sexta-feira, 29 de abril de 2011

Não vai mudar

[s/i/c]


Sobre disputas juvenis, Noel Rosa, Chico Buarque & Elevadores


Certa feita, aí pela adoidescência, uma namorada passou quase uma semana sem falar comigo, porque caí na besteira de dizer que Noel Rosa havia sido muito mais importante para a música brasileira que Chico Buarque. Pensando bem, com os olhos de hoje, a pausa de uma semana até que não foi de toda má -- mal sabe ela. E, além do mal, estimulou-me a ouvir e gostar ainda mais da música de Noel.

Meu argumento era simples: músicas como "Três Apitos" [posso ouvir essa com Maria Bethânia uma tarde inteira; de novo e de novo], "Último Desejo", "Pra que Mentir" -- ah, a versão e o violão de Paulinho da Viola -- , "João Ninguém", "Com que Roupa?", "Filosofia", "Feitiço da Vila", "Gago Apaixonado", "Palpite Infeliz", "As Pastorinhas", "Feitio de Oração" & trocentas outras têm o condão de me desarmar por completo. De me levar às lágrimas -- quem chora em público, não chora!-- de me fazer rir à bandeiras despregadas. E nelas, tudo é espontâneo. Talento bruto. O ritmo das palavras, maravilhoso, casando perfeitamente com as melodias. É a fala do povo do Brasil posta em música. E foram compostas, algumas, há mais de oitenta anos. 

O argumento contrário, o dela, era o de que Noel não tinha feito uma música política. E eu pergunto indignado: como não? Noel é o maior compositor de canções do Brasil, justamente porque é o mais político de todos os compositores. Todo o poliédrico cotidiano de viver neste país, ao tempo dele -- e, em certo sentido até hoje -- está presente em suas letras e músicas. Em suas parcerias, em que se encarrega predominantemente das letras. Para mim, em vez de Educação Artística, deveria ao menos durante um ano, haver uma disciplina na escola chamada Noel Rosa. Mesmo que ele diga, com razão, que "batuque é um privilégio, ninguém aprende samba no colégio".

Mas aí quando se dissesse: "Você passou em Noel Rosa? Passei"! A gente ficaria com a convicção de que a meninada teria, de fato, agregado um tanto mais de humanidade.

Agora, voltando à adoidescência, o argumento dela, já apelando, era o de uma vez, em São Paulo, ter subido no mesmo elevador de Chico Buarque. Pois muito bem. Que tenha feito bom proveito. Fique com o elevador e com Chico. Gosto da música de Chico Buarque também. Só que para mim não tem comparação. E até o momento, nunca senti vontade de subir num mesmo elevador com Chico Buarque. Pode ser que mude ideia. A vida dá muitas voltas. E, de outro modo, não se deve recusar nada por princípio, como diz o Divino Marquês. 

Mas uma coisa, é certa, e não vai mudar: o tanto que se é mais feliz  -- pela educação dos sentidos -- na audiência das canções de Noel. 


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quarta-feira, 27 de abril de 2011

Alguns humores e uma mesma lua

[s/i/c]


Três Passagens


Ao passar por Pedra Rasa, reviu o seu naufrágio. Era como abrir uma janela para o ermo. E de novo se ver na rua, a segurar-lhe a mão. As juras secretas. As flores nas janelas da pequena capela rústica. Aroma de incensos. O quarto de lua crescendo. E depois a vida que não foram eles.
Ao passar por Pedra Rasa, naufragou-se em revistas. Era como ermitar sem janelas. Ou do sobrado flagrá-los de novo: o modo como se davam as mãos. Era ela mesmo? Um pesadelo. As flores nas janelas da pequena capela rústica. Um odor entre sacro e detestável. O quarto de lua frio, desolador. A vida que até então tinha sido eles.
Ao passar por Pedra Rasa, foi como ser revisitada por dois náufragos. Uma maçada. E os dois uniam suas frustrações para descarregar sobre ela. Precisava? Aquele perfume de dez reais. Mosquitos. Ninguém merece. Flores chinfrins e uma horrenda capela. Um caco de lua. Ah, não! Nada como mudar de vida!


