James Casebere, Subdivision With Spotlight, 1982
A Irrevogável Decisão das Parcas
Era preciso um pôr-de-sol. Um pôr-de-sol precioso. Janeiro. Todas as festas de inauguro haviam recém-amaecido, e o ano trilhava ainda ressaqueado a pasmaceira daquele nada acontecer até o Carnaval. Uma calmaria, análoga á que se abateu sobre as naus dos descobridores, arrasta-se por esse primeiro quadrante do ano como uma praga bem rogada. Ou um filme passado nos trópicos, com um lento ventilar varrendo moscar sobre a mesa de bilhar. Dobrei o jornal decidido: era preciso um pôr-de-sol. Quando mais jovens e a cidade menos turística, íamos à Ponte Metálica, com violões. E ficávamos até que a primeira friagem da noite incomodasse, e a cidade, acesa às nossas costas, convidasse para casa, um banho quente, uma limonada suiça ou água de côco, antes de descer novamente para os bares da Praia de Iracema.
Arrumei a mesa. Pus planilhas em gavetas. Bati no tampo da ampulheta, e os grãos verdes desceram: quarenta e dois segundos. Tempo suficiente para quê? Joguei no cesto o excesso da correspondência: malas diretas; informes, grandes anúncios de imóveis. Dispensei o assistente mais cedo. E saí.
Já no Meireles, quando atingi a ladeira da Barão de Studart, o mar brotou, lá abaixo. Perspectiva extensa que se vai adelgaçando à medida que se desce, a marcha engatada, com a doce luz oblíqua das tardes fortalezenses roçando os telhados vermelhos. Eu sabia. A cidade acabava ali. Mar no limite.
Passei em frente à recepção do Esplanada e tomei à direita: mão-única da Beira-Mar.
Mulheres pareciam mais sensuais sob as malhas pretas do jogging. Mas nenhuma especialmente atraente. A idade faz exigências. E às vezes não oxigenas. Há uma seletividade. E tudo seguia passando, ainda sem a beleza do pôr-de-sol: o charme ordinário das meninas de programa; os semblantes rubros dos turistas alemães; o casal argentino, ambos de cabelos compridos como atacantes do River Plate; reproduções de quadros famosos a rodo; deploráveis talhas com motivos sacros: últimas ceias, madonas, sãos franciscos - e todo o tempo que se gasta em fazê-las; o vendedor com as redes estampadas ao ombro; a regularidade cheia de nuances dos triângulos de chegadinho; anúncios de coca-cola, de cigarros, loteamentos e parques aquáticos; pilhas de coco verde; o cigarreiro ambulante; pregões; garotas estendidas sobre toalhas nos muros dos clubes; hippies temporãos e mendigos.
De repente, do lado direito, ela surgiu. Pisava estranho o asfalto irregular – como se um dos pés falseasse a altura mediana. Era morena clara. Estava bronzeada. Os óculos de aros escuros sobre o nariz afilado. Dentes ligeiramente proeminentes. A brisa revoltando fios avulsos do cabelo preso, que escorriam sobre a face. Usava uma camiseta rosa de gola alta e um short azul-índigo, sumário, encorpado por pernas roliças (mas oblongas), que devolviam um andar terminado num par de dock-siders. Postura espigada, quase selada. E, com a segunda no engate do tráfego lento, e ela atravessando a avenida portando a vasta mochila, nossos olhares se cruzaram por segundo e fração. E logo ela se perdeu sem menção de retrovisor, no veraneio da tarde janeira.
Mas, um giro no quarteirão. Um estacionar o carro. E vinte minutos depois, estávamos sentados na mesma mesa, o mar por diante:
“Então é melhor vir no meio do ano?”, ela disse.
Estudava jornalismo na Cásper Líbero e havia, ano passado, feito uma excursão à Europa. Chamava-se C. F.
Conversamos sobre Londres: a promiscuidade dos vagões do metrô, o acervo da Tate, os museus, a infelicidade auto-suficiente das minorias, os caribenhos que organizavam o carnaval de agosto em Notting Hill, o desolamento mal iluminado das ruas quando a noite abate-se sobre a ex-capital do mundo. Os pubs que são a quintessência de uma sociabilidade, digamos, profissional.
Eu bebia chope. Ela saboreava um vasto sorvete com waffers. Suas malas estavam num hotel próximo. Matava tempo para tomar o ônibus. Canoa Quebrada.
Então falou de São Paulo: andar de bicicleta no Ibirapuera, tomar chope nos botecos de Vila Madalena, degustar um vinho nas cantinas do Bixiga, vadiar de carro na madrugada da Henrique Schaumann. Perder-se na noite, às vezes, um tanto lotérica, sublime, matemática, de Vila Olímpia. Shoppings. Teatros. Cinemas:
“Não se vive sem eles quando não se tem mar, não é mesmo?”
Teria contestado se logo meus olhos não houvessem dado com suas mãos.
Os anéis estavam bem distribuídos nos dedos. Pousava a mão sobre o tampo da mesa com gentileza. E comparando com o tempo que gostaria de entretê-la diante de mim, as horas que faltavam para seu embarque foram se tornando os quarenta e dois segundos da areia verde, na ampulheta, sobre minha mesa de trabalho, caindo em mão-única.
A horas tantas, não era eu quem lhe falava. Mas alguém que desandava a tagarelar muito além do comedimento usual. Cheguei a emendar uma sequência de piadas, um trem de empostadas alegrias. Fiz citações estapafúrdias. Entornei chope sobre a mesa. Histrião em pessoa.
Ela me olhava, por trás das lentes, míope, divertida. Um pouco curiosa. E ria solto. Depois, esforçava e continha-se. À vezes repuxava os lábios num meio sorriso desaprovador, irônico. Havia encanto?
Não logrei de imediato ganhar sua confiança. Teria sido equívoco, hoje sei. Mas a vida é tentar encontrar. É tentar. E o acaso ainda um excelente caminho. Talvez o melhor. O único? Ah, a decisão irrevogável tecida pelas parcas.
Depois passamos num ambulatório de uma farmácia vinte e quatro horas onde ela extraiu um espinho, porque caminhara descalça no Cumbuco. Seu rosto contraído.
Ganhar a confiança de alguém implica uma instância de verdade. Não é rua de mão única:
“Passo na sua casa quando voltar, próxima semana”, ela disse vagamente, aprumando a mochila.
E, do jipe, vagamente a vi perder-se na azáfama entre os guichês da estação rodoviária:
“Só para fazer convosco eterna liga”, pensei.
Tínhamos nós, perfeitos desconhecidos, passados um crepúsculo e sete horas conversando ininterruptamente. E calando. E deixando aos corpos a precedência. E voltando à conversa. Para uma nova supensão. Sim, um soneto de Baudelaire foi do que também me lembrei.
O tal heroísmo da vida moderna. O de o filme se passar à última vista.
* * *