terça-feira, 28 de agosto de 2012

No Tempo dos Road Movies


Road Movie, 2010

demétrius era percussionista. Era o rival do Demóstenes na conquista da Belisa. Belisa era quase um país. Uma terra prometida entre judia, cearense, marroquina. Uma Torre de Babel, que nem sempre falava a mesma língua da moçada. Embora desse para todos. Equanimemente. Aqueles olhos letais de azeitona preta, permanentemente banhados por uma semítica fatalidade que ia pelo olhar de Omar Shariff e família. Só que suplementado por curvas odaliscais. Gostava de cinema de arte. Quem não gostava? 

um dia fomos tocar num festival em Natal. Belisa e T. faziam os backing vocals. Ficamos num hotel sui generis. Que já havia hospedado Getúlio Vargas. Mas que também não era reformado desde pelo menos a época de Juscelino. Havia art déco até no ar do elevador. Fotos no lobby atestando melhores dias, e adiante delas uma espécie de faz-tudo de meia-idade que recepcionava e ascensorava e servia no café da manhã e fazia a faxina à tarde. Suspeito que, por igual, regava o jardim, aviava compras, cuidava da lavanderia, se não estávamos olhando. Era também o fiel secretário do proprietário, que quase não saía do quarto. Talvez não passasse de um esboço: Walser ou Kafka? E foi bem quando conhecemos Ed Papapá, que iria tocar na segunda noite. Depois do jantar, Ed nos levou a seu quarto, e nos mostrou, ao violão, os carros-chefes de sua gig. E Domingos logo deduziu que Papapá fazia um emprego bastante sui generis dos acordes naturais. E Domingos propôs alguma percussão, mais de clima e efeitos, acompanhando Ed. E Domingos e eu tecemos algumas estupendas teorias sobre a origem do sobrenome de Ed, tendo a cautela de não nos entrolhar. Mas Ed, composto, nos respondeu com uma elaborada etimologia africana. E uma linhagem que remetia a príncipes iorubás. Compostura. As meninas gostaram:
O bichinho! – disseram depois, enternecidas, beicinhos no mundo
E no mundo também, aquele fumo agridoce. E uma ala da galera apreciou pacas a prodigalidade da paranga de Papapá. Nada como um hóspede e um hotel simultaneamente suigenerados. E cheios de suingue. E, afinal, generosos. E, no caso do hóspede, chegado trás-anteontem de Georgetown, com boa muamaba. O que, em ponto morto, desaguou naquele verdadeiro congraçamento entre a nossa cota de entusiastas e Ed

e assim, mais ligados que irmãos siameses, tocamos duas noites no Forte dos Reis Magos. E caímos nas graças de Jota Medeiros, o crítico musical, por excelência e plantão, da cidade. Salvo engano, a gíria da vez era brown – que, tempos depois, Carlinhos adotaria como sobrenome, lá por Salvador. Choveu numa das noites. E a senha era namorar na penumbra das velhas guaritas suspensas sobre o mar, se não se estava tocando. Foi nossa primeira vez em Natal. Certa manhã fui passear com T., e Belisa chegou junto. E comprei um exemplar de A Insustentável Leveza do Ser numa pequena livraria. E flores para as meninas nas Lojas Americanas. Depois fomos todos à praia: Ponta Negra. Nos sentíamos em casa, refestelados em espreguiçadeiras rústicas, como na Praia do Futuro: era Fortaleza. Só que menor. Só que vinte anos antes. Com uma praia mais do futuro que a nossa. Se demorássemos mais uma semana, sairíamos dando autógrafos. Ou ao menos mais apegados ao passado. Ou restaríamos para sempre em Natal, bordados na orla das dunas, num ocaso de sonho

agora, na volta, os que eram dados à coisa, já iam lá pela ponta do estoque. Pura saturação, pré-rebordosa. Seguíamos alternando nos dois carros da Rita, a irmã do Mimi, e uma espécie de empresária informal: um Opala verde oliva e um buggy azul de metileno metálico, já mais rodado. O Opala tinha ar condicionado, e Cat Stevens e Pat Metheny girando toca-fitas afora, sem cessar, e dando mais melodia que cajueiro anão dá frutos, em setembro: lados A e B. Era um tanto acolchoado e para quem queria sossego. Mas o buggy era mais perto da paisagem. Ás vezes conversava mesmo com ela, como sói ser em casos assim em que aqueles cigarros sobem à cabeça. Lados A e B. Como na letra de "Trem Azul", salvo engano

umas oito léguas depois de Angicos, paramos para nos aliviar. A noite caía em pressa com aquela limpidez indizível do deserto:

dez, minutos, galera, dez – disse Moacir, o Manim, que gostava (e tinha a manha) de comandar. E por isso também o chamavam de Chefe. E, então, se predispôs uma doce alternância entre fazer a cabeça e aliviar-se:

pô, Chefinho, que trem azul esses dias em Natal, héin? Foram para trocar o óleo – disse Belisa

o Manim sorriu. E piscou. Mas o Manim podia ser reimoso. Especialmente com aquela complacência maternal entre cannabis e entusiasmo. E depois, percebendo que o cigarro seguia por longe, muito ao largo do Demétrius, justo um dos que não podiam passar sem ele, mas por outro lado andava em maior precisão:

levantar acampamento, galera. Vamo' nessa – havia sempre uma ala mais cética, que desconfiava daquela relação meio de mãe substituta que os mais devotos nutriam diante daquelas substâncias que nos faziam, por vezes, passar mal, vomitar, ter taquicardias, estranhas vertigens. ainda assim havia os que insistiam, renitentes como na propaganda da loteria estadual

os outros logo perceberam o logro, e foram saindo do mato, e acomodando-se nos carros, e os rostos amassados sob as incipientes estrelas, e o plano sequência sem fim do sertão:

pô, pera aí, m'ermão. Eu ainda não terminei, não, Manim – disse o Demétrius, agachado por trás da moita, sonhando, who knows, habitar a arte da capa do Who's Next:

ou caga ou fuma! – sentenciou o Manim. E fez de conta que fervia o brown entre os lábios

coisas que a gente não esquece. é. foi naquela época. quando olhávamos a terra ardentes. qual fogueira. e perguntávamos mais intensamente: de onde vínhamos. quem éramos. para onde íamos. quem seríamos os últimos a sair. e desligar a luz

como só quem tem menos de trinta pode perguntar (ou crer, ou desligar) nesta vida. 

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