Camocim.
Sexta-feira à tarde. O parquinho junto à Igreja do Bom Jesus. Mas ou menos 1972
meninas. Haviam chegado primeiro. O parque era ao lado da
igreja. Meia-quadra repleta de brinquedos, cercada por um murinho
baixo caiado, abrindo-se à calçada por um portãozinho que quase
ninguém usava. Com elas, o parque ficava mais branco ainda, cheio de
babados, saias, fitas, meias, sapatos de fivela discorrendo sobre o capim. Ficava
imediatamente mais elegante, contrastado. E bem mais estridente. E,
contudo, com tantas saias, era de espantar que não houvesse mais
acidentes
meninas
nem sempre estavam lá. E brincavam separadas da gente. Eram
elegantes. Um pouco esnobes. Aquele horário o monopólio de
certos brinquedos – os escorregas, pentes, gangorras, treliças,
pergolados, o carrossel, o balanço longo – era delas. Ainda que
houvesse a nítida inadequação entre a elegância, os penteados e
fitas, os laços, os vestidos com crochés e plissados, e a dose de contorção e suor que alguns brinquedos
demandavam
às
vezes, o Monsenhor Inácio, que ensinava geografia no colégio delas
- embora para as que já eram um pouco mais crescidas - saía para
tomar a fresca, ao cair da tarde, no lado da sombra. E do alto do
calçadão da casa paroquial, que era logo atrás da sacristia, aos
fundos da igreja, deitava olho sobre os pequenos sucessos do
parque, enquanto mordia o cigarro entre os dentes
como
podia aquele homem severo, dado a certa neurastenia, que nem tinha mulher, nem filhas, que
podia ser irascível ao sermão – de ficar rubro de raiva, e
soltar diatribes contra a jogatina, o álcool e a concupiscência - ser assim brando e cuidadoso com aquelas meninas do parque?
os
meninos só não implicavam mais com elas, só não aplicavam mais, porque elas cedo
aprenderam que o Monsenhor podia lhes resgatar os apuros. E até
evitavam ir ao parque se fosse dia de aula, e ele não estivesse em
casa, com seus livros de latim, de álgebra, geografia. Mapas. O cigarro no amarelado dos dedos, a espantar mosquito à época das azeitonas pretas. Às vezes uma boina à cabeça, afora a indefectível gola clerical, se saía em seguida. Mas se
alguém as pertubava:
-Monsenhor,
o Nonato buliu comigo
-Monsenhor,
o Sérgio está intimando comigo
-Monsenhor,
o Chico está se danando
quando
a maioria dos pais bem sabia que menina se entendia com
mulher, e que menos dor de cabeça dava ter filhos homens, parecia
pouco ao Monsenhor ter de ouvir todos os malfeitos da cidade. Ele
nutria genuíno interesse pelas meninas.
Falava a língua delas, e de um jeito que desdenhávamos
nutria
um interesse. Mas não desse tipo que você está pensando. De um
outro tipo. Daquele, tipo fosse pai, entender-se-ia com elas, à base
de conversa, boa palavra, mimo. Historinha
antes de dormir, contada do mesmo jeito. Presentes nas devidas datas. E algo mais que
paciência. E isso, dentro do estreito repertório de falas e gestos
reservados a pais, filhas naqueles longos tempos onde os fins de tarde
enchiam-se de ouro e reflexo. Ou daquelas florzinhas, brancas, perfumadas, excessivamente elegantes, movendo-se entre os brinquedos no parque. E a
tuba da banda de música a reluzir ao sol entre as túnicas das
irmandades nos dias de solenidade e procissão
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