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quarta-feira, 20 de abril de 2011

Com frases, o vento leve: Leminski

[s/i/c]



 o bicho alfabeto
 tem vinte e três patas
    ou quase

    por onde ele passa
 nascem palavras
    e frases

    com frases
 se fazem asas
    palavras
 o vento leve

    o bicho alfabeto
 passa
    fica o que não se escreve



.                                                               [Paulo Leminski]


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segunda-feira, 18 de abril de 2011

Rapadura fields forever...

A barragem de Três Gargantas [Three Gorges], China



Belo Monte, xarope de maple, pudim de Yorkshire e uma fieira de rapaduras

Uma grande hidrelétrica chinesa foi finalizada em 2008, Três Gargantas. Desalojou 3 milhões de chineses. Além disso, submergiu uma área consideravelmente maior que a prevista para ser imersa pela represa de Belo Monte. Em realidade, mais de o dobro da área. A água do reservatório de Belo Monte prevê alagar apenas o que é, hoje, desmatado da Floresta Amazônica a cada 26 dias. E esse cálculo vem de um ambientalista contrário à construção da usina...[1]

Devia ser menos, é certo. Pois a Amazônia é uma prioridade. Ingênuo, de outro modo, pensar que um projeto dessa magnitude não tenha impactos ambientais. E, sinceramente, não parece assim tão extensa a área do reservatório quando se leva em conta que a usina irá beneficiar 27 milhões de residências - para não falar em fábricas, máquinas, linhas de produção, e os empregos que vêm à reboque disso - e realocar menos de 10 mil moradores locais. [2] Em sua maioria indígenas semi-nômades, os caiapós, que terão asseguradas reservas em terras contíguas -- provavelmente para desmatá-las e exportar a madeira, como é costumes entre esses indígenas que usam ipads, notebooks, celulares, câmeras de vídeo, firmam contratos com empresas estrangeiras para a exportação de mogno, mas são considerados como parte de uma cultura diferente da brasileira -- mesmo falando português e assistindo futebol em TV's de alta definição, porque, claro, alguns antropólogos e não poucas ONG's sobrevivem e lucram (e não pouco) na defesa desses povos indígenas. E eles geram uma boa porção de manchetes por este mundo afora.


Algumas personalidades internacionais, como Sting e James Cameron tentam tomar carona nesse bondinho da alegria, pseudo-ecológico, lastrado na "proteção", na "tutela" do "indígena", oligopólio das ONG's pseudo-ambientalistas (com raras e louváveis exceções). E extrair alguma boa imagem disso, como bons seringueiros do marketing. Naturalmente ambos aparecem na foto próximos do indígena mais apropriado para ser exótico, clichê. Mais ao ponto do clique da câmera. Mais para inglês ver, como se diz. Como age o cacique Raoni, que se deixou fotografar com o Príncipe Charles tocando, fascinado, o grande bloco de madeira que lhe estica o lábio.


Mas quantas dessas organizações não governamentais são, de fato, sérias? Se fossem sérias, ao menos uma considerável parte dessas ONG's reconheceria publicamente que dentre os cerca de 50 milhões de brasileiros beneficiários da energia de Belo Monte, aí por baixo, uns 60 a 70 por cento descendem de indígenas, para não falar dos que descendem de africanos... Ou seja, contam entre os expropriados históricos dentro do contexto da civilização brasileira. E, logo, são portadores do direito a um tratamento especial, prioritário. Ao menos tanto quanto os cerca de dez mil caiapós em cujas terras, supostamente sagradas, a represa de Belo Monte não pode ser erguida, segundo os empedernidos ambientalistas, ainda que para benefíciar uma população que, além de incluir muitos mais indígenas que os assentados na região, é nada menos que 5.000 vezes maior que o contingente caiapó... 


Parece, sem embargo, que não há proteção para indígenas assimilados, urbanizados; tão-só para os que moram na selva (como se estes não o fossem, aculturados, em diferentes graus)... Afinal, a selva não é tão pobre quanto uma favela em Altamira ou Imperatriz. Há nela maior biodiversidade, maiores interesses farmacológicos, madeireiros, energéticos, nutricionais, geopolíticos, culturais (pelo suposto exotismo dos ritos), etc. Além disso, a selva está em moda. As vidas dos indígenas, assim, parecem valer mais dependendo do local onde esses indígenas se encontram. Se já se encontram na periferia pobre das cidades da fronteira agrícola, já não valem tanto... Caso se encontrem na selva, mesmo aculturadíssimos -- torcendo pelo Brasil na Copa do Mundo, ou admirando o futebol do Barcelona -- tem um valor bem mais alto que os desafortunados que migraram, ou foram  tangidos para as cidades... E aos da selva é dedicado um maior grau de autonomia, ainda que estejam assimiladíssimos e plenamente cientes das regras do jogo capitalista.

Que usinas hidrelétricas são incomparavelmente menos poluentes que usinas termelétricas, todo mundo sabe. Do que usinas atômicas, então, nem falar. Que o Reino Unido, país de Sting, esteja coalhado de usinas nucleares, é fato. Que o Canadá, país de origem de James Cameron, as possua em bem maior quantidade que o Brasil, também. Que nos Estado Unidos, país onde vive Cameron, haja usinas atômicas a rodo, é também sabido, pois já houve até um grave acidente nuclear por lá, o de Three Miles Island, em 1979. Mas nenhum brasileiro protesta contra esses fatos. Enquanto isso, Sting e Cameron posam de herois do ambientalismo no caso Belo Monte. E os brasileiros acham o máximo. E aplaudem como se fosse uma peça no pré-primário onde seus filhos.

No entanto, quando o Brasil está construindo uma grande usina hidrelétrica, fonte de energia limpa (e segura), que beneficiará um vasto contigente de população; e, na circunstância, com deslocamento expressivamente menor de pessoas do que costuma ser em casos do gênero – tome-se como exemplo os três milhões de chineses citados acima se comparados a menos de dez mil indígenas (que muito provavelmente devem exportar as madeiras de suas reservas com a voracidade de grileiros) –; há uma grita geral. 

Quem está por trás da máquina de propaganda que praticamente forja esse consenso de que Belo Monte é algo diabólico em termos ambientais? De que é preciso embargar a construção da hidrelétrica? Por que tanta indignação diante de tão pouco conhecimento de causa? E ainda uma vez: que interesses são subliminares à campanha anti-Belo Monte? A quem interessa esse ponto de vista onde há tão pouca margem para argumentos? Construtoras rivais? Caciques políticos do Sudeste? ONG's estrangeiras que lucram com o extrativismo de madeiras na região, mercadejando com os próprios morubixabas caiapós? Governos estrangeiros cada vez mais interessados na internacionalização da Amazônia - ainda que tenham destruído muito mais suas próprias florestas e dizimado seus indígenas, como os próprios Estados Unidos? Centrais sindicais interessadas em reaver o espaço de poder que perderam nesses começos de administração Dilma? Governos estaduais mais corruptos, que não conseguiram "tirar o seu"? A OEA, organização eminentemente submissa à política externa norte-americana, que recentemente condenou Belo Monte en bloc? E por que não condena a política energética dos próprios Estados Unidos, toda ela calcada em usinas atômicas e no petróleo para mover excessos e luxos?

Certamente, a intensa unilateralidade dessa campanha fere o bom-senso do observador mais isento, menos maria-vai-com-as-outras. Acostumado a refletir, ponderar. E isso implica conhecer os dois lados da questão. As caras e coroas. Os prós e contras.


E, surpresa, quando se faz isso, está patente que a unilateralidade dessa campanha fere em cheio os interesses econômicos do Nordeste, que precisa urgentemente da energia de Belo Monte para dar sequência à sua tardia industrialização. É injusta com os 50 milhões de brasileiros – predominantemente habitantes do Nordeste, predominantemente descendentes de indígenas – que seriam beneficiados com o aporte da energia gerada por Belo Monte. 


Quantos movimentos ambientalistas foram tão fortemente articulados na imprensa quando, por exemplo,  a barragem de Itaipu varreu do mapa Sete Quedas -- uma maravilha natural na forma de quedas d'água -- para propulsionar as já pujantes indústrias do Sudeste? Quem ao menos se lembra disso num momento como o atual, de discussão? Quem vive lamentando Sete Quedas ou é retroativamente contra a construção de Itaipu? À época Drummond escreveu até poema para o conjunto de quedas d'água que iria desaparecer. E eram tão magníficas que ainda hoje reaparecem um poquinho, se o ano for de seca brutal. 

É certo, à época dos governos militares não havia espaço para livre expressão. E, no entanto, de um modo geral as grandes represas hidrelétricas construídas durante os anos 70 e 80 contam  entre as mais louvadas realizações de melhoria infra-estrutural do país até mesmo em livros de analistas de esquerda. O mesmo se pode dizer do Proálcool, que já existia em 1974, quando os Estados Unidos sequer sonhavam em refinar o seu ineficiente etanol, derivado do milho, fortemente subsidiado e muito mais poluente. Com isso se quer dizer que é inevitável: quando um país almeja melhorar sua infra-estrutura para permitir desenvolvimento e uma vida melhor, mais estável, equitativa, isso implica fatalmente em prejuízos ambientais. E, claro, pode-se estimar o tamanho desses prejuízos. E estudar um modo de serem menores. Mas, pontualmente, reparem também como todo mega-projeto longe do Sudeste/Sul assoma, na imprensa, como muito mais nefasto e corrupto do que quando se desenvolve por lá. E por que será?

Enquanto isso lá na terra de James Cameron, o Canadá, que é o maior produtor de urânio do planeta, come-se mais e mais bifes, constroem-se mais usinas nucleares, e tira-se o gosto com maple syrup. E quanto a Sting? Bem, Sting vê TV, acende aquecedor, ouve música, move-se sob as luzes da danceteria, navega na net, assiste clipes e filmes, e até prepara yorkshire puddings, ovos com bacon e ferve água para o chá com energia atômica... Sem energia atômica, a população da Inglaterra não fritaria um ovo. Passaria frio.

Às vezes, se tem a impressão de que brasileiro é um bicho assim meio besta... 




p.s. -- Parece ser mais que precipitado taxar quem é a favor da construção de Belo Monte de ANTI-AMBIENTALISTA. É claro que com o progressivo esgotamento das potencialidades hidrelétricas do Sudeste e do Sul, a grande imprensa brasileira, sediada no Sudeste/Sul, fará de um tudo para que essa excelente fonte de energia não seja explorada nas demais regiões do Brasil. E por quê? Porque essas "demais" regiões -- veja-se a grilagem de terras por gaúchos no Mato Grosso, Maranhão, Piauí, Tocantins, Bahia -- têm sido historicamente colônias suas nos últimos um século e meio[3]. Nesse ínterim, a vasta massa formadora de opinião, no Nordeste, no Norte, posa de ecoboba, defensora do planeta. Não há nada de errado em ser ambientalista. Do contrário. É uma bela tomada de partido. O planeta agradece. Porém para ser idealista, carece, antes, ser astuto. Medir as repercussões ambientais caso a caso. Caso contrário, sem energia e infra-estrutura, a principal indústria manufatureira do Nordeste voltará a ser a de rapaduras.

[1] Para um argumento contrário a Belo Monte, que é quase canônico na imprensa brasileira e internacional:

http://bit.ly/fprGCU

[2] Para o parecer de um físico, professor da Unicamp, em artigo republicado no Jornal da Sociedade Brasileira Para o Progresso da Ciência [SBPC]:

http://bit.ly/flootB


[3]Este argumento é extremamente bem desenhado pelo brilhante historiador Evaldo Cabral de Mello -- irmão do poeta -- em obra sua chamada O Norte Agrário e o Império, na qual ressalta o quanto a pujança econômica do Centro-Sul do país se deve em boa parte a um esvaziamento sanguessuga das potencialidades econômicas do Norte do Brasil. Daí a quantidade de revoltas que varreram o Nordeste (em sua maioria de teor radical e republicano, como a dos Alfaiates, na Bahia; a Confederação do Equador, em vários estados; ou a Praeira, no Recife.)


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sexta-feira, 15 de abril de 2011

Sem meias vírgulas, uma firula & a fábrica de tecidos

Érica Correia, The Wind Blows My Mind, 2009



Três Apitos


grito para além da praça
mas os passos motores
guizos buzinas percalços
pigarros mas a voz do senhor
que ainda compra jornal
em banca bem-te-vis
e sanhaços gota da chuva
que está para cair taco do
cego batendo ângulos
outro grito de gol a murchar
dolente risco na caderneta
da jornalista pressão hesitante
de teclas abraço entre sarja e
poliéster mosca sobre fruta
sinos um bocejo moça seguindo
célere para o passado sargaços
trago de soda dobre de sola
e dados e dédalos talheres no tampo
da mesa clepsidra os dedos ou só


o eco da última vez em que
chamei teu nome cega a voz


e segues sobre o cascalho.


* * *