de mídia do Eixão também. E, logo, estão mais próximos dos mineiros. E, portanto, noticiam do ponto
de vista de Minas. [A despeito de haver muitas Minas. De Minas ser o estado da transição entre Sul Maravilha e Norte. E haver mesmo uma parte de Minas que esteja no Nordeste].
Porém a perspectiva é que é bem outra: a mídia de alcance
nacional está toda, ultra-concentrada no Sudeste. Especialmente no Eixo. E é algo descompensado, imponderado, unidirecional. É algo que preda possibilidades em outros espaços. Que atenta contra a federação, pois seria necessário, no mínimo alguns poucos veículos de massa produzidos no Nordeste – e não só a TV Diário e sua vocação tão popularesca quanto legítima – que também tivessem alcance nacional. Que fossem nacionalizados. E, como não há essa emissão, o monopólio sudestino é feito uma grande mandíbula, de jacaré ou carro de coleta, que mastiga e tritura as possibilidades de uma diferença real, complexa, não esteada em estereótipos.
Essa mídia feita no Sudeste mas "nacionalizada" é também um predador que impõe a perseguição, de lá para cá. Pois não opera um fluxo inverso. Além disso, alguém no Acre ou no Espírito Santo vai sendo acostumado, desde sempre, a encarar o Nordeste na perspectiva do "eles", do "outros", do objeto – como fôssemos estrangeiros dentro do Brasil. Ou todo nordestino reduzido ao estereótipo, do tipo retirante, que dele se faz não é de hoje. Ou portássemos um selo ISO9000 do subdesenvolvimento por excelência, e em exclusividade. Ou fôssemos, grosso modo, os retardados mentais do país.
Ainda que o conceito de subdesenvolvimento esteja em crise. Como se no Rio ou em São Paulo não existissem fundas desigualdades sociais. Como se o fenômeno dos coronéis não existisse lá, sob outras máscaras, disfarces, mutações. Como se as favelas não roessem os morros cariocas, e posseiros não fossem mortos a cada ano no Pontal de Paranapanema. Como se o Sudeste à época do Império não tivesse, drenando as possibilidades de crescimento econômico para si, esgotado as chances de desenvolvimento do Nordeste, transformando-o numa sub-colônia dentro do país. Uma zona exclusivamente agrícola, que consumisse os produtos manufaturados – nem sempre de forma competitiva, mas sempre de modo monopolista – em São Paulo. Como se as cifras da corrupção não fossem ainda mais avultadas no Sudeste e no Sul, embora menos noticiadas, menos apuradas na imprensa, uma vez que quem controla a mídia "nacionalizada" também anda de passo junto com a corrupção da elite política do Sudeste, a mais poderosa do país.
Como se Joaquim Cardozo, João Cabral de Melo Neto, Nelson Rodrigues, João Gilberto, Clarice Lispector, Celso Furtado, Marco Nanini ou Caetano Veloso não fossem do Nordeste. Porque ao Nordeste é bom que se associe somente o atraso. E dele se separe qualquer possibilidade de cosmopolitismo. Como se a Universidade Federal de Sergipe não tivesse deixado Usp, Unicamp e UFRJ no chinelo, no exame da OAB do ano passado, e isso não tenha despertado maiores reportagens. Ou mesmo menores. Repercussão nenhuma. O Sul Maravilha não quer ver-se ultrapassado nunca, em nenhum campo. Está mal acostumado ao monopólio de vencer sempre. Qual não vence, prefere calar. Como se qualquer índice de modernidade devesse ser extirpado do Nordeste, e a cara da região, exclusivamente reduzida à complacência de esquerda diante do retirante subnutrido e desgraçado pela intempérie, que lava a privada da classe-média no Sudeste.
Esse tom de notícia, naturalmente, despercebe, por completo, que vivemos numa federação. E, volta e
meia – até por razões de auto-estima – seja necessário conceder o protagonismo aos estados "mais ao largo", e não só no Nordeste. Tornando-os o centro mesmo do assunto. E variando perspectiva e protagonismo, por turnos. Como deve ser, em equilíbrio.
E, claro, o futebol é apenas uma metáfora. Tudo é noticiado dessa forma. Absolutamente tudo. Ou quando não, revestido de complacências, paternalismos, menosprezo, alguma indulgência, e, logo, envolvido, embalado para pronta entrega, para viagem, no primeiro clichê mais grosseiro e à mão. Por exemplo, quando Sarah Menezes ganhou a medalha de ouro, vários trollers já aguardavam de plantão nas caixas de comentário dos grandes portais pela justificada euforia dos piauenses e nordestinos. Para logo tratar de relativizá-la. "Precisa ver onde essa menina evoluiu e pegou experiência", era o arrazoado da vez, esperando, praticamente supondo, que a judoca, como quase via de regra em casos assim, houvesse completado seu ciclo de treinamento no Rio, em São Paulo. Era o argumento com que esperavam ansiosamente contar, para sancionar, um pouco simploriamente, a suposta superioridade do Sudeste/Sul sobre o Nordeste/Norte. Quebraram a cara. Sarah vive e treina em Teresina. E saiu de Teresina para vencer em Londres. Sem escalas.
Em outros, em todos os ramos da atividade humana é necessário que itinerários como o de Sarah se multipliquem. E não só no Nordeste, como no Norte, no Centro-Oeste. E no próprio Sudeste, onde há muita gente e muitas áreas excluídas por esse câncer histórico que é nossa incapacidade para distribuir renda e descomprimir informação na grande mídia. E evitando intermediações, paternalismos. E isso só se vai conseguir se o Nordeste prosseguir a crescer, economicamente, acima da média nacional pelas próximas décadas. Assim como essas outras regiões menos achegadas ao Eixo.
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NOTA POSTERIOR (Uma Ultra-Glosa)
Há, no entanto e entre outras, duas exceções notáveis de paulistas em relação a essa mão única da notícia "nacionalizada". A essa rotina da perpetuação de falácias e sovados estereótipos. Dois autores, dois seres humanos que realmente compreenderam, antes do tempo, a tragédia e a complexidade do Nordeste e de onde mais no Brasil, em toda sua amplitude. Um deles é Euclydes da Cunha. Em Os Sertões, comove o modo como quase a despeito de toda a tradição em que foi educado – ou seja, das suas arraigadas convicções positivistas – Euclydes termine por empatizar, meio que intuitiva e profundamente, com os sertanejos de Canudos. E denunciar um crime de Estado. Na outra ponta, o espírito moleque de Mário de Andrade propõe em Macunaíma, o herói sair de um estado como o Amazonas, atravessar a fronteira e já se achar, como que por mágica, no Rio Grande do Norte. E a intenção, a metáfora, aqui, vai por implicar que somos o mesmo país na e pela diversidade. Mas também que o que nos une, nessas diferenças, é uma vasta cultura e história comuns. Passadas sob o mesmo teto austral. Uma espécie de regime alimentar, no qual a língua – e por meio dela os mitos, a história – é o prato principal. O que nos torna, a todos, vizinhos e contíguos, a despeito ou não de os estados serem fronteiriços entre si. Os cearenses colonizaram o Acre, quando ele ainda era território boliviano. Mas também portaram as técnicas de charquear a carne para o Rio Grande do Sul. Pinheiro Machado, o famoso caudilho gaúcho da República Velha, era neto de um cearense: Ambrósio Pinheiro Machado, do Quixeramobim. (Aliás, padre.) E dados assim são só a ponta do imenso iceberg de nossos estreitíssimos parentescos...E responderia muito melhor do que qualquer clichê mais torpe, ensinar uma história que desse conta desses intercâmbios e suplementaridades interregionais. Uma que fizesse o jovem, desde cedo, perceber a razão de sentirmo-nos, em última instância, brasileiros. Mas também que o nordestino, que se e encontra no Sudeste e no Sul, em trabalho braçal, se encontra forçado, contra a vontade. E que seu desejo passou longe de ser empregado doméstico, explorado, ocupado com trabalhos árduos e mal remunerados, morador de favela, assalariado mínimo, mal ganhando o suficiente para se manter e sendo transportado por uma rede pública ineficiente, exígua, desconfortável. E, pior de tudo: longe de casa. E não menos também, que esse migrante, em sua humanidade, não é assim tão diferente do próprio ancestral de alguém da classe-média paulistana, e que chegou por lá roído de fome, uma mão na frente, outra atrás, da Europa, num passado só um pouco mais remoto. E que os próprios italianos sofreram duríssimos estigmas até serem aceitos pelos quatrocentões. E que a grandeza de São Paulo é obra desses imigrantes nordestinos tanto quanto dos imigrantes europeus do final do sec. XIX. E que há aí uma suplementaridade. O que implica também dizer que um dos méritos do Nordeste está em ter preservado, apesar de tudo, um largo contingente de descendentes de índios, negros e cristãos-novos, justamente as etnias mais estigmatizadas. Justamente as mais perseguidas por quem escreveu e escreve a história de um ponto de vista eminentemente ocidental e europeu. Basta lembrar que nos Estados Unidos, os indígenas foram praticamente extintos, dizimados por descendentes de europeus. Ou, a exemplo dos negros, viveram séculos confinados, segregados em reservas e guetos. E essa segregação, essa barbárie, só recentemente suavizadas pelo discurso politicamente correto e pelas teorias multiculturalistas – os mesmos que importamos acriticamente, sem separar trigo e joio – se dá até hoje. Ora, como esperar que alguém que emigra por necessidade, feito o nordestino pobre, chegue ao Sul do país em igualdade de competição com os que já se encontravam lá há séculos? Ou mesmo, depois deles, como os descendentes de imigrantes europeus mais recentes, que sobrevieram para substituir a mão de obra escrava? Ora, mesmo estes já chegaram imbuídos, "equipados" de valores (alfabetização, ou semi-alfabetização, alguma educação formal ou treino profissional básicos), que portam consigo o selo da lógica, da disciplina, da acumulação de capital e da ilustração. E por vezes há gerações. É também evidente que os que mais ranço guardam contra os imigrantes nordestinos em São Paulo são, em geral, pessoas de baixa escolaridade formal ou falta de visão. Mas nem sempre. Estes também não percebem, por exemplo, que hoje em dia, com o boom econômico no Nordeste – que tem mais potencialidade de crescer, porque ficou estagnado por mais tempo que o resto do país – o fluxo migratório está até se invertendo. Sob outras variáveis e perspectivas. Ou seja, hoje, mais e mais, são sudestinos e sulistas que estão imigrando para o Norte. Ou nordestinos, ainda não suficientemente assentados no Sul, que seguem retornando para casa